O texto que agora aqui se traduz serve para adicionar Ben Stiller ao panteão dos distintos palhaços walshianos (e com ele mais um capítulo do já extenso dossier que a eles dedicamos, intitulado Na Presença dos Palhaços). Este artigo pertence a Comédie Américaine, Années 2000 (pode adquiri-lo aqui), livro que compila vários textos do crítico francês Emmanuel Burdeau sobre alguns dos nomes que ao longo da última década fizeram da comédia americana coisa séria. Fala-se, além de Stiller, de pessoas como Judd Apatow, Will Ferrell, Louis C.K., Jim Carrey, tudo performers-autores dos quais se corria o risco de marginalizar da história do cinema recente como elos mais fracos.
Emmanuel Burdeau foi um dos nomes fortes dos Cahiers du cinéma entre 2004 e 2009 e colabora actualmente com várias revistas entre as quais a Trafic, Le Magazine Littéraire ou o site Mediapart. É director da colecção Capricci e já publicou várias obras, com destaque para entrevistas com Werner Herzog, Judd Apatow, Luc Moullet ou Monte Hellman. (Carlos Natálio)
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Até à data Ben Stiller é o autor de cinco filmes enquanto realizador. O último, The Secret Life of Walter Mitty (A Vida Secreta de Walter Mitty, 2013), conta uma história familiar, de um homem que parte à procura de uma imagem que ele supõe estar escondida bem longe, em cujos confins ele deve relacioná-la com o coração da civilização. Walter Mitty é iconógrafo para a revista Life, a qual está prestes a transformar-se numa publicação inteiramente digital. Ele deve levar à direcção o negativo 25 de uma fotografia tirada por um indescritível fotógrafo globe-trotter, para ornamentar a capa do último número em papel da revista. Ora, este negativo perdeu-se, extraviou-se. Talvez nem sequer exista. Não o sabemos. O tímido iconógrafo, mais habituado a sonhar a sua vida do que a vive-la, deve então partir à sua procura.
A ideia do filme partiu da novela escrita por James Thurber, também alvo de uma primeira adaptação realizada em 1947 por Normand Z. McLeod com Danny Kaye a fazer de Walter Mitty. Como passar do sonho diurno – day-dream no inglês – à realidade. Não anulando o sonho mas sim empenhando-se para que este sonho se torne real, para que Mitty se transforme num aventureiro. Como passar da imagem ao real, como fazer passar a imagem no real. Como provar a veracidade desta. De tal maneira que ela se reúna ao real, que se torne verdadeira, ou mesmo se torna na própria verdade. Mitty tinha o hábito de se imaginar como astronauta, salvando a sua amada das chamas ou escalando glaciares… Ele vai agora ter a oportunidade de cumprir estes feitos na realidade.
Apesar das nuances new age e do itinerário de uma personagem que se torna um herói pelo contacto com os grandes espaços, com os povos selvagens ou o ar dos cumes, Ben Stiller não quer a dissipação das miragens do “cinema” repatriando-as ao seio de uma dura realidade do “mundo”. A busca de The Secret Life of Walter Mitty conduz a outro lado. É a busca de uma imagem perdida e que é preciso encontrar, de uma imagem mergulhando nas raízes do verdadeiro até se tornar ela própria verdadeira, de uma imagem pela qual esperamos através de um regresso no espaço e no tempo. É a procura, comum a todos dos filmes de Stiller, de uma selvajaria original da aparência.
O primeiro filme que realiza data de 1994 e chama-se Reality Bites (Jovens em Delírio, 1994). Um trio de estudantes deixa a universidade e lança-se à vida. Nada de sério os espera a não ser a montagem de encher chouriços ao estilo MTV de um programa de televisão chamado In Your Face, no qual colabora Leleina, interpretado por Winona Ryder, no apogeu do seu demasiado breve esplendor. O incidente deixará a jovem abatida. Leleina passa dias intermináveis deitada no seu sofá desesperada passando dos infomercials a um spot publicitário que louva dos méritos de um médium que ela acaba por contactar por telefone, ou publicidades a programas de auto-ajuda que o filme seguinte irá retomar. Todo um bric-à-brac transita assim através do pequeno ecrã, toda uma feira descabida, pirosa e agressiva. Reality Bites, In Your Face: morde, bate. O objecto do cinema de Stiller é a imagem, a televisão, mas a imagem que morde, a imagem que bate. A imagem na cara. A imagem que ganha corpo, a imagem como corpo.
Stiller realiza a seguir The Cable Guy (O Melga, 1996). Este seu segundo filme marca o verdadeiro começo cinematográfico de Judd Apatow, co-argumentista do filme, embora não creditado – ele terá reescrito a quase totalidade dos diálogos -, após ter sido cúmplice de Stiller no seu Show difundido pela Fox em 1992-1993. Jim Carrey interpreta o papel do último zappeur, filho espiritual e bastardo de Martin Tupper da série Dream On co-produzido por John Landis, cuja exibição termina nesse mesmo ano de 1996. “The Cable Guy” – o homem não tem outra identidade – é a criatura, a marioneta dos programas com que se empanturrou durante toda a sua infância. Ela chama a televisão de “babysitter” porque era em frente a ela que a mãe o abandonava durante os numerosos serões em que ia para a cidade. Ele maneja um telecomando como Clint Eastwood a pistola – mão vazia, apenas um dedo em riste. Ele acaricia lascivamente a parede à procura do ponto G, do lugar adequado para fazer um buraco para a instalação da TV por cabo. “Television man… Televison man tell me what I am”: o refrão dos Talking Heads serve a Jim Carrey e a Ben Stiller.
A imagem é o nosso corpo. Em 1996, o discurso de Stiller contrasta com os discursos agora em voga sobre a desrealização motivadas pela televisão e pelo cinema. Para ele, pelo contrário, não há nada de mais real do que a imagem. O enunciado, embora simples, comporta um paradoxo: quanto mais os procedimentos tecnológicos são sofisticados – o cabo, a antena parabólica… – mais o corpo que a imagem inventa é original. Quanto mais moderno, mais primitivo. Jim Carrey leva o seu novo amigo, a sofrer de problemas ligadas à sua relação, a um restaurante de inspiração medieval, com a empregada que recebe os clientes chamando-os por “meu senhor”, com nobres corcéis e um torneio em cotas de malha. Aqui já não se trata da questão da televisão; podemos contudo julgar que os efeitos desta – o desejo de ser outro, o marionetismo, a mania das grandezas… – nunca serão tão evidentes como nesta cena em que se dá um salto atrás no tempo, de um pequeno milénio.
Em 2001, Ben Stiller realiza um terceiro filme, Zoolander (2001), cujo argumento faz lembrar Glamorama publicado por Bret Easton Ellis em 1998. E talvez se trate mesmo de uma adaptação disfarçada. O modelo medíocre e “really really really good looking” Derek Zoolander encontra-se implicado numa caso de terrorismo internacional. Para ele a morte pode estar no cimo de um pódio, logo após terminar o palco ou onde a rampa se converte em escadas… Quanto mais é moderno, mais é primitivo, dizíamos nós: há um momento em que Derek Zoolander e o seu ex-rival e agora discípulo interpretado por Owen Wilson encontram um computador Apple da sua fase redonda, do período laranja. Recordemos o ano, para que o presente saiba o que se vai passar a seguir: 2000. Não tendo nenhuma ideia do que é esta máquina, como ligá-la ou o que fazer com ela…, os belos rapazes começam a dançar à sua volta e a bater-lhe por baixo libertando pequenos gritos simiescos. Exactamente como trinta anos antes os primatas abanando-se à volta do negro monólito de 2001: A Space Odyssey (2001: Odisseia no Espaço, 1968).
É pela tecnologia que o homem regressa. Esta agita-se sobre ele como um flash: a máquina serve sempre para regressar no tempo… Derek Zoolander é ignaro, mas ele tem uma noção da crença aborígene segundo a qual a fotografia, longe de ser uma operação inocente equivale a um rapto de alma. Uma feitiçaria está em funcionamento com Stiller. No meio de tantos outros, um extracto de Bewitched (Casei com uma Feiticeira, 1964-1972) atravessa o ecrã de The Cable Guy, e Larry Tate – o patrão de Jean-Pierre, o marido da feiticeira – é um dos nomes da personagem título. Publicidade & hipnose, condicionamento & selvajaria, computador & pré-história: assim é Stiller.
Em 2008 sai Tropic Thunder (Tempestade Tropical, 2008). Em certa parte na Ásia roda-se o filme de guerra mais caro da história. As estrelas são tão ofuscadas pelos seus sponsors, pelos seus clips e próximas passagens na televisão… que se esquecem de decorar as suas falas e de representar para a câmara. Elas têm um papel mas representam-se a si próprias, alimentadas à força pelo dinheiro e pela fama. Ao início o realizador decide apimentar as coisas deixando uma equipa de filmagem reduzida na selva. A superprodução tenta desde logo imitar a telerrealidade: pequenas câmaras DV são dispostas um pouco por todo o lado, colocadas nas árvores ou escondidas na erva; elas filmarão os actores, por assim dizer, abandonados a si próprios. Mas o realizador pisa uma mina – francesa, do tempo da Indochina -, e os actores estrelas ficam a errar pela floresta sozinhos, convencidos a continuar a representar, mesmo tendo-se perdido todo o contacto com o resto da equipa.
Robert Downey Jr. interpreta Kirk Lazarus. Já recompensado pelos Oscars, Lazarus deseja enfrentar um novo desafio encarnando um sargento negro. Para se preparar, antes da rodagem submete-se a uma operação de mudança de pigmentação da pele. Defensor extremista do Método, o actor terá grande dificuldade a abandonar o sotaque e a eloquência da sua personagem. Lazarus não consegue impedir de se mostrar escravo de uma voz trémula em contraste do seu parceiro Alpa Chino, negro verdadeiro. Ele irá cantar blues e proporá cozinhar lagostins ao luar…. Das profundezas de uma memória que não é contudo a sua, Lazarus fará assim entrar à força no corpo o poder de obsessão inerente a uma história.
Por sua vez Ben Stiller interpreta Tugg Speedman actor-atleta em queda de popularidade e em busca de credibilidade. Speedman, disposto a tudo para levar até ao limite uma experiência da qual possa vir a retirar dividendos, será bastante temerário ao querer aventurar-se sozinho da selva. Aí, mata por lapso um panda, animal cuja causa defendia por questões de oportunismo ecológico, algo que os inserts publicitários no meio da carnificina vêm cruamente lembrar. Paciência: o actor fará uma máscara de guerra com a pele da sua vítima, primeira etapa de uma série de metamorfoses. Ao seu agente, com o qual fala por telefone por satélite – Matthew McConaughey no período em que era jeitoso – vai dizer-lhe ter encontrado o Graal e ter passado para o outro lado. Três breves palavras chegarão para confessar a sua revelação: “I am the set”. Eu sou o cinema, eu sou a selva. Eu sou o palco, eu sou a rodagem. Eu tornei-me um animal. Eu tornei-me numa imagem.
O aprendiz de Rambo não tardará a ser feito prisioneiro por perigosos traficantes de droga. Estes tornam-se muito afáveis mal o reconhecem como sendo o herói de Simple Jack, um jovem deficiente mental cuja vida no campo não passa de uma sucessão de dificuldades não tivesse ele um coração de ouro. Sem dinheiro, os bandidos produzirão Speedman/Jack em palco, para grande delírio do seu gang mas não sem antes maltratar a sua nova vedeta uma vez que esta se recusava a cooperar. A regressão, a possessão são atingidas ou quase. Do blockbuster ao cinema verité ou à telerrealidade. E daí à desaparição da câmara: “I am the set”. E daí ainda a um teatro de ocasião, originário, primordial. De Hollywood à selva. Do sonho de obter um Oscar – que por pouco não ganhava com Simple Jack, insucesso do qual Lazarus conhece a causa: não se pode nunca representar papéis de deficientes mentais completos – à estatueta mítica fabricada com uns fios de palha pelo filho de um traficante. Da estrela ao resíduo, ou ao santo: Speedman é de agora em diante os dois, aquele que veneramos e aquele que vaiamos. Lazarus encoraja-o a obter o que ele apelida de “Real Hits”: verdadeiros sucessos, mas também verdadeiros golpes, sendo que para Stiller uns são necessariamente também os outros. Assunto resolvido.
Tropic Thunder evoca uma gigante reescrita de Jean Rouch ou de Werner Herzog. Pensamos no transe investigado pelo primeiro. Pensamos na verdade extasiada elogiada desde sempre pelo segundo. E para mais há uns anos que Herzog reclama que o consideremos um cineasta cómico. Será essa a razão pela qual o seu blusão de aviador aparece recentemente num episódio de Parks & Recreation? Em todo o caso, Grizzly Man (2005) e Tropic Thunder rimam um com o outro. Stiller simula pendurar câmaras nas árvores e deixar os actores em plena natureza; Herzog dá a ver os vídeos deixados aquando da sua morte por Timothy Treadwell, um gentil iluminado que os ursos devoraram. Grizzly Man e Tropic Thunder constituiriam uma excelente sessão dupla para revelar o grande documentarismo da época, o estatuto contemporâneo do filme perdido ou encontrado, as festas do riso e da selvajaria, o animal e o seu teatro.
A arte de Stiller é por sua vez um transe e um êxtase. Ele liga-se à representação passada no corpo, à incorporação do espectáculo, a um devir físico da imagem que ele olha como uma marcha atrás no tempo histórico. Sempre cada vez mais atrás, esse regresso, até à descoberta de uma cena de possessão original. Cena ou não cena, palcos em qualquer parte, toda a distância estética adormecida, segundo um outro prudente conselho de Lazarus. Teatro ou anti-teatro. Ancestral, xamânico, divinatório. Cinema-natureza, teatro-natureza.
The Secret Life continua e precisa este trabalho. Walter Mitty percorre milhares de quilómetros à procura da fotografia. Ele deixa os escritórios de vidro da revista Life para ir à Islândia e depois aos mais altos cumes do mundo. Ele tornar-se-á um verdadeiro homem, hirsuto e bronzeado. Contudo, qualquer coisa mudou desde Reality ou The Cable Guy: o digital surgiu conquistando o cinema e o mundo, acabado por meter um no outro. A contradição é portanto apenas aparente entre o moderno e o primitivo, entre um genérico feito em computador com os créditos a incrustar-se em Nova Iorque – como os de Panic Room (Sala de Pânico, 2002) de David Fincher quinze anos antes -, e a aspiração a uma natureza liberta de computadores, de máquinas, talvez mesmo da escrita. O digital não é de facto nada mais do que uma nova era da tecnologia. É também o desaparecimento da maquinaria cinematográfica por via da miniaturização, um certo apagamento da visibilidade em si, ou mesmo da existência.
O fotógrafo ao qual Sean Penn empresta o seu olho azul explicará a Mitty que por vezes decide não tirar nenhuma fotografia, olha pela objectiva mas não carrega no botão – o que está prestes (a não) fazer, com um leopardo das neves. Podemos por vezes querer abstrair-nos do sortilégio da imagem. Ou mesmo querer ser capturados por uma imagem sem termos a necessidade de a fazer nossa. A regressão não é uma fatalidade, é um ideal. Uma vitória vem premiar um longo caminho. Ele aparecerá assim, in extremis, que é Mitty ele mesmo o sujeito da tão desejada fotografia, o pequeno homem sentado na beira de uma fonte a dois passos do seu escritório, ocupado a observar com atenção os últimos negativos. Quanto a Tugg Speedman ele ganhará finalmente o Oscar que tanto esperava pelo seu papel num filme inspirado nas suas aventuras na selva.
Propus noutro lugar, numa série de artigos para a revista Trafic, uma reflexão consagrada ao cinema total que surgiu com o digital e a proliferação das câmaras pessoais, com a crescente variedade da disponibilidade de imagens online, com a possibilidade de filmar tudo e filmar todo o tempo, sem restrições materiais impostas anteriormente pela película… “Record du monde” foi o título que dei a esse trabalho. A expressão brinca com o verbo inglês to record, para sugerir que podemos daqui em diante registar o mundo inteiro. E joga ainda com outro sentido, o sentido desportivo de “recorde”, para indicar o quanto o cinema usa o digital para criar novos precedentes, aumentando sem parar o número de imagens e a extensão do território coberta por elas. A obra de Ben Stiller tem o seu lugar nesta perspectiva. O seu primitivismo exacerbado surge como primeiro sintoma do contemporâneo. A imagem está por toda a parte nesta obra, e desde logo aqui mesmo, à flor da pele, correndo sob a superfície, como uma vida secreta prestes a levantar-se para se substituir à verdadeira.
Emmanuel Burdeau
(tradução de Carlos Natálio)