Não é difícil sustentar justificadamente esta descoberta recente: o melhor festival de cinema que existe em Portugal é o Curtas Vila do Conde. E se sabe particularmente bem afirmá-lo com as vistas postas num país cujo panorama artístico tende a ser tão viciosamente concêntrico, é ainda melhor reconhecer esta verdade a um festival que, em primeiro lugar, acontece visivelmente segundo a liberdade de sair dos próprios moldes – e é garantido que por nunca por lá veremos somente curtas-metragens. (Tanto assim é, que a edição deste ano se iniciou com a antestreia nacional da portentosa trilogia de Miguel Gomes, As Mil e Uma Noites.)
Aqui está o exemplo de um grande festival que cresce, sob todos os pontos de vista, sem fronteiras. Volvidos 23 anos sobre um festival que para si construiu internacionalmente um lugar de destaque, assente numa permanente programação de risco e de descoberta, a mais recente selecção é sinónimo de juventude, entre nomes firmados e a continuada aposta nos estreantes, portugueses e estrangeiros. O rasgo de uma visão transversal do cinema conduz uma programação consistente, que vai do cinema de ficção à animação, do documental ao experimental, numa abordagem que procura esbater as fronteiras entre as artes.
Contra a lógica massiva das extensas programações que dominam os grandes festivais metropolitanos e paralisam à partida a vontade de ver, em Vila do Conde a programação constrói-se para um seguimento conveniente das propostas, num alinhamento onde há poucas sobreposições e todas acontecem no mesmo local. Porque, face à Internet, são hoje os festivais de cinema (e pouco mais) os últimos redutos da cinefilia no mundo físico (lugares de encontro de espectadores, realizadores, produtores, programadores, actores e críticos), é indispensável alimentar um debate que, em primeiro lugar, está dependente da conjugação mínima de denominadores comuns – quando, na era de todos os acessos, a formação cinéfila de cada um é diferente da do seu par, é importante que, por momentos, a discussão se centre em objectos sobre os quais a atenção é uníssona, e aqui há diariamente lugar marcado para estas conversas, em masterclasses, pós-visionamentos e eventos vários.
Viver a semana Curtas sabe a estágio cinéfilo intensivo, num espírito que por cá tem como paralelo o Doc’s Kingdom, a itinerante mostra de cinema documental que, do mesmo modo, se guia por uma lógica descentralizadora da macrocefalia urbana e convida à imersão. Toda a pequena localidade costeira de Vila do Conde é envolvida pelo Festival, animando-se verdadeiramente por este espírito de cinema: as lojas competem oficialmente pela melhor montra temática e quase em cada porta se encontra uma alusão ao evento. Contra a elitização e a sacralização do cinema, este encontro contíguo acontece do grande auditório à galeria e da rua ao bar, com uma naturalidade próxima do quotidiano. O cinema é mais do que o cinema – e é exactamente isto que sentimos envoltos neste cruzamento inter-artes, onde a música se encontra em especial destaque. Não só a competição de video-clips argumenta como há tanto valor nesta linguagem, como as noites se encerram com destacadíssimos cine-concertos (Frankie Chavez + João Correia com The Good Bad Man, de Allan Dwan, 1919; Garcia da Silva + Norberto Lobo com diversos artistas do panorama português; Bruno Pernadas Quinteto com Steamboat Bill Jr de Charles F. Reisner, 1928, etc.), seguidos por dj-sets madrugada dentro. Onde, senão em Vila do Conde, poderíamos ter visto Lambchop ao vivo a musicar um filme inédito de Bill Morrison ?
E é ali, algures entre o Auditório Municipal de Vila do Conde e a Galeria de Arte Cinemática – Solar que, por um momento se suprem as fomes de todo um país de cinema experimental, de video-arte e de cinema expandido, lamentavelmente tão ausentes na generalidade das programações dos festivais nacionais. Entre 4 e 12 de Julho, pudemos ver, entre variados outros, uma retrospectiva BR + BR (Ben Russell + Ben Rivers) e os recentíssimos trabalhos de Deborah Stratman (Second Sighted), Mark Rappaport (Becoming Anita Ekberg, 2014), Thom Andersen (The Tony Longo Trilogy, 2014), e duas obras de Bill Morrison (Beyong Zero 1914-1918, The Dockworkers Dream, 2015), a última das quais produzida a propósito do festival, em parceria com os Lambchop.
Esta ênfase dada ao experimentalismo revela-se ainda numa vertente mais prática, com o Curtas a ser o festival que melhor consegue estabelecer uma sinergia entre programação e criação, convidando autores à produção, em regime de residência artística (programa Campus), de objectos inéditos. Neste âmbito, vimos este ano três objectos relacionados com a cidade: no memorável A Glória de Fazer Cinema Em Portugal, Manuel Mozos conduz-nos de novo à casa a que nos habituou, os arquivos – e aí sonhamos um cinema por ser, a partir de uma carta real do mítico escritor local José Régio. Nos meandros da História portuguesa, sentimos como a força do movimento de renovação político-literária da Revista Águia poderia ter também em si inscritas intenções concretas para revolucionar esteticamente o cinema nacional (paralelamente recordando como a história do cinema em Portugal começou a norte).
Em Vila do Conde Espraiada, o autor Miguel Clara Vasconcelos parte da reapropriação de pequenos filmes domésticos de época para construir uma estória alicerçada nas suas memórias pessoais na cidade, nos anos 80. Esta narrativa encontra o seu centro no relato das vivências entre as crianças ricas (“os betinhos”) e as crianças pobres, lembrando como então a posse dos meios de captação de imagem estava de um dos lados apenas, e que, por justiça histórica, cabe a esse lado, à posteriori, relatar o ‘’fora de campo’’ inscrito em cada uma dessas imagens.
A grande descoberta deste festival foi o jovem realizador espanhol Lois Patiño que, também presente como júri na Competição Internacional e Nacional, apresentava um monumental filme-ensaio: Noites sem Distância. Contrariando a ideia de Heidegger de que “a natureza não tem história”, este trabalho filosófico propõe uma memória supra-humana que a natureza em bruto em si encerra, invisivelmente somando as memórias de todas as suas travessias e ocupações. Contradiz-se a ideia da ruína como prerrogativa humana (decorrente do abandono da vida útil dos vestígios civilizacionais, edifícios e objectos – enunciado recorrentemente trabalhado por Resnais, Duras, Pollet, entre tantos outros), e encara-se a Natureza como uma hipótese de ruína. Afinal, é um ‘‘mapa do passado’’ o que Patiño se propõe a figurar e, entre as montanhas, os rios e as árvores, sugerem-se os dias extintos destes fantasmas que ali, nas paisagens megalíticas da fronteira a norte entre Portugal e Espanha, repetem em ciclo eterno a sua tarefa por cumprir. O vídeo passado a negativo (como o seu Montaña em Sombra, 2012) elimina os eixos temporais e é neste ambiente sem dia nem noite que se esboça a evocação de uma história muito real, feita das horas de sufoco dos contrabandistas que ali arriscaram a vida a tentar atravessar uma fronteira. Um filme absolutamente visionário, que combate também ele entre fronteiras: algures entre o visível e o invisível.
Também realizado a convite do Campus Vila do Conde, Undisclosed Recipients (2015) é um exercício estilístico de Sandro Aguilar, construído através do contraponto entre o ritmo caleidoscópico das imagens sobrepostas por ilusão óptica e o minimalismo de um som pulsado, evocativo do compasso da cintilação numa projecção em película. Como habitualmente, o realizador experimenta a partir de um laborioso trabalho de montagem, e sucedem-se oscilantes retratos de rostos e gestos em modelação e desaparecimento. Tudo é súbito, nada persiste: a cada batimento, ocasião para um exame fugidio aos ‘’corpos anónimos fascinados’’ que, desenquadrados do contexto do festival de música, surgem como passagens breves para algo maior. Sob os efeitos da luz e da cor, da atenção dos olhos pregados além nasce um mistério por decifrar protagonizado por uma coreografia comungada e repetitiva – que, em tom nostálgico, se faz numa fantasia universal de juventude renovada, de tempo sem horas.
Também seleccionada para a competição nacional estava a curta-metragem Bunker (2015), uma narrativa liberta de Sandro Aguilar, assente numa desafiante intriga fragmentada. Na cativante beleza de um preto e branco carregado, delineiam-se personagens que coexistem num vago fundo poético, sem música. Cineasta desalinhado, verdadeiramente saído de convencionalismos formais e de compromissos de storytelling, Aguilar nunca se abstém de correr riscos. Definitivamente, um dos mais experimentais cineastas a trabalhar em Portugal hoje.
Na competição nacional, foi Yulya (André Marques, 2015) o grande destaque. É óbvio para todos, a começar pelo realizador, que estamos no campo das potencialidades, onde esta curta ensaia uma longa – a gravidade do contexto da silenciosa personagem (brilhantemente interpretada por Joana de Verona, que jamais numa já prolífica carreira se viu em falso) necessitaria de um crescendo prévio de detalhes narrativos até ao momento em que ali somos largados – no palco de um esquema de tráfico humano – para que sentíssemos intimamente a tensão acumulada na personagem e o peso desta tão séria questão com a profundidade que ela nos exige. Apesar disso, é um filme cinematográfico (e faço uso desta redundância como de um sublinhado face ao paupérrimo contexto da competição nacional de curtas). Eliminando quaisquer diálogos, soube encontrar o seu minimalismo na construção visual e sonora e, principalmente, soube evocar um ponto de vista crítico sobre um tão gigantesco problema como é o do contrabando humano – subtextualmente criticando, em particular, a objectificação feminina pela sociedade contemporânea.
Da minha colaboração como júri na Competição Take One deste ano, secção dedicada a filmes de escola, firmou-se a certeza de que a última década de pulverização de estudos dedicados ao cinema e ao audiovisual atingiu já resultados concretos. Algures entre a requalificação de programas e corpos docentes, a mobilidade de alunos, o rápido progresso técnico, a abertura do ensino às competições e o imediatismo no acesso à história do cinema, muito mudou. Surpreendentemente, a consistência geral dos objectos em competição (produzidos por alunos de licenciatura e mestrado) é qualitativamente equiparável à dos títulos presentes nas restantes competições de curtas.
Para lá dos óbvios destaques (para Bétail, de Joana Sousa, filme vencedor da Competição, e para Sala Vazia, de Afonso Mota, Menção Honrosa), outros títulos persistem, meritórios de uma atenção particular. Se há filmes que são inacreditavelmente eficazes na sua simplicidade, Cabeça (de Miguel Tavares) é um deles. Digno de Chaplin ou de Keaton, consiste num simples gag que se constrói com a clara consciência da universalidade da linguagem corporal, com recursos mínimos e um conseguido sentido de abstracção. O interventivo Iterance (de Sérgio Silva) destaca-se pelo seu valor de actualidade: a partir das ruínas de um edifício industrial, constrói uma denúncia ao capitalismo selvagem, com base nos vívidos testemunhos dos corpos por ele explorados. Lembrando a frase de Marx que diz que um explorado tem consciência de que é um explorado, este filme encontra semelhanças entre as consequências directas da ditadura económica alemã sobre o contexto europeu actual e os relatos passados das vítimas do Holocausto – numa voz mordaz que descreve um país de futuro sabotado.
Nos panoramas internacionais, uma extensa programação alinhou cinema grego, romeno, holandês, polaco, eslovaco, lituano e alemão. Da selecção grega, destaco 45 Degrees (de Georgis Grigorakis), narrativa que perpassa a realidade preocupante que se vive no país, e descreve intimamente o conflito moral de um homem desempregado, forçado a trair os próprios ideais para conseguir alimentar a família. Um exemplo particular que reflecte o drama alargado do sufoco económico, consequência das medidas de austeridade – alertando concretamente para a gravidade do estado-limite que a Grécia de hoje enfrenta.