Se dos três primeiros dias tinha ficado um filme notável, Sobre El Cielo (2015) de Jorge Quintela, e outros que, não sendo excepcionais, também ficaram na retina, os filmes do quarto segmento da competição nacional apresentaram uma qualidade elevada. Within (2015) de Natália Azevedo Andrade, é uma animação de curtíssima duração, que não deixa de causar boa impressão em pouco tempo, sobretudo pelo belo texto sobre a solidão e o medo, que amplia assim as imagens que se encadeiam para revelar uma melancólica viagem de dentro para fora. Com Nuvem Negra (2014), Basil da Cunha apresenta um conjunto de retratos dos habitantes do bairro da Reboleira num registo que, se não é inteiramente original, torna-se comovente pelas pessoas que nos mostra, e sobretudo pela empatia que evoca. Desde a primeira pessoa-personagem que agarra-se à câmara, para proclamar “se eu não lutar por mim, mais ninguém luta”, que fica claro a importância em dar voz a estes habitantes. Por entre a incerteza em relação ao futuro, as imagens de destruição das casas deste bairro representam o primeiro murro no estômago do festival, exponenciado por um momento musical que alonga este desamparo, e reforça o filme como um dos melhores em competição.
Depois de um documentário, duas comédias, ou primeiro uma tragicomédia, como Rodrigo Areias se referiu ao seu filme O Guardador (2015). Resultado de um projecto de colaboração entre Areias e seus alunos, é um cuidadoso estudo na criação de uma personagem, que recorre a algumas vinhetas de planos fixos, para ilustrar o quotidiano vazio de um homem que é guarda de um museu durante a noite e guardador de ovelhas durante o dia. Entre uma comédia de situações visuais e a tristeza da solidão, é um filme de dualidades e contrastes, cujo conservadorismo geral só é desarmado perto do fim por um humor certeiro. Já a outra comédia apresentada no mesmo segmento, Maria do Mar (2015) de João Rosas, se não é, mais uma vez, algo inovador, recorre de modo inventivo à fórmula de um olhar adolescente sobre o mundo adulto à sua volta, para deslumbrar com uma série de gags visuais. Retrato de um fim-de-semana passado entre amigos numa casa de praia, o filme assume o ponto de vista do elemento mais novo, e do seu olhar platónico em relação a uma das raparigas presente. Próximo do universo de Rei Inútil (2013) de Telmo Churro ou dos filmes de João Nicolau, utiliza de forma inteligente a composição dos enquadramentos como setup de piadas, com pequenos quadros que encerram humor na forma como apresentam a realidade, e imaginação na apropriação do olhar da personagem – como por exemplo, quando vemos algumas personagens a dançar numa festa, mas do lado de fora da janela, sem a música, e o comportamento dessas personagens torna-se mais ridículo. Se algumas das situações parecem demasiado encenadas para resultarem em humor, como um número de magia que tenta parecer improvisado mas fruto de estudo prévio, revela uma ideia coerente e consciente do que quer dizer.
O último dia de competição nacional começou com a projecção de Vigil (2015) de Rita Cruchinho Neves. Uma animação a preto e branco, de ambiente soturno e imagens poderosas, que joga com sombras e dimensões e um imaginário industrial e movimentos mecânicos, mas em cuja indefinição falta uma mensagem clara e apelativa. André Marques, que há dois anos teve com Luminita (2013) um dos melhores filmes dessa edição, apresentou Yulya (2015), um projecto de alcance diferente, que não sendo tão forte, não deixa de ser um exercício interessante. A história prende desde logo a atenção do espectador, para não mais o largar: uma carrinha chega a uma quinta isolada com uma rapariga semi-nua e amordaçada, prisioneira de um grupo de homens, para ser transportada para um quarto onde encontramos outras raparigas na mesma condição. Quando a rapariga, numa interpretação fenomenal de Joana de Verona, ensaia uma fuga, não olha mais para trás, e a câmara em movimento não a larga, mantendo-a no centro da composição antes que esta se evapore, num gesto que lembra a fixação dos Dardenne pelas suas personagens. Sem diálogo, o filme cria mistério pela incerteza na resolução, mas se o âmbito reduzido da acção poderia jogar a favor, falta uma conclusão que sustente o resto do filme, para além de uma experiência com potencial. Sombras (2015) de Luís Alves de Matos foi uma desilusão, porque a ideia de um filme-requiem em relação ao cinema, quer como lugar físico abandonado, quer como forma de arte em declínio, nunca encontra forma de evidenciar o próprio conceito, e mostra antes um filme distraído consigo próprio.
De forma geral, a competição nacional deste ano apresentou um conjunto de obras de elevada qualidade, especialmente quando comparadas com edições anteriores. Desde algumas primeiras obras de maior interesse, a ambiciosos exercícios formais de técnica exemplar (como Bunker de Sandro Aguilar, ou A Torre de Salomé Lamas), a filmes menos formais que arriscaram a algo de diferente (como Sobre El Cielo de Jorge Quintela, ou Yulya de André Marques), a outros que seguindo formatos mais convencionais atingiram uma nota emocional (como A Nuvem Negra de Basil da Cunha ou Maria do Mar de João Rosas), se esta competição funciona como barómetro do panorama nacional, fica a curiosidade e expectativa para ver os trabalhos futuros deste conjunto de autores.
Além da competição nacional, foram exibidos alguns filmes com produção própria do Curtas, que reforçaram a importância dessa iniciativa. A Glória de fazer Cinema em Portugal (2015) de Manuel Mozos, e Vila do Conde Espraiada (2015) de Miguel Clara Vasconcelos são duas obras que partilham um olhar sobre o passado da cidade de Vila do Conde, numa homenagem que ocupa lugar central nos dois filmes. A Glória de fazer Cinema em Portugal rouba o seu título a uma carta de José Régio, e é um documentário-investigação-imaginação de um pequeno episódio do cinema nacional. Nessa carta, Régio propõe ao amigo Alberto Serpa a fundação de uma produtora, para começarem a fazer cinema. A carta, datada de 1929, que ficou sem resposta e esquecida, é agora recuperada, pela descoberta recente de velhas bobines no espólio de um coleccionador. É a partir das filmagens “recuperadas”, em particular de quatro minutos de película deteriorada, que Mozos traça as possibilidades para o que terá acontecido, recorrendo também a fotografias e filmagens da época. Analisando as imagens de uma beleza aterradora, filmadas numa capela em Vila do Conde junto ao mar, Mozos investiga (ou melhor, inventa) o caminho dos hipotéticos intervenientes, e as razões para o abandono do projecto, transformando uma história imaginada em realidade. Uma declaração de amor ao cinema, num ano em que o festival presta homenagem a Manoel de Oliveira, o final deste assombroso filme é perfeito.
É também a partir de imagens de arquivo e de uma frase de José Régio, desta vez de um poema, que se constrói Vila do Conde Espraiada. Na verdade, um filme-poema-diário na forma, uma colagem de imagens sobre pensamentos soltos, tal como Vasconcelos tinha feito com O Triangulo Dourado (2014), mas menos abstracto, já que o texto tem aqui um forte cariz autobiográfico, numa colecção de reminiscências sobre uma juventude passada. Além das belíssimas imagens recuperadas do passado da cidade, o filme apresenta uma recriação de um regresso a casa, através de uma personagem que será o representante de Vasconcelos (“este sou eu, este é o actor a fazer que sou eu”). Num diálogo com uma voz feminina, essa personagem narrará uma carta de amor gravada durante uma noite, na qual revisita a sua infância, e histórias da sua família, da relação com a cidade. Com uma nostalgia por objectos antigos, essas memórias antigas tornam-se aqui objectos manipuláveis, como a cassete que o pai enviava desde Londres a ler contos de criança. O ponto forte do filme acontece quando as memórias pessoais intersectam-se com as memórias da cidade, como quando a personagem relata as aventuras de dois velhos anarquistas. Se o texto é o elemento menos interessante, por não estar por vezes ao serviço das imagens, e se apresenta desligado destas (como quando vemos imagens antigas de um mar intempestivo, e ouvimos histórias de crianças sobre biscoitos e leite), quando o texto acrescenta imaginação às imagens, atinge um registo comovente.
Alguns destaques em relação aos filmes na competição internacional e experimental. Beyond Zero: 1914-1918 (2014) de Bill Morrison é um belíssimo filme, construído a partir de filmagens recuperadas da primeira Guerra Mundial, que encontra na banda sonora do Kronos Quartet o aliado perfeito para os diferentes ritmos, quer dentro das imagens, quer da própria montagem. Entre imagens de uma beleza fantasmagórica, ficam na memória as sequências de um céu em combustão, quer pelos buracos na película deteriorada, quer pelas explosões de aviões, como uma tela onde a guerra é projectada. Becoming Anita Ekberg (2014) de Mark Rappaport é um vídeo-ensaio que traça a construção do mito da figura de Anita Ekberg como ícone sexual, através da análise do percurso da actriz celebrizada pela sequência em La Dolce Vita (A Doce Vida, 1960), de Federico Fellini. Aproveitando essa construção para deixar várias considerações sobre a utilização da figura feminina no cinema, sobre o que é considerado belo, e sobre a efemeridade dessa beleza, Rappaport apresenta uma verdadeira mini-lição sobre cinema. The Tony Longo Trilogy (2014) de Thom Andersen é também um ensaio, mas de carácter mais delirante, quer na execução quer no conceito que aborda. Numa homenagem aos filmes de série B, Andersen pega num actor de papéis secundários, Tony Longo, normalmente relegado para segundo ou terceiro plano das cenas onde entra (como porteiro, como figurante, etc), re-editando esses filmes de forma a apagar as cenas em que ele não entra, reduzindo assim os filmes a uma curta onde a personagem de Longo se torna a personagem principal, numa re-apropriação das imagens desses filmes de efeito brilhante.
Beach Week (2014) de David Raboy é um fascinante exercício de construção de um ambiente misterioso, por explorar a ambiguidade de um filme de terror disfarçado de filme sobre o quotidiano. Sobre um último dia de férias numa casa de praia, a câmara arrasta-se, divagando, como que anestesiada sob o efeito de drogas, numa colagem de imagens e banda-sonora que resultam numa experiência sensorial contagiante e que despede-se com um estrondo. Ramona (2015) de Andrei Cretulescu é filme romeno de espírito punk, que segue uma mulher através de vários planos-sequências em tempo real, enquanto esta executa uma vingança sobre uma série de homens, sem pestanejar – sem diálogos, mas repleto de estilo, é arrebatador. Vous Voulez une histoire? (2014) de Antonin Peretjatko é um pequeno diário de viagem que combina um texto com uma colagem de imagens artesanais, repleto de ideias visuais que acompanham um torvelinho de sentimentos. No campo do documentário, A Copa do Mundo no Recife (2015) é um olhar para o que ficou de fora da atenção mediática, nas margens, durante o Mundial de 2014 no Brasil. Kleber Mendonça Filho tenta enquadrar as mudanças provocadas no Recife pelas obras do Mundial com os problemas sociais da cidade, e ao mesmo tempo procura o retrato de um país com medo de falhar, ao qual o realizador deixa um jogo imaginado num campo de futebol abandonado, sem intervenientes. Kung Fury (2015) (disponível no youtube) de David Sandberg é uma desconstrução do imaginário dos filmes de acção de baixo-orçamento da década de 80, num exuberante exercício nostálgico de imaginação demente, que apesar de divertido, é inconsequente.
Na noite de encerramento do Festival foi apresentado o filme-concerto The Dockworker’s Dream (O Sonho do Estivador, 2015) resultado da colaboração entre o cineasta Bill Morrison e a banda Lambchop. Da pesquisa de Morrison sobre filmes do período mudo do cinema português e a partir de material de arquivo da Cinemateca Portuguesa, resultou uma magnífica composição visual, onde a música interpretada por Kurt Wagner e companhia respirava com as imagens etéreas de um Portugal distante, dos trabalhos de um estivador e de um sonho imaginado – para um festival que tinha começado com imagens dos estaleiros de Viana, não se podia pedir melhor fim, para uma das melhores edições do Curtas.
O júri decidiu surpreendentemente atribuir o Grande Prémio “Jameson” do Festival (melhor filme em competição) a um filme português, Mined Soil (2014) de Filipa César, o que aconteceu apenas pela terceira vez, depois de Jorge Quintela por Carosello (2013) e João Nicolau por Rapace (2006). O Prémio de Melhor Filme da Competição Nacional foi atribuído a Maria do Mar (2015) de João Rosas, o Prémio para o melhor realizador português a Margarida Lucas pelo filme Rampa (2015), o Prémio para Melhor Filme de Ficção para Beach Week (2014) de David Raboy; o prémio do Público foi para Amélia e Duarte (2015) de Alice Eça Guimarães e Mónica Santos na competição nacional, e para Kung Fury (2015) na competição internacional. A lista completa de prémios pode ser consultada aqui.