Retomando o último Retrato de Projecção, recordo que o Monumental e o Nimas, que se tornaram entretanto as últimas salas da Medeia Filmes em Lisboa, partilham hoje uma gerência comum e a mesma equipa de três projeccionistas. Mas se o Monumental remete para a história dos grandes cinemas dos anos 1950, e depois para a sua reconfiguração como multi-salas em centros comerciais nos anos 1980, já o Nimas remete-nos para o fenómeno dos “estúdios” dos anos 1960 e 1970.
Depois da alteração legal que, em 1959, permitiu a construção de salas em prédios de habitação e comércio, vários novos cinemas nasceram em garagens, caves e anexos adaptados. Foi o caso do Estúdio do Cinema Império (1964), do Estúdio 444 (1966, na Av. Defensores de Chaves), do Vox (1969; depois King), do Satélite (1971, no Monumental) e do Londres (1972), pequenas salas de cerca de 200/300 lugares que programavam cinema de autor americano e europeu e clássicos para um público cinéfilo. O Nimas, com 200 lugares, abriu em 1975, o mesmo ano em que se inauguraram também o Quarteto e o Cinebolso, seguidos pouco depois pelo Star (1977, Av. Guerra Junqueiro). O Nimas, que mostraria muito cinema de autor americano, italiano, francês, alemão e jugoslavo, inaugurou com Il pleut sur Santiago (Chove em Santiago, 1975), de Helvio Soto, uma co-produção franco-búlgara sobre o golpe militar que derrubou, com o apoio da CIA, o presidente chileno Salvador Allende em 1973.
O Nimas foi o cenário de um triste incidente provocados por católicos conservadores que, em 1979, tentaram impedir a projecção de As Horas de Maria, de António Macedo. A estreia só aconteceu sob forte protecção policial, mas nem isso livrou vários espectadores de serem violentamente agredidos por manifestantes à saída do filme.
Um tema quente, como o era também, naqueles anos, a religião. O Nimas foi o cenário, aliás, de um triste incidente provocados por católicos conservadores que, em 1979, tentaram impedir a projecção de As Horas de Maria, de António Macedo. A estreia só aconteceu sob forte protecção policial (ameaças anónimas prometiam incendiar o cinema), mas nem isso livrou vários espectadores, incluindo o crítico Tito Lívio e a actriz Eugénia Bettencourt, de serem violentamente agredidos por manifestantes à saída do filme. Dali por poucos anos seria a vez de Je Vous Salue Marie (Eu Vos Saúdo Maria, 1984) gerar uma pequena batalha campal à porta da Cinemateca entre a polícia e vários manifestantes conservadores, liderados pelo então presidente do município, Krus Abecasis, depois de várias tentativas, todas elas frustradas, de boicotar a sessão, de agredir espectadores e de invadir a sala da Rua Barata Salgueiro.
Um dos sócios do Nimas foi o Capitão Baptista Rosa, conhecido jornalista, realizador e produtor, durante anos ligado aos Serviços Cartográficos do Exército e à RTP. Após a sua morte, em 1982, a sua viúva, Laura Baptista Rosa, assume a exploração do cinema, tornando-se, tanto quanto sei, a primeira mulher a desempenhar tal papel em Portugal. Conseguiu manter o Nimas à tona durante o resto da década, marcada pela concorrência dos multiplexes e pela desertificação da cidade, complementando a exibição cinematográfica com outras formas de ocupação da sala, por exemplo, como palco das transmissões em directo do programa de rádio “A Febre de Sábado de Manhã”, de Júlio Isidro, em 1983.
No início do ano 1990, a Medeia Filmes assumiu a exploração do Nimas, procurando eventualmente nichos de programação como o cinema francês (2000), filmes clássicos (2005), ou até o cinema de animação 3D (entre 2008 e 2009) — recordo-me de ver ali Coraline (Coraline e a Porta Secreta, 2009) com uma menina de 10 anos inicialmente surpreendida com a ausência de pipocas. Encerrado temporariamente em 2009, regressaria ainda no mesmo ano como Espaço Nimas e sala de espectáculos, tendo nos últimos anos recuperado a função exclusiva de cinema e apostado, com sucesso, em várias retrospectivas de cinema de autor.
É pouco tempo depois de a Medeia ter começado a explorar o Nimas, em 1993, que entra nesta história o projeccionista Santilal Meggi, 55 anos — Sr. Santilal para todos os colegas mais novos. Actualmente o mais antigo projeccionista da Medeia e o que há mais tempo trabalha no Nimas e no Monumental, Santilal Meggi é um conversador fascinante. Falámos ao longo de boa parte de um dos seus turnos (obrigado, projectores digitais), entre as cabines do Nimas e do Monumental.
Nascido em Diu, na Índia Portuguesa, Meggi partiu dali para Moçambique em 1964. Estudou no Instituto Industrial de Lourenço Marques, actual Maputo, e estagiou depois como analista químico na Tudor, numa fábrica de cimentos e na companhia eléctrica da mesma cidade. Depois de 1974, daria aulas na Escola Industrial, mas teve também o seu primeiro contacto com uma cabine de projecção. Foi no cinema São Miguel, onde o irmão trabalhava como porteiro, quando, certo dia, calhou substituir a pessoa que passava as legendas de um filme indiano usando um projector de slides, como era habitual em vários cinemas de Moçambique.
Santilal Meggi chega a Lisboa, com a família, em 1980 e, a partir daí, manterá quase sempre uma dupla ocupação como contabilista e como projeccionista de cinema. Depois de 1982 trabalharia no Monte Carlo (Av. Álvares Cabral), no cinema AC Santos (Av. da Igreja), e, nos anos 1990, no King, no Monumental, no Ávila, no Fonte Nova e no Nimas.
No Monte Carlo, começou como ajudante de projeccionista, recordando-se bem dos velhos projectores ainda com lanternas de arco voltaico de carvões com que ali trabalhou. No AC Santos, depois de 1985, já pôde usar um Philips FP-20 (nunca mais se esqueceu deste modelo), com lâmpadas de arco de gás xénon (a geração de iluminação seguinte dos projectores cinematográficos) e programadores que automatizavam os intervalos. Durante estes anos, Meggi trabalha nos cinemas de noite e, de dia, como contabilista e numa empresa de edição videográfica, a Saturno Vídeo. Tal como o Alvalade e o Império, o AC Santos foi arrendado à IURD por alguns anos, entre 1990 e 1995. Meggi dedica-se então à contabilidade a tempo inteiro mas, quando a Medeia Filmes de Paulo Branco junta o AC Santos às suas salas lisboetas, em Março de 1996, Meggi regressa, desta vez em exclusividade, à projecção de filmes. Contudo, a sua paixão pela matemática não desapareceu e confessa que ainda gosta de se entreter com cálculos de trigonometria, funções, derivados, integrais.
Outra paixão de Santilal Meggi é a fotografia. Um dos vários percursos entre o Nimas e o Monumental que fizemos foi passado exclusivamente a falar sobre objectivas de câmaras fotográficas. O gosto pela fotografia tornou-se vontade de criar registos dos cinemas onde trabalhou depois do sentimento de perda que lhe deixou o encerramento e descaracterização do Monte Carlo e do AC Santos.
Esta vontade de registo estende-se a uma verdadeira história oral da exibição e distribuição de cinema em Lisboa nos últimos trinta anos. Durante a nossa conversa, para além das salas onde trabalhou, surgem referências a vários nomes de antigos colegas projeccionistas não só cinemas da Medeia, mas também de várias outras salas de Lisboa. Um nome recorrente é o de Divesh, amigo do irmão de Santilal. Conheceram-se quando ele estava no cinema Roma e Meggi no AC Santos. Mais tarde, trabalhariam os dois na Medeia, onde Divesh foi chefe de cabine no Monumental e onde formou vários projeccionistas mais novos.
Por muito que eu goste de pensar que 1976, o ano em que nasci, ficou marcado pela estreia de Badlands (1974) ou Tout Va Bien (1972), a verdade é que o maior sucesso desse ano foi Bobby (1972), de Raj Kapoor.
Meggi e Divesh são apenas dois dos muitos projeccionistas, exibidores e distribuidores de cinema oriundos da Índia Portuguesa que, como muitas outras pessoas provenientes daqueles territórios, se estabeleceram em Lisboa, vindos de Moçambique, ao longo da segunda metade dos anos 1970. A sua história ficaria também ligada ao boom de cinema indiano nas salas portuguesas após o fim do bloqueio às importações indianas que vigorou entre 1953 e 1974. Entre 1976 e o início dos anos 1980, tanto as velhas distribuidoras estabelecidas como várias novas empresas propositadamente criadas para importar filmes indianos (como a Sandro, Véritas, Rajá, Júpiter, Vénus, Anisa, ou a Oriente Filmes) e salas como o Monte Carlo e o AC Santos (onde Meggi trabalhou), mas também o Eden, o Alvalade, o Odeon e, até bem dentro dos anos 1990, o Cine 222, foram responsáveis pela distribuição de dezenas de melodramas comerciais em língua ou versões hindi de Bombaim e Madrasta, que permaneceram sempre várias semanas em cartaz, mas que que nunca conquistaram nem a crítica nem o público cinéfilo. Por muito que eu goste de pensar que 1976, o ano em que nasci, ficou marcado pela estreia de Badlands (1974) ou Tout Va Bien (1972), a verdade é que o maior sucesso desse ano, estreado no Eden apenas dois dias antes de eu nascer e ficando 36 semanas em cartaz (mais do que Deep Throat ou O Império dos Sentidos, também estreados nesse ano e ambos de 1972), foi Bobby (1972), de Raj Kapoor.
Regressando ao Nimas, é hora de fechar a visita espreitando a cabine. Naquele que é provavelmente o espaço mais pequeno que visitámos até agora, co-existem um projector Cinemeccanica Victoria 5 com uma torre mecanizada de duas objectivas, vindo da sala 2 do Monumental, e um projector de cinema digital Christie CP2000-ZX (com o respectivo servidor DCP-2000 da Doremi e um conversor Christie Cine-IPM 2K), vindo da única sala do King que esteve equipada com cinema digital.
Aqui, os automatismos ainda não existem e, até mesmo para o projector digital, é preciso repetir o ritual de gestos que antecedem cada sessão: à hora marcada, desligar a música ambiente, reduzir a intensidade das luzes na sala, ligar o sistema de som e fazer arrancar a máquina. De resto, como em tantas outras salas convertidas ao digital, ainda abundam nesta cabine os vestígios da obsolescência da projecção em película: a canalização de água que refrigerava o projector, as grandes bobines penduradas nas paredes, os pratos onde se montava uma sessão inteira, as molas de roupa segurando as pontas que vinham a seguir aos trailers e anunciavam que aquele filme já estava em exibição, ou estrearia brevemente, noutro cinema da Medeia Filmes, até uma velhinha tabela de conversão de metros de película em tempo de projecção. E, no corredor e numa sala anexa, vêem-se as coladeira e as enroladeiras usadas para preparar as raras sessões com cópias de 35mm, agora praticamente limitadas ao Lisbon & Estoril Film Festival (o ano passado foram projectadas 26, entre o Nimas e o Monumental). Durante o festival, todo este material regressa à vida, a cabine volta a ser o coração do cinema e, como diz Santilal Meggi, o contacto com a película deixa os projeccionistas sentirem-se novamente “activos” e “realizados”.
Recordo-me que, a certo ponto da conversa, Meggi me disse que a geração anterior de projeccionistas era muito fechada. Podiam ser, por exemplo, algo secretistas em relação aos empregos que acumulavam durante o dia, ou absolutamente inflexíveis quanto à interdição de entrada na cabine de quem não tivesse carteira profissional. Dito de outro modo, há vinte ou trinta anos atrás, estes Retratos de Projecção seriam completamente impossíveis. O que só me faz sentir ainda mais grato a quem, hoje, aceita generosamente partilhar as suas memórias e ajudar-nos a reconstituir esse mundo, não necessariamente perdido.
Fotografias de Mariana Castro
Agradecimentos: Pedro Esteves, Santilal Meggi, Ricardo David, Manuela Mina, Ana Isabel Strindberg
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