Reza a história que Steven Spielberg estava com alguns amigos, num jantar em casa, quando soube da morte de Kubrick e que, depois de horas a falarem sobre os filmes que este tinha deixado, Spielberg reuniu todos à volta de um ecrã para lhes mostrar a cena final de Paths of Glory (Horizontes de Glória, 1957). É uma sequência inesquecível, de uma beleza e tristeza deslumbrantes, que surge no filme como um raio de luz temporário até se apagar. Uma rapariga alemã (interpretada por Susanne Christian, com quem mais tarde Kubrick viria a casar), prisioneira de guerra, é exibida perante um ruidoso grupo de soldados franceses num bar, e se é assobiada quando começa a cantar, a cena termina com os soldados a cantarem com ela, reduzidos a lágrimas. A intenção de Spielberg seria contradizer a ideia de que o cinema de Kubrick era frio, de um distanciamento cínico, com esta cena sentimental. É um momento que funciona como alegoria para a amplitude da complexidade humana apresentada em Paths of Glory e que, acima de tudo, serve para evocar a convivência permanente entre o mais belo e o mais feio, uma dualidade que sempre interessou a Kubrick.
A história de Paths of Glory pode ser resumida numa ideia simples, mesmo que o filme esteja longe de uma abordagem simplista, já que utiliza essa ideia como ponto de partida para uma investigação ética. Como informa logo no início uma voz off, estamos em França em 1916, em plena Primeira Guerra Mundial, e a luta de atrição entre as trincheiras francesas e alemãs arrasta-se há dois anos, com perdas humanas monstruosas – “ataques bem-sucedidos mediam-se em centenas de metros”. Mireau, um general francês à procura de uma promoção, planeia um ataque suicida a Ant Hill, uma importante posição alemã: as baixas previstas seriam de 65% dos homens envolvidos. Na manhã do ataque, à medida que o avanço se torna insustentável, à medida que os soldados batem em retirada, outros há que nem sequer chegam a sair das trincheiras. Irado pelo falhanço do seu plano, que atribui à fraqueza dos seus homens, Mireau insiste que alguns dos soldados sobreviventes sejam julgados por traição e executados, para servirem de exemplo aos restantes e, segundo o próprio, aumentar a moral entre as tropas.
O coronel Dax, numa soberba interpretação de Kirk Douglas, que liderou o seu regimento no campo de batalha neste ataque falhado, pede para ser advogado de defesa dos homens escolhidos, para que tenham direito a um julgamento justo. Será que estes homens devem pagar pelas suas acções, quando as ordens dos seus superiores não fazem sentido? Será que podiam ter feito mais, enquanto outros morriam ingloriamente? Os filmes de guerra sempre funcionaram como um avaliador do real carácter de homens envolvidos em situações extremas, como se ao reduzir o campo de escolhas a uma série de situações de vida ou morte, não houvesse espaço para máscaras ou subterfúgios, e ficássemos assim apenas com um retrato primitivo da natureza humana. Este aspecto, e o absurdo consequencial dos comportamentos de homens cercados por actos de violência e destruição louca, foram abordados por Kubrick noutros filmes. Em Full Metal Jacket (Nascido Para Matar, 1987), é precisamente esse plano de igualdade e o caos gerado por homens transformados em máquinas assassinas que Kubrick explora, quer na primeira parte do filme quando disseca o treino-formação dos soldados, quer na segunda metade, quando mostra que o inimigo anónimo procura apenas a sobrevivência através da anulação do outro. Em Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb (Doutor Estranhoamor, 1964), Kubrick transforma o absurdo numa comédia alucinada, ao mesmo tempo assustadora, por não ser muito distante da realidade. Com Paths of Glory, Kubrick transforma um filme de guerra num filme anti-guerra, como se quisesse por o próprio conceito em julgamento, à luz dos terríveis comportamentos dos envolvidos.
Kubrick é talvez o realizador que mais adaptava a estética de cada filme ao tema, como um camaleão que vagueava entre géneros distintos: desde a forma mais violenta para a história mais violenta em Clockwork Orange (Laranja Mecânica, 1971); à austeridade rigorosa e abordagem intelectual de um filme de ficção científica como 2001: A Space Odyssey (2001: Odisseia no Espaço, 1968); ao horror claustrofóbico de The Shining (Shining, 1980), Kubrick revelava a sua genialidade à medida que mudava de estilo visual da mesma forma que variava de género. No seu filme anterior, The Killing (Um Roubo no Hipódromo, 1956), aproveitou os códigos visuais dos filmes noir, para apresentar uma narrativa quebrada, de forma a aumentar a tensão da história. Em Paths of Glory, Kubrick alterna entre dois registos. De um lado, uma abordagem mais realista, próxima do documentário, para ilustrar de forma fiel, quer as terríveis condições com que os soldados rasos tinham que lidar no seu quotidiano, quer a violência absurda e aleatória durante as acções de combate, onde soldados anónimos tombavam a qualquer momento. Por outro lado, quando filmava as chefias militares, Kubrick recorria a elaborados planos de movimentos de câmara, para mostrar as condições sumptuosas que estes generais conheciam, afastados e imunes às linhas da frente, contrastando de forma eficaz as diferenças entre os dois mundos, tão interligados e tão distantes.
Kubrick é talvez o realizador que mais adaptava a estética de cada filme ao tema, como um camaleão que vagueava entre géneros distintos
Kubrick faz especial uso da arquitectura dos espaços onde filma durante Paths of Glory para reforçar esse contraste. Logo na primeira cena, filma uma conversa entre o General Mireau e o seu superior, de forma a exibir os luxos e opulência do palacete onde estes dois almoçam, o mesmo palacete que seria usado quatro anos mais tarde por Alain Resnais em L’année dernière à Marienbad (O Último Ano em Marienbad, 1961). Enquanto estes dois “dançam” com palavras à volta da justificação para o tal ataque insensato a Ant Hill, a câmara dança à sua volta em movimentos circulares, numa coreografia que parece evocar os longos planos-sequência dos filmes de Max Ophüls. Logo depois, numa visita às trincheiras, espaços exíguos e sujos que são a casa para os soldados, encontramos o coronel Dax num buraco miserável e mal iluminado que são os seus aposentos. Dax, na figura de Douglas, não podia estar mais longe dos privilégios do palacete, e da calma tranquilizadora dessa distância – aqui o perigo é imediato e constante, e os estilhaços sentem-se por todo o lado.
O contraste trabalhado por Kubrick entre a natureza das duas personagens, Mireau e Dax, é exemplificado em duas sequências em que ambos visitam as trincheiras, que podem parecer semelhantes mas contém diferenças significativas. Na visita de Mireau, a câmara recua por entre os limites das trincheiras, com Mireau em destaque no centro do enquadramento e filmado de baixo para cima como figura intocável, à medida que este avança por entre soldados desanimados, com pequenas explosões em pano de fundo a provocarem o sobressalto do general. Na sequência da visita de Dax, Kubrick alterna entre o ponto de vista da personagem à medida que este avança, ou seja, Kubrick coloca-nos assim ao nível de Dax, e um plano aproximado do seu rosto, pouco perturbado pelas explosões. Kubrick volta a recorrer à arquitectura na organização espacial da cena durante a sequência do julgamento, que é filmada como um jogo de xadrez, onde apesar do destaque central para as posições dos soldados julgados, estes parecem apenas peões cujo destino está traçado à partida.
A sequência do ataque propriamente dito destaca-se como ponto alto do filme, e mesmo que não dure mais que alguns minutos, deixa uma forte impressão, especialmente na forma como revela a mestria técnica de Kubrick, numa cena que ainda rivaliza com qualquer sequência de um filme de guerra posterior, Spielberg inclusive. Desde o momento em que a câmara espreita para além do arame farpado, e que Dax trepa a trincheira para atirar-se em direcção à terra de ninguém, que o perigo é iminente. À medida que os soldados avançam contra as rajadas inimigas, e os corpos tombam por todo lado, a câmara segue fielmente Dax, como uma âncora, procurando encontrar refúgio no seu rosto. Dax é uma figura ímpar na filmografia de Kubrick, pouco interessado em personagens heróicas ou sem um lado negro. Mas Dax não é isento de ambiguidade. Se no julgamento ajuda a desmontar a hipocrisia e os podres das chefias militares, que funcionam quase como uma espécie de aristocracia, Dax não pode deixar de pensar na sua quota parte de responsabilidade no que aconteceu. É como se Dax não pertencesse a nenhum dos lados, porque mesmo que recusando-se a estar do lado dos oficiais, o seu posto não permite ver-se ao lado dos soldados que comanda. Isso é tornado evidente na tal sequência com a rapariga no bar: Dax fica de fora a observar a acção, sem nunca entrar.
Paths of Glory será exibido dia 30, pelo Cineclube de Guimarães, nas instalações do Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, em Guimarães.