No seu filme anterior, Après Mai (Depois de Maio, 2012), Olivier Assayas reconstituía a sua juventude (pós-)revolucionária. O cineasta francês nem se esforçava muito para esconder a autobiografia – o nome do protagonista podia não ser o seu, mas a história era demasiado semelhante à sua. Nesse sentido, era de leitura fácil. Pelo contrário, em Clouds of Sils Maria (As Nuvens de Sils Maria, 2014), Assayas diverte-se a brincar com várias camadas de interpretação, jogando com as expectativas e o conhecimento do espectador, pegando na “vida real” das actrizes.
Simplificando (ou rebuscando), Clouds of Sils Maria funciona em três níveis, que poderão ou não corresponder às três partes em que o filme se divide (contando com o epílogo) ou até mesmo às três actrizes principais – Juliette Binoche, Kristen Stewart, Chloë Grace Moretz: subtexto, texto e hipertexto. Boa parte (a melhor parte) das obras de ficção funcionam textual e sub-textualmente, é certo, mas raras vezes o subtexto é tão explícito e o texto tão fugidio e misterioso. Já o hipertexto é, acima de tudo, um exercício meta não muito surpreendente, talvez o “texto” mais desinteressante.
Elaboro:
E Kristen Stewart, de longe a presença (transformada em ausência) mais desconcertante, faz de vazio. Ela representa o mistério, o não-dito, um buraco negro que absorve tudo em volta.
Subtexto. Na segunda parte do filme, Maria Enders, consagradíssima actriz francesa, e a sua jovem assistente pessoal Valentine assentam arraiais num chalet nos Alpes suíços, quando a primeira se prepara para ensaiar Cobra de Maloja, peça de teatro do falecido (na primeira parte, fora de cena) Wilhelm Melchior que lançara a sua carreira. Pelo que se vai ouvindo dos diálogos, a peça é incaracteristicamente óbvia (para obra tão conceituada): sem grandes subtilezas, trata da relação entre uma empresária de meia-idade e a jovem assistente que a seduz e a leva à ruína e ao suicídio. Ainda principiante, Maria interpretara o mais suculento papel da assistente. Agora, vê-se no papel da outra, vulnerável e decadente, obrigando-se a lidar com o envelhecimento e a previsível (inevitável) perda do lugar debaixo das luzes da ribalta. A sua assistente, entretanto, é convocada para ler o papel de assistente consigo, diálogos que comentam (ou criam) a tensão sexual entre as duas.
Texto. Porém, a relação entre Maria e Valentine é bem mais complexa do que a da peça (ou seja, Clouds of Sils Maria é mais bem escrito do que Cobra de Maloja). Primeiro, nada tem de abertamente sexual, apesar de alguns olhares e contactos. Quando muito, representa o recalcamento do desejo, quando na peça as personagens se entregavam desenfreadamente/loucamente a este. Depois, é retratada com uma ambiguidade crescentemente assustadora. Nunca se sabe muito quem depende mais de quem, se a actriz à beira de um ataque de nervos ou a assistente à procura de uma figura maternal, se a actriz condescendente ou a assistente despreocupada e arisca. Nesta mise en abyme, os papéis confundem-se, trocam-se, justapõem-se, lembrando o famoso plano de Persona (Máscara, 1966) de Ingmar Bergman, no qual os rostos de Bibi Andersson e Liv Ullman se tornam num só. Ou, mais taxativamente, o confronto entre Charlotte Rampling e Ludivine Sagnier em Swimming Pool (2003). Como no filme de François Ozon, estabelece-se uma “luta de idades”, entre a alta cultura da meia-idade (da meia-classe) e a baixa cultura juvenil, da mitologia dos super-heróis (os novos deuses gregos).
Hipertexto. Essa batalha das idades é clara na oposição entre a primeira parte do filme e o epílogo. Na primeira parte, o fulcro é o círculo do dramaturgo eremita, da grande actriz francesa, do velho actor mulherengo. É o mundo dos jantares oficiais e da pompa dos festivais de cinema. O mundo de Maria. As redes sociais, os escândalos instantâneos, os paparazzi irrompem pelo epílogo. Jo-Ann Ellis, nova coqueluche de Hollywood, heroína de blockbusters em busca do prestígio do teatro, contratada para interpretar o papel da assistente atrai e arrasta esses elementos, onde quer que vá. É uma crítica pouco original (vista e revista) aos bastidores do espectáculo. Bem mais curiosa é a escolha do elenco de Clouds of Sils Maria. Juliette Binoche faz de Juliette Binoche, numa versão mais tolerável, porque desarmada, do que o habitual (Binoche resvala em alguns filmes para o tal papel de “grande actriz francesa”). Chloë Grace Moretz, estrela em ascensão no cinema norte-americano, faz de Kristen Stewart, cuja vida privada é uma instituição pública. E Kristen Stewart, de longe a presença (transformada em ausência) mais desconcertante, faz de vazio. Ela representa o mistério, o não-dito, um buraco negro que absorve tudo em volta. Sem ela, Clouds of Sils Maria seria apenas um exercício pós-moderno engraçadote (aliás, é o que acaba por ser lá para o fim). Com ela, é algo mais, inefável.