José Marmeleira é crítico de arte e cultura no jornal Público. No ano passado, escreveu para o suplemento cultural Ípsilon dois pequenos textos sobre Charles Chaplin, acompanhando algumas efemérides que celebraram os cem anos sobre o nascimento da personagem do “vagabundo”. Convidámo-lo a republicar excertos dos textos «A Voz de Charlot não se calou» e «Chaplin Hoje» sob uma forma mais adaptada a este seu novo propósito. Agradecemos ao nosso amigo José esta oportunidade. (Luís Mendonça)
Em “Chaplin Hoje” [DVD editado pela Midas Filmes], Bernardo Bertolucci entende na morte de Calvero, o palhaço de Limelight (As Luzes da Ribalta, 1953), a morte do próprio Charlie Chaplin, e chama a atenção do espectador para um detalhe: o pano que cobre o rosto de palhaço envelhecido e esquecido não é um lençol, sugere, mas uma tela branca, a tela branca de cinema. O que quererá ao certo dizer? Que morreu Chaplin, morreu o cinema? Na sua última frase, apesar de ambígua, o realizador italiano fala da possibilidade de um renascimento, mas não o descreve. Deixa-nos apenas a sequência da dança musicada por Chaplin.
Quando rodou Limelight, Chaplin já não era uma figura querida pelas autoridades americanas. O macarthismo transformara-o num inimigo do país no qual se afirmara como artista, autor e comediante. Os efeitos desse antagonismo figuram emocionalmente em vários filmes, como sombra primeiro, como trauma depois. Chaplin faz A King in New York (Um Rei em Nova Iorque, 1957), filme político chama-lhe Jim Jarmusch, que nele se revê (a propósito, há uma linhagem curiosa a assinalar entre ambos), mas sobretudo amargo, dorido, complexo. Como também era o homem por detrás do artista, esse “pai difícil” que, diz Michael Chaplin (nesse filme, a criança a quem os autoridades roubaram os pais comunistas), encarnava um marginal no cinema, mas detestava ver as gralhas a picarem a relva da sua casa na Suíça. Em Monsieur Verdoux (O Barba Azul, 1947) Claude Chabrol descreve-o como um cineasta moderno. Não era um técnico irrepreensível, mas repetia as cenas incansavelmente até encontrar a imagem e o tempo certos. Um criador fabuloso e um autor inteligente, arguto, que coloca na boca de Monsier Verdoux a frase terrível: “Os números consagram” ou que em resposta à acusação de assassino e ladrão, faz aquele responder “Não, só faço negócios”. Se em Limelight morreria Chaplin, em Monsieur Verdoux era Charlot que desaparecia, na guilhotina, remata Chabrol.
Cem anos. Charlot, o vagabundo, o palhaço, o pobretana, fez, em 2014, um século de vida. E, vagarosas, discretas, as celebrações sucederam-se. A Cinemateca Francesa dedicou à personagem um ciclo e o Teatro São Carlos concebeu um programa de concertos e projecções que resgatam o Charlie Chaplin compositor. Charlot regressou ao museu ou, pior, os seus sorrisos e espasmos afogaram-se noutras imagens. Destino estúpido e injusto? Para os que se contentam com a exclusão da arte e da cultura (e são tantos hoje, embriagados pela utilidade e a “ciência”) é merecida. Quem acredita hoje que o cinema ensina e diz alguma coisa sobre o homem e a vida? Que permanece um repositório precioso do conhecimento e da memória? Serão poucos, ouvem-se pouco.
Mas na primeira metade do século XX constituíam uma pequena e culta multidão que o cinema de Charlot aproximava, sem prejuízo das opiniões contrárias, das abordagens distintas, do grau de simpatia que Modern Times (Tempos Modernos, 1936) ou as curtas-metragens nela provocavam. Não era formada por cinéfilos, mas por autores que se entusiasmaram, que se irritaram, que se interrogavam com as pantominas, com os fins felizes, com o corpo que reproduzia e coiceava a mecanização, com as gargalhadas que ecoavam nas salas. Admita-se que os filmes de Charlot interpelaram num e um tempo – o da modernização, do aparecimento das novas tecnologias de comunicação e de uma certa racionalização do mundo, do afrouxamento dos laços sociais – mas nada garante que já não o façam hoje. Cinema mudo? Mudos vão ficando aqueles que os esqueceram ou que não o querem, não o sabem ver.
O historiador de arte Elie Faure viu. Em Charlot (1922) confessava não saber definir o que aprendera com a personagem. “Porque sempre que ele me surge, tenho uma sensação de equilíbrio e de convicção que me liberta as ideias e me liberta a razão”, escrevia. “Revela-me aquilo que tenho em mim. O que tenho em mim de mais verdadeiro. Ou seja, de mais humano. Não é excepcional que um homem consiga falar a outro homem?”. Faure aplaudiu, também, a facilidade com que Charlot se ria de si próprio, rindo-se de todos nós, libertando-nos do peso da vaidade, impondo uma vitória do espírito sobre o tormento. Nestes elogios, e, a bem dizer, no artigo do autor francês, vislumbravam-se já dois Charlots: um, transgressivo, anti-romântico, homem do espírito moderno, que glorificava a acção e será abraçado pelas vanguardas artísticas; o outro, que faz rir numa confissão fraterna; que, considera o surrealista sérvio Dušan Matić, descobre a verdade na ternura e na solidão, que dá uma forma aos pensamentos e emoções dos espectadores. Isto era uma impossibilidade para o pensador alemão Theodor Adorno e o seu juízo não podia ser mais categórico: as gargalhadas numa sala de cinema estavam encharcadas do pior sadismo burguês. No seu entender, a americanização da cultura não mostrava duas faces. Apenas uma: a da barbárie (exagerou, mas, infelizmente não muito).
Nos anos loucos e violentos que precederam o fim da da República de Weimar, Benjamin tinha uma visão diferente. Encontrava na experiência colectiva e visceral do slapstick uma função terapêutica que alienava as massas dos seus líderes: Charlot era o oposto de Hitler ou de outros ditadores. Mas o ensaísta ia mais longe, introduzindo na sua reflexão sobre a modernidade a própria personagem. Ao mimetizar, ao reproduzir no corpo os efeitos da tecnologia, da linha de montagem, das máquinas, o vagabundo representava a auto-alienação do sujeito na nova sociedade. Tornava-a legível, desnudava-a. E esta é uma das melhores ideias que Benjamin nos deixa no âmbito de uma crítica cultural provocada pelo cinema. Outro autor, Siegfried Kracauer, participou deste debate. Ligado a Adorno e Benjamin por laços profissionais e de amizade, descrevia Charlot como um deslocado (um emigrante, um exilado) e um marginal do conto de fadas que “sabe que o conto de fadas não dura para sempre, que o mundo é o mundo e que aquela casa não é a sua casa”. Mas desta tragédia, lembrava Kracauer, sobreviviam a (im)possibilidade de um humanismo utópico e a consciência de que se o mundo continuava a ser como era, podia também ser diferente. Kracauer era mais optimista do que os seus colegas e amigos. A facilidade com que Chaplin chegava a países e culturas diferentes, levá-lo-ia imaginar o nascimento de uma linguagem universal que criaria, por via do mimetismo (da imitação desarmante, que troçava dos fortes e do poderosos), um horizonte onde as pessoas poderiam suportar, com menos sofrimento e confusão, todas as violências que a modernização lhes impunha. Quase um século depois, esta ideia fragilizou-se. Charlot será pouco que mais uma imagem que flui entre tantas, tantas outras. Mas sempre que tropeça num espectador ou se interrompe numa sala, volta a desejar a mesma coisa. “Exaltar o poder de resistência daqueles que parecem fracos”. Com loucura e felicidade.
José Marmeleira