Figura celebrizada no espaço mediático televisivo sobretudo como o comentador benfiquista que usava uma luva de cabedal preta na mão direita, Artur Semedo foi essencialmente um homem do teatro, mas também um caso excepcional na história do cinema português. Galã de fitas nos anos 50, com um percurso internacional na década seguinte, e primeiro “actor neo-realista” do cinema português, Semedo também passaria pela realização e produção de projectos sui generis que, de certa forma, procuraram outras direcções para o cinema português. Sobretudo na comédia, Semedo dirigiu um punhado de filmes que constituíram, por assim dizer, uma espécie de terceira via no cinema português dos anos 70 e 80, tentando arrepiar caminho entre os filmes de sentido popularucho e o cinema de autor mais intransigente: Malteses, Burgueses e às vezes (1974), O Rei das Berlengas (1978) e O Barão de Altamira (1986). Mas, apesar das tentativas, os filmes ficaram bastante aquém das expectativas.
Formado em interpretação para teatro pelo Conservatório Nacional, seria como actor que ficaria recordado, particularmente os papéis de galã em Saltimbancos (1951), Chaimite (1953) de Jorge Brum do Canto ou O Cerro dos Enforcados (1954) de Fernando Garcia. Ainda passaria pela televisão para interpretar papéis cómicos nas séries A Lena e o Carlos (1960), Dr. Borelli (1960) e As Aventuras de Eva (1961) e rumaria à América do Sul (1962-65) para trabalhar com o veterano português radicado em terras brasileiras Armando de Miranda [A Montanha dos Sete Ecos (1963)], com um dos pais do cinema baiano Roberto Pires [Tocaia no Asfalto (1962)] e com o argentino Carlos Hugo Christensen [Viagem aos seios de Duília (1964) e Crónica da Cidade Amada (1964)]. De regresso a Portugal, decide apostar no teatro cómico e na revista à portuguesa, mantendo a presença na televisão e a colaboração pontual como actor de cinema, no filme missionário Uma Vontade Maior (1967) – Carlos Tudela -, na comédia A Maluquinha de Arroios (1970) – Henrique Campos – e, pela quarta vez, num filme de Manuel Guimarães – Lotação Esgotada (1972).
É precisamente com um registo que se começa a esboçar em Lotação Esgotada e que culminará em O Barão de Altamira que quero trabalhar aqui. O que há, portanto, em comum entre o presidente da câmara de Lotação Esgotada, o “chico-esperto” Gabriel da Mota de Malteses, Burgueses e às vezes, o Marquês de Pombal em O Rei das Berlengas, o comissário de policia em O Funeral do Patrão (1975) – Eduardo Geada -, o General de A Confederação (1978) – Luís Galvão Teles – e de Crónica dos Bons Malandros (1984) – Fernando Lopes – ou o aristocrata saudosista D. Diogo de Altamira d’O Barão de Altamira? Um percurso evolutivo que acentua gradualmente a procura de um registo satírico e caricatural onde Artur Semedo explora o humor do absurdo, da ironia, do sarcasmo, do non-sense, do burlesco, da provocação e dos excessos. Não sendo gratuito, este registo serve de meio para conduzir uma atenta e corrosiva crítica social, política, histórica e humana.
Há algo de catártico neste registo que o aproxima da tradição dos jograis medievais, no caso de Semedo muito inscrito no teatro vicentino mais mordaz. Exceptuando o “chico esperto” de Malteses, que ainda assim pode ser visto como uma metáfora da figura histórica do colonizador, Semedo encarna figuras de autoridade para denunciar as arbitrariedades e o sadismo do poder e do seu exercício. Também aqui há uma aproximação ao método vicentino de tipificar genericamente as suas personagens.
Se o registo começa num tom demasiadamente revisteiro com Gabriel da Mota ou demasiado contido do presidente da câmara de Lotação Esgotada, após a queda da ditadura e o fim da censura o tom provocatório acentua-se. O papel de D. Lucas Telmo de Midões, em O Rei das Berlengas, poderia muito bem ter sido interpretado pelo próprio Semedo, tal o estilo manifestamente absurdo e exagerado que essa interpretação carrega. Seguramente, o estilo do actor Artur Semedo não terá sido estranho ao Artur Semedo realizador e director de actores. A escolha de Mário Viegas terá também sido influenciada pela colaboração de ambos enquanto actores em O Funeral do Patrão, onde o registo satírico e subversido é por demais evidente.
Apesar de décadas de trabalho como actor, e de interpretar dezenas de papéis, Artur Semedo criou de tal forma uma persona associada a um registo que mina qualquer forma autoritária com um misto de loucura e de irreverência subversiva. A sua antipatia pela disciplina da autoridade levou-o, ainda jovem, a ser expulso do Colégio Militar, que frequentara por ser descendente de uma família com fortes tradições militares. De resto, é também esse o perfil associado à sua figura pública enquanto comentador desportivo fervorosamente benfiquista ou polemista implacável. A omnipresença da luva preta na mão direita, que se tornaria quase uma marca registada, prolonga o cariz misterioso e ambíguo da sua imagem pública.
Mais sinistra e perversa é a fugaz participação de Semedo como o violento sociopata de A Rosa de Areia (1989), de António Reis e Margarida Cordeiro, ainda que seja possível vislumbrar uma denúncia de um certo marialvismo autoritário e arbitrário. Menos estranha seria a participação especial como o maquiavélico empreiteiro Amadeu Pato na série televisiva Humor de Perdição (1987-88), cujo registo humorístico non sense e caricatural acentuava uma crítia social e política que lhe custaria uma intervenção censória célebre.
Estranhamente, apesar do seu acentuado polemismo, Artur Semedo sempre foi uma figura bastante popular e querida do público. A loucura e a irreverência que assumiu em vários momentos do seu percurso pessoal e artístico valeram-lhe o respeito até dos mais suspeitos (é célebre a sua amizade com o “inimigo” portista Pinto da Costa), ainda que ele não gostasse particularmente de consensos ou de unanimismos. A própria luva preta, imposta por indicação médica, foi sobretudo um simbolo da excentricidade que cultivou na sua intervenção artística e cívica.
Paulo Cunha
Professor na Universidade da Beira Interior e dirigente do Cineclube de Guimarães.