“You’re a class act, Callahan. A real class act.”
Carmen Argenziano, no início do filme.
Quem é Clint Eastwood, ainda alguém se lembra? Por não haver talvez melhor altura que esta para tentar responder a isto mesmo (afinal, foi apenas o ano passado que Eastwood realizou dois filmes plenos de vida e talhados com a mestria habitual, depois de três anos sem dar notícias), viaje-se então pela obra e pela carreira de “Mr. Honkytonk Man”, como lhe chamou Jean-Luc Godard quando lhe entregou o César d’honneur de 1998, em Paris. Dos primeiros passos nos estúdios da Universal até American Sniper (Sniper Americano, 2014), filme maravilhoso e, até ao momento, o melhor estreado este ano em Portugal, passando pela escola da televisão e por outras etapas e acontecimentos que lapidaram e foram dando cada vez mais sentidos e contornos novos à sua obra; antes de se chegar a Sudden Impact (Impacto Súbito, 1983), policial complexo, divertido, trágico e prova absoluta do talento e da versatilidade de Clint Eastwood.
Clinton Eastwood Jr. nasceu em 1930 em São Francisco, também a cidade que o inspector Callahan percorrerá assolado, em Dirty Harry (A Fúria da Razão, 1971). A infância é marcada por mudanças e viagens constantes e algo desse tempo deixa marca nos seus filmes, exemplar e particularmente em Honkytonk Man (A Última Canção, 1982), com esse Red Stovall que só tarde demais na sua vida se decidiu a concretizar os seus sonhos, pela estrada fora com o seu sobrinho, interpretado pelo filho de Eastwood, Kyle, que acabou mesmo por se tornar músico. Depois de um contrato curto e mal sucedido com a Universal Pictures, Clint Eastwood é escolhido para interpretar Rowdy Yates em Rawhide, série em que participou durante oito temporadas e onde além de voltar a trabalhar com Jack Arnold, trabalhou também com Stuart Heisler, Robert D. Webb e Gerd Oswald. Pode parecer, mas não é coisa pouca. Custa ler meia volta que vivemos agora a época de ouro da televisão, e que haja muita surpresa e elogio a “atitudes progressistas” sempre que um realizador de cinema trabalha num episódio duma série de televisão, como nos últimos anos fizeram James Gray, Martin Scorsese e M. Night Shyamalan, quando nesses anos (50 e 60, especifique-se) ela foi um laboratório privilegiado para actores, escritores e realizadores, onde podiam trabalhar regularmente e quase ensaiar, como faz um músico, antes de um novo filme; bem como trabalhar, simplesmente, quando Hollywood não tinha nada para eles, e fazer belíssimos trabalhos. Foi durante estes anos, afinal, que se fizeram séries como The Twilight Zone, Playhouse 90, Wagon Train, Alfred Hitchcock Presents, The Rifleman, Alcoa Premiere e The Westerner, por exemplo. E para a televisão, trabalharam John Ford, Nicholas Ray, Alfred Hitchcock, Samuel Fuller, André de Toth, Budd Boetticher, Robert Aldrich, Mitchell Leisen, Jacques Tourneur, Don Siegel, Ida Lupino, Joseph H. Lewis, Phil Karlson, Edward Ludwig, John Brahm, Robert Parrish, Don Weis, Paul Wendkos, entre muitos outros realizadores que começaram no cinema, muitos durante a altura do mudo. Na televisão, tiveram os primeiros trabalhos Arthur Penn, Sam Peckinpah, Richard C. Sarafian, Robert Altman, Sidney Lumet, Robert Mulligan, Daniel Petrie, William Friedkin, Bob Rafelson, Larry Cohen, John Boorman, Stuart Rosenberg, Sydney Pollack, entre muitos outros. E durante oito anos, mesmo que não tenha conhecido grande parte destes realizadores, foi esta a primeira grande escola de Clint Eastwood. Foi talvez aqui que teve o primeiro vislumbre do método que diz ter aprendido com Don Siegel, esse realizador que, entre trabalhos para a RKO, para as unidades de produção de série b da Universal-International e para a televisão, cedo se deu conta que não tinha tempo para jogar pelo seguro e filmar planos alternativos que o pudessem proteger na montagem e aprendeu a confiar no instinto, cimentando-o num método eficiente e seguro que, aliado ao trabalho constante e regular, permitiu, por exemplo, que em 1971, assinasse duas obras-primas, Dirty Harry e The Beguiled (Ritual de Guerra, 1971), ambas interpretadas por ninguém mais que Clint Eastwood.
O próprio Eastwood confirma tudo isto quando diz a Michel Henri Wilson, em Clint Eastwood, le franc-tireur (2007), que “trabalhar na série de televisão, Rawhide, para mim foi decisivo, porque foi o primeiro trabalho fixo que tive. Pude trabalhar todas as semanas, filmando novos episódios e aprendendo muito sobre como fazer cinema e interpretar. Pude-me formar como actor todas as semanas, nem sempre com bom material. Tinha que se trabalhar com o inconveniente de, às vezes, o material não ser muito bom, mas tinha que se fazer com que funcionasse e uma pessoa esforçava-se.”; e também quando usa a analogia da música para descrever a Tim Cahill, para a Rolling Stone, esses mesmos anos na televisão, dizendo que “é como aquela história do grande trompetista clássico que, um dia, encontraram a tocar numa orquestra de basebol, em Wrigley Field. Alguém o reconheceu e perguntou, ‘Meu deus, maestro, o que é que o maior trompetista clássico do mundo está a fazer numa banda de basebol’. Ele respondeu, ‘Tem que se tocar todos os dias’. Em Rawhide, pude tocar todos os dias. Ensinou-me a reagir e acompanhar, a inventar, a levar as coisas para a frente.”; mas confirma-o, sobretudo, e em termos práticos, quando realiza Unforgiven (Imperdoável, 1992), A Perfect World (Um Mundo Perfeito, 1993) e The Bridges of Madison County (As Pontes de Madison County, 1995) num espaço de três anos.
Eastwood, para a sua primeira longa-metragem, Play Misty for Me (Destinos nas Trevas, 1971) convidou Siegel para o papel de Murphy, o dono do bar que o personagem de Eastwood, Dave, costuma frequentar. Talvez o quisesse ter por perto, caso alguma coisa corresse mal. Tal não aconteceu e logo nesse primeiro filme, é possível elogiar a generosidade de Eastwood, que podia perfeitamente tomá-lo como oportunidade para se promover, mas em vez disso deixa Jessica Walter, a sua co-protagonista, brilhar. E são os olhos loucos dela, como os das hospedeiras sulistas do superior The Beguiled, que nos assombram mesmo depois do filme ter acabado, como uma daquelas canções de embalar que não embalam ninguém, mas dão antes insónias passadas a remoer sobre guerras complexas, que não se passam em campos de batalha, mas em bairros ou em fazendas ou mesmo no interior dos homens. Não se anda longe dos pesadelos e dos monólogos alucinados do personagem de Tim Robbins no extraordinário Mystic River (idem, 2003). Guerras secretas e silenciosas, abafadas pela lama do Louisiana ou por lealdades que, se já são frágeis, não se podem ainda esquecer, pelo raio do arrependimento. Todo o passado do personagem de Kevin Kostner, em A Perfect World, parece também assombrado e repleto de guerras destas, nesse filme tão belo e tão justo, irmão e companheiro de Honkytonk Man, também sobre a perda da inocência, como tantos outros de Eastwood, de Breezy (Ontem ao Fim do Dia, 1973) a True Crime (Um Crime Real, 1999), passando por Bronco Billy (Bronco Billy, o Aventureiro, 1980), de Million Dollar Baby (Million Dollar Baby – Sonhos Vencidos, 2004) a American Sniper, passando obviamente pelo díptico bélico de Iwo Jima e por Changeling (A Troca, 2008). Nada pode ser mais o mesmo, mas até deixar de o ser e num bailado cósmico sob mira de caçadeiras e sentinela de helicópteros, eles hão-de acreditar por uma hora ou por um dia que são os sonhos que comandam a vida e que, por eles, tudo valeu a pena. Que, afinal de contas, o mundo é mesmo perfeito e sem a mais pequena ponta de ironia. Por que outra razão, noutro gesto de grande generosidade, foi Eastwood quem deu a oportunidade a Michael Cimino de realizar o seu primeiro filme, Thunderbolt and Lightfoot (A Última Golpada, 1974) deixando brilhar mais uma vez o seu co-protagonista, Jeff Bridges? Porque é que ambos os realizadores parecem acreditar exactamente no mesmo? Não são poucas as parecenças entre A Perfect World e Sunchaser (Espírito do Sol, 1996), por exemplo. Ambos acreditam nos homens, mas sem ingenuidade alguma e antes com o peso de toda a barbárie que estes perpetuaram séculos a fio, que é a maneira mais difícil de acreditar: exactamente pelo que eles são. Exactamente pelo que nós somos. E o alcance e a duríssima complexidade disto tudo estão perfeitamente problematizados em Unforgiven (Imperdoável, 1992) e naquelas últimas frases que antecedem o genérico final: “And there was nothing on the marker to explain to Mrs. Feathers why her only daughter had married a known thief and murderer, a man of notoriously vicious and intemperate disposition.”
“Conheci muitas pessoas ao longo da minha vida, não quero dizer “vencidas”, mas pessoas que não queriam vencer, que tinham algum talento mas não deixavam de o desperdiçar, de o deitar a perder. Porque sempre que se aproximavam do sucesso, estragavam tudo. Noutras palavras, com o tempo apercebemo-nos que têm medo do sucesso, medo da disciplina, medo de perder. Deste modo, tinham sempre uma desculpa e a desculpa pré-fabricada é que não estão à altura, porque estiveram a noite toda no jogo ou seja o que fôr. E Honkytonk Man é um pouco assim. Eu sempre senti pena por esses cantores country, por intérpretes como Hank Williams, Red Foley e todos esses homens que conseguiram ter sucesso, mas que no final se destruíram a si próprios. Como também Charlie Parker, no terreno do jazz. Ninguém sabe porquê, mas há milhões de casos como estes.” Mais uma vez, palavras de Eastwood a Michael Henri Wilson e que descrevem mais heróis eastwoodianos, como o citado Charlie Parker de Bird (Bird – Fim do Sonho, 1988) ou o jornalista interpretado pelo próprio Eastwood em True Crime, o Frankie Dunn do mesmo Eastwood em Million Dollar Baby, ou até os Jersey Boys (2014), que quando têm sucesso se desmoronam por não conseguirem sair do bairro e de Jersey, quando já lá não estão. Do mundo dos filmes de Eastwood fazem também parte as famílias dilaceradas, ora pela morte ora pela incompatibilidade e que dão lugar às famílias adoptivas, e isto é algo que atravessa, ainda que em maior ou menor grau, toda a obra do realizador.
Mas voltando à técnica, à estrutura, ao encadeamento, ao instinto e a Don Siegel, tome-se como exemplo American Sniper, que é ordenado de maneira exemplar: dividido em missões, com temas entrelaçados, trabalhados e depois problematizados no fim do filme, reunindo-se tudo magistralmente no mais pequeno gesto: uma mulher a fechar uma porta; isto para não falar em particular da encenação das operações no Iraque: a nocturna, depois do jantar oferecido às tropas americanas e a visão do horror da guerra que se segue; e a milagrosa sequência da tempestade de areia em que vemos duas mãos a darem-se, quase indistinguíveis entre poeira e destroços, para acentuar o milagre, e o Kyle de Bradley Cooper a subir para o carro blindado para ir lutar a batalha derradeira consigo mesmo no regresso a casa. Tão difícil quanto. Se venceu essa, é matéria de debate; mas o que não parece ser, é o arrojo formal do filme, no qual transparecem todos os ensinamentos recolhidos por Eastwood de Rawhide a esta parte.
No final de Dirty Harry, Callahan é abandonado pela câmara, por um grande zoom out, num mar de desilusão semelhante às palavras tristes e dilacerantes com que Raymond Chandler abandona Philip Marlowe nas suas próprias desilusões. Quem tanto e tão terrível vê, só pode esperar por que os dias passem sem ter sucumbido demais à perversidade e dar o melhor de si para que ela não atinja nem corrompa os inocentes. Em Sudden Impact, Callahan bate no fundo e é obrigado a trocar São Francisco pela cidade fictícia de San Paulo, onde anda a monte um assassino em série. O espectador sabe desde o princípio quem é o assassino: a personagem de Sondra Locke, Jennifer Spencer, uma pintora atormentada pelo passado, de que se lembra em imagens e sons macabros até ao tutano, baladas de parques de diversões distorcidas, no pesadelo de uma violação. Violaram-na a ela e à irmã, nessa mesma cidade e nesse mesmo parque de diversões que ela agora restaura, há dez anos. A irmã ficou em estado de catatonia permanente e Jennifer assumiu a vingança, relatando à irmã cada culpado que liquida. Mais uma vez, a perda da inocência, mais uma vez as famílias dilaceradas, mais uma vez as batalhas silenciosas e interiores, aqui traduzidas nesses quadros horríveis que pinta Jennifer e nos dois espelhos partidos. É assim que Callahan descobre que é dela que está à procura (já tinha visto o outro espelho, em casa doutro dos culpados liquidados por Jennifer) e, sabendo-o, vai para baixo dos lençóis dela para se ajudarem um ao outro a ver passar mais uma noite. Callahan reconhece-se nesse espelho partido e é por isso que não se importa, também ele passou por mais do que devia ter passado, também ele viu mais do que devia ter visto e também ele perdeu mais do que devia ter perdido.
Mais uma vez, louve-se Clint Eastwood por fazer perceber estas coisas com simples gestos e movimentos de câmara: é a sua lenta marcha em silêncio pela casa da personagem de Sondra Locke, aliada ao movimento da câmara até ao espelho partido onde se vê o seu reflexo que faz perceber tudo isto. O espectador só pode agradecer.
O final é pesado. Depois da explosão de cores e da mostra necessária de virtuosismo na barroquíssima e extraordinária cena do parque de diversões, é permitido a Callahan encobrir o caso e salvar o criminoso, coisa que nunca tinha feito. A câmara afasta-se num plano aéreo, como em tantos filmes de Eastwood, e deixa Harry e Jennifer absortos nos seus pensamentos, roubados e derrotados desta vida, redimidos apenas por se terem um ao outro.
Apesar de tudo, já não é nada mau.