Os primeiros dois dias do Festival foram dominados pela antestreia nacional do filme de Miguel Gomes. Não deixa de ser uma iniciativa insólita para um Festival de curtas-metragens começar com um filme de seis horas, como notou o próprio Miguel Gomes, mas resultou em pleno. Desta vez não houve cachecol, mas a verdade é que, mesmo antes do filme ter começado, já o público presente estava conquistado: as breves palavras de Gomes a agradecer a Vila do Conde pelo Festival que marcou o seu percurso (“há 16 anos apresentei aqui um filme muito mau, mas espero entretanto ter melhorado”), e a invasão do palco que se seguiu à medida que Gomes chamava actores (e os muitos actores não profissionais, recrutados pelo filme) e membros da produção envolvidos, deram o mote para o que se seguiu. Divididas as seis horas de filme em três volumes, estes começam com um pequeno texto introdutório, que explica que o filme é uma adaptação não do livro mas da estrutura de As Mil e Uma Noites, e o retrato de um país debaixo de um regime de austeridade, de um governo desprovido de justiça social, através do qual “quase todos os portugueses empobreceram”. Além da divisão por volumes, estes dividem-se em diferentes episódios, como uma colecção de contos.
As Mil e Uma Noites – Volume 1 – O Inquieto (2015) começa desde logo nos estaleiros de Viana do Castelo, com diferentes trabalhadores a contarem em narração como foi o seu primeiro dia, enquanto vemos imagens elegíacas dos últimos dias do estaleiro. Com as notícias de um despedimento colectivo de 600 trabalhadores a ensombrarem o presente, aparece o próprio Miguel Gomes sentado numa esplanada, absorto nos seus pensamentos, que ouvimos em off. Como filmar ficção quando a realidade à sua frente era tão sombria? Pela sua voz, ouvimos Gomes dizer que “sinto que estou no olho do furacão, num beco sem saída”. Como fazer um filme militante sobre a crise económica que assola o país, e fazer outro filme de fábulas desligadas da realidade? Perante esta indefinição, Gomes levanta-se e começa a correr, a fugir primeiro da câmara, e depois do próprio filme, com a sua equipa em perseguição. É como se a realidade não fosse suficiente, como se fosse necessário brincar com a verdade, fantasiar a realidade, para a poder encarar, de tão absurda que parece.
Depois da fuga de Gomes do próprio filme, que fica sem realizador, sucedem-se as imagens filmadas em Viana, das manifestações dos trabalhadores do estaleiro, das festas da cidade, e dos próprios estaleiros com os dias contados. Um apicultor, que inventa um método para destruir ninhos de vespas, uma praga que tanto aflige outros apicultores na região, acrescenta: “este país é só um, e nós estamos todos divididos aos bocadinhos”. Este episódio acaba com a captura de Gomes. Enterrado na areia, apenas com a cabeça de fora, implora com os seus captores que o ouçam antes de o julgar, porque tem histórias incríveis para contar, que irão cativar a atenção de quem o ouve, e assim adiar o seu castigo. Gomes dá assim lugar a Xerazade, a rainha que contaria histórias ao rei persa durante mil e uma noites, para adiar também o seu destino e manter-se viva, histórias que deixava em aberto para até à noite seguinte. É Xerazade quem assume a autoria das histórias, mas na realidade é uma representante de Gomes, que assim ao longo das seis horas do filme, procura prolongar o seu fim, apelando à curiosidade do espectador.
Dos vários episódios que formam o primeiro volume, há dois que se destacam. “Os homens de pau-feito” é o mais insano, que posiciona o filme como sátira política, como se perante o absurdo da realidade, o riso fosse o único remédio. Imaginando uma reunião entre membros da troika e representantes portugueses, Gomes parece querer questionar a má ficção que os políticos usam para justificar as suas acções, contrapondo uma ficção delirante, como única resposta possível. À medida que um sindicalista vai insultando os membros da troika, um primeiro-ministro de fingir e a sua ministra das Finanças consentem aos seus pedidos, pouco preocupados. Perante a intransigência dos negociadores, partem todos para um passeio de camelo(s), onde encontram um feiticeiro que promete resolver os problemas destes homens, que se sentem impotentes para impor a sua vontade sobre outros, oferecendo-lhes um estimulante sexual. Revigorados por esta cura, os homens parecem esquecer as medidas que queriam impor, e um deles chega a afirmar que sente que “o mundo gira à volta do meu pénis”, uma frase ilustrativa da mentalidade masculina.
Se este episódio assume contornos de fantasia alucinada, o episódio seguinte, “A história do Galo e do Fogo” apresenta uma história não menos absurda, mas baseada num caso verídico: um galo que foi julgado em tribunal, porque cantava demasiado durante a noite e impedia o sono dos vizinhos. Gomes recorre aqui a habitantes de Resende, transformados em actores de uma ficção ancorada assim no quotidiano desta vila, entre conversas à volta do destino do galo, e as festas da aldeia que confundem-se com as eleições autárquicas. A história do galo é um pretexto para um desvio para outro conto, sobre um triângulo amoroso entre um rapaz, uma rapariga voluntária nos bombeiros locais, e uma outra rapariga, que com ciúmes, ateia fogos nos bosques envolventes. Numa alegoria sobre um país que reduz-se ciclicamente ao flagelo do fogo todos os verões, aqui explicado com motivações de amor adolescente, Gomes dá alguma ligeireza ao tema com a abordagem do romance, especialmente por tratar a comunicação entre os três através de sms que aparecem no ecrã. O folclore deste episódio é reforçado pela intervenção do galo, numa evocação ao esoterismo de Loong Boonmee raleuk chat (O Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores, 2010), não estivesse a fotografia do filme a cargo de Sayombhu Mukdeeprom, colaborador frequente de Apichatpong Weerasethakul.
Miguel Gomes tinha avisado que As Mil e Uma Noites – Volume 2 – O Desolado (2015) era diferente do primeiro, e isso fica desde logo evidente pelos contornos deprimentes do primeiro episódio, uma recriação da história de Manuel Palito, talvez o episódio mais conhecido do público. Se a fantasia surge neste episódio de forma estranha e furtiva, apenas para ilustrar um delírio do próprio Palito, a realidade aqui apresentada marca um caminho mais pessimista para As Mil e Uma Noites mesmo que desfeito temporariamente pela conclusão do episódio, que parece surreal, mas é apenas inacreditável. As mudanças de rumo dentro do próprio filme continuam com o episódio seguinte, um julgamento público, que é um desfiar de um novelo narrativo, em que diversas histórias se encadeiam de forma delirante, numa verdadeira proeza de escrita. A verdade é mais estranha que a ficção, e o filme aproxima-se aqui da verdade de um país que só podia ser inventado, mas que é bem real. Este volume acaba porém com um episódio melancólico, ao abordar um pacto de suicídio entre um casal idoso. Utilizando um cão como elemento de ligação entre esse casal e outro que parece caminhar para ocupar o mesmo destino, o filme detém-se em prédios de vidas vazias, onde as pessoas vão desaparecendo tal como um país, e aproxima-se do sentimento das comédias amargas de algum cinema romeno recente.
Miguel Gomes voltou a avisar que As Mil e Uma Noites – Volume 3 – O Encantado (2015) era diferente, e na verdade é um gesto quase radical quando comparado com os volumes anteriores. Aqui a fantasia e a realidade aparecem separadas, e assim exacerbadas, em dois episódios distintos. Na primeira parte, o filme debruça-se sobre a história de Xerazade e as suas deambulações por Baghdad, enquanto esta sonha com os dramas do outro lado do mundo, inquietação que confessa ao pai num magnífico plano numa roda gigante. No fundo sente-se presa ao seu destino, incapaz de fugir para longe, e perde aos poucos a inspiração para imaginar outras histórias, e o filme ressente-se desse sentimento ao dedicar-se apenas a outro episódio.
Numa abordagem quase documental, o filme apresenta uma série de retratos dos membros de uma comunidade de passarinheiros, homens que treinam aves para cantarem. Esta sub-sub-cultura espanta pelo alheamento total destes homens que dedicam-se àquela actividade, como se não existisse mais nada, e pela atenção que a câmara de Gomes lhes dá. Como que debaixo de um feitiço das aves, encantados, estes homens estão removidos da realidade à sua volta, distraídos. O filme assume-se finalmente como Xerazade, como nosso encantador, e como agente destruidor dos dois primeiros volumes, se acabarmos por acreditar que a ficção ou o distanciamento é solução. Somos como os pássaros, presos numa gaiola, sem ver o mundo, sem fuga, ou somos como os homens, encantados pelos pássaros, que distraídos pelo folclore de notícias absurdas sobre o país, não vêem o mais importante? Mais do que apresentar respostas, o filme incita ao pensamento, pede respostas do espectador. Se voltarmos ao dilema inicial de Miguel Gomes, antes de fugir, é afinal o filme, que na sua própria metamorfose, assuma a sua própria impossibilidade.
No primeiro dia da competição nacional, o primeiro filme exibido foi Amélia & Duarte (2015) de Alice Guimarães e Mónica Santos. Uma animação inventiva que usa stills de imagens reais com actores, como se tratasse de uma animação de barro com figuras humanas, é repleta de ideias visuais na sua descrição de dois corações partidos, cuja curta duração serve o propósito de uma história simples mas imaginativa. Rampa (2015) de Margarida Lucas é um primeiro filme, e uma produção em nome próprio. Ancorado numa narrativa tradicional, conta a história de uma rapariga adolescente que fica sem casa a meio do divórcio dos pais, abandonada à sua sorte. Se o argumento é o ponto menos forte do filme, com alguma ingenuidade e lugares comuns, em particular nos diálogos, não faltam ideias visuais interessantes: desde um primeiro plano-sequência, quando a rapariga sai do seu quarto e parece estar num filme de Michel Gondry, até ao uso da escala, com a personagem principal a ser frequentemente filmada de longe, para acentuar o espaço vazio à sua volta e a sua solidão.
Outro primeiro filme, e outro autor que parece ainda à procura de uma voz própria, é Viagem (2015) de José Magro. O filme segue um dia de um rapaz em estado de inquietação, que decide pedir emprestado o táxi do pai sem este saber, para quebrar o marasmo. Este gesto de transgressão parece ser imitado pelo filme, de duas formas: tematicamente, ao filmar personagens marginais e actos de transgressão, e formalmente, na maneira como filma as personagens, com uma câmara solta, de movimentos rápidos, em que corta frequentemente as caras dos actores fora da composição, contra as regras. É como se o próprio autor procurasse marcar posição com um movimento transgressivo, como se pegasse na câmara para dar uma volta rebelde.
Exercício formal e abstracto são palavras normalmente associadas às curtas-metragens de Sandro Aguilar, e esse registo contínua presente em Bunker (2015). Se o filme apresentado não é inovador, mesmo que monocórdico, é brilhante na sua execução, em particular pela fotografia a preto e branco e no uso da montagem, como na fenomenal cena inicial, onde uma amálgama de corpos em transe funde-se na escuridão e na rápida sucessão de planos. É uma exploração minuciosa dos corpos das personagens como natureza própria, através de jogos de luz e sombras, de gestos bruscos e sons ofuscados. Sem narrativa clara, vive de momentos isolados e imagens assombrosas, indefinidas, que alternam visualmente entre o poético e o grotesco, e que cercam o espectador, retiram espaço para respirar.
O segundo dia de competição começou com A Torre (2015) de Salomé Lamas, uma curta que nasceu do processo de preparação de uma longa-metragem. Um pequeno filme-objecto conceptual, resulta precisamente pelo seu espectro reduzido e pelo mistério criado. É um filme a dois movimentos apenas: primeiro, um passeio pelos bosques de um homem sozinho, filmado ora por trás, ora a olhar para o céu encoberto pelas árvores, ora em silêncio, ora com notas soltas de música. Depois, um longo plano fixo que se vai aproximando lentamente de uma árvore, até revelar o homem no topo dessa árvore. Se primeiro a figura destaca-se da natureza, depois entranha-se, num feitiço hipnótico do filme, e fica a pergunta: o que procura aquele homem? Outro filme que também é fruto da pesquisa para uma longa-metragem, e que também poderia estar na competição experimental, é Acorda, Leviatã (2015) de Carlos Conceição. Igualmente um exercício conceptual, que começa como um documentário, com imagens da água nos rios ou mar, de natureza viva, pelo menos até ao um pôr-do-sol. O estilo documental dá lugar a um plano da Terra e a uma viagem pelas estrelas com música pop, para revelar um astronauta de regresso a um planeta agora repleto de desertos. Se há uma utilização interessante destas paisagens áridas por onde caminha o solitário personagem, e um fascínio pelo vazio que encontra, falta-lhe o mistério e o ambiente do filme de Salomé Lamas, para ser mais que um exercício intrigante.
Já Rosa (2015) de Francisco Neffe é um filme de narrativa tradicional. O filme, um projecto de fim de curso, destaca-se sobretudo pela performance de Ana Moreira, que interpreta aqui uma mulher (Rosa) em ponto de ebulição. Filme sobre um pequeno momento quotidiano, uma disputa entre um casal em processo de separação e a luta pela filha de ambos, é um exercício eficaz, que revela um olhar seguro do seu realizador. Isso é sobretudo evidente na forma como a câmara segue compulsivamente a sua personagem principal, na troca de olhares durante uma discussão, e no ritmo que imita a ansiedade nervosa exibida por Moreira – esta não consegue parar quieta, e a câmara também não. Rosa fica fechada num quarto e o filme perde fôlego e imaginação à medida que caminha para o fim. Se outros filmes deste segmento estariam mais adequados numa secção experimental, Mined Soil (2014) de Filipa César seria porventura mais indicado para uma sala de um museu, do que para uma sala de cinema. Se um filme sobre a erosão do solo alentejano parece uma proposta difícil, este é apenas um dos problemas do filme. Longe do seu filme Conakry (2012), a forma escolhida para ilustrar a pesquisa do tema não ajuda: as imagens projectadas numa tela são repetitivas e pouco apelativas, e a presença da realizadora sentada à frente da tela, enquanto lê textos ou pesquisa num tablet diferentes conceitos torna-se uma distracção.
No terceiro dia de competição nacional, o primeiro filme apresentado foi Cliff (2015), de Paulo Abreu. Um pequeno filme de aspecto artesanal, é um enigmático exercício na construção de uma atmosfera sensorial. Acompanhando uma figura misteriosa, uma mulher invisual, à medida que avança por entre paisagens agrestes, é uma interessante ilustração de claustrofobia, mas pouco mais. Se os primeiros dias da competição nacional foram marcados por filmes conceptuais, a narrativa tradicional teve o seu primeiro momento alto com Tenho Um Rosto Para Ser Amado (2015), primeiro filme de Francisco Valente. Um retrato geracional, é marcado por um olhar elegíaco e melancólico em relação aos jovens que vão abandonando o país, e dos que ficam para trás. Esse abandono é aqui ilustrado através do fim de uma relação, e das deambulações do rapaz que fica sozinho, nas visitas solitárias a museus e ao teatro, como se a arte fosse um último refúgio. Entre memórias que confundem-se com o presente, a câmara detém-se frequentemente no rosto do rapaz, à medida que o mundo passa por ele, num filme que evoca referências ao próprio cinema, a outros amores de cinema – quando a rapariga se despede, vemos um plano de um cinema fechado, a melhor imagem do filme. Se por vezes a edição é desequilibrada, o filme parece encontrar o seu ritmo perto do final, num encontro demorado a dois, e num olhar para o mar, sublinhado por uma música, uma escolha feliz como conclusão.
Cem Raios t’Abram (2015) do colectivo Cem Raios t’Abram é um objecto insólito, uma homenagem à serra sob a forma de uma colagem de imagens da natureza e dos seus elementos. À medida que se sucedem imagens de aspecto artesanal, onde passeiam-se criaturas bizarras e a câmara imita os seus movimentos, a narração divaga entre fragmentos esotéricos, desconexos. O melhor filme até agora, e pela recepção da sala, diria até candidato a vencedor, pertence a Jorge Quintela, com Sobre El Cielo (2015). Aproveitando as paisagens de estranhas ruínas da ilha de Lanzarote, e um notável trabalho de sonoplastia e banda sonora, Quintela, vencedor do Grande Prémio do Festival em 2013, apresenta aqui um imaginativo e inebriante retrato de personagens sucumbidas a um local onde parecem acontecer coisas inexplicáveis. Mesmo sem contextualizar a acção, o filme revela imagens de uma beleza intrínseca, construindo um ambiente complexo a partir de diversos elementos, como a imagem de um barco naufragado ou as diferentes frases pintadas como murais, enquanto que ouvimos diferentes sinais de rádio que transportam vozes enigmáticas. Acompanhando o trajecto de um homem que não sai do sítio, e de um casal improvisado, se há imagens que destacam-se – como um jantar num carro para assistir a uma erupção vulcânica, ou um plano filmado de longe que vai aproximando-se da praia para ser contrariado pelo plano seguinte – o que fica é um objecto estranho e memorável.