O cinema é sensível ao trabalho rigoroso da pintura. Enquadrar é pôr num quadro. Compor é organizar (ou agenciar) elementos dentro desse quadro. Com a pintura o cinema faz-se arte da mise en scène; descobre a potência da cor, da luz e da organização do espaço dentro de uma determinada moldura perceptiva. Quando a pintura salta para dentro do cinema e, com isso, o quadro é enquadrado pela câmara, produz-se um choque, que põe em abismo a acção ou que mandata nela uma qualquer transformação, estética ou dramática. O cinema não pára na imagem de um quadro por puro acaso. É uma interacção impura, desconforme, como o do discípulo com o seu antigo mestre.

Reparo que esta é a quarta vez que convoco um plano de um filme de Jerry Lewis para a Sopa de Planos: The Nutty Professor (As Noites Loucas de Dr. Jerryll, 1963) por causa do desporto, Cinderfella (Cinderelo dos Pés Grandes, 1960) pelo dinheiro e The Errand Boy (O Mandarete, 1961) debaixo de água. De facto há uma força no trabalho de Lewis que o torna verdadeiramente icónico – força essa que provavelmente origina no prazer iconófilo do seu mentor mais marcante, Frank Tashlin, esse pintor do celulóide onde todas as cores são vivas como os óleos de um quadro, veja-se Artists and Models (Pintores e Raparigas, 1955) caso haja dúvidas dessa sua componente plástica – ainda que The Ladies Man (O Homem das Mulheres, 1961) seja tanto um filme pictórico nesse sentido como o é também arquitectural (outra das forças de Tashlin…), mas é com pinturas que o caldo ferve e não quero fugir à receita. Lewis na sua habitual figura de moço de recados tem a função de limpar e cuidar do domicílio de uma série de meninas (qual casa de bonecas em tamanho real, só que ao contrário da criança que manipula os seus brinquedos, aqui são as toy girls que tomam a criança como joguete), e entre demais funções domésticas suja de batom a um enorme óleo que preside a sala principal da casa. Borrar a pintura é a expressão exacta para descrever o meta-personagem que Lewis constrói de filme para filme, disso não tenho dúvidas, por outro lado nesse momento afirma-se que só mesmo a um quadro pode Lewis sujar o batom (a sexualidade do seu personagem é sempre tão dúbia como a relação que estabelece com Dean Martin nos seu s filme em conjunto – oiça-se Mark Rappaport). E se o momento parece pequeno e esquecível, certo é que sete anos mais tarde Sellers e Edwards repetiriam o gag em The Party (A Festa, 1968) e Rowan Atkinson usá-lo-ia como motor narrativo de Bean (Bean: Um Autêntico Desastre, 1997). É a tal força icónica.
Ricardo Vieira Lisboa

Da mesma forma que a acção, em Hitchcock, pode ser espoletada simplesmente “porque sim”, através da verificação de um conjunto de factos que dispensa explicações, também o desenlace e a solução das tramas podem não ter qualquer fundamento plausível – esse, afinal, o registo MacGuffin tão caro ao Mestre inglês. Esta irrelevância ou indiferença pelas causas dos acontecimentos constitui, a bem dizer, uma das marcas do cinema de Hitchcock, muitíssimo visível, aliás, num filme como The Wrong Man (O Falso Culpado, 1957), título que, por sua vez, viria a cunhar, de forma literal, um dos temas hitchockianos clássicos. Se nunca sabemos o porquê do terrível azar de Henry Fonda em ser teimosamente confundido com o verdadeiro ladrão (essa a sua única culpa, a de ser demasiado parecido… com outrem), também nunca compreenderemos a razão para o processo empático através do qual, quando Fonda observa atentamente o quadro de Cristo, se dá, simultaneamente, o milagre, i.e., a acção que levará o verdadeiro ladrão a ser descoberto e preso. Novamente: porquê? O espectador não sabe e, mais importante, o próprio Hitch não sabe, nem quer saber, pois o que lhe interessa é a acção e o papel das personagens no decorrer desta. O milagre, esse, despido de qualquer justificação (afinal, é o que é, um milagre), não terá outro papel senão o de aproximar a culpa hitchcockiana da metafísica (de uma justiça divina, à míngua da terrena, tão falível?) num dos mais graves e austeros filmes da obra hitchcockiana.
Francisco Noronha

Nunca acrescentei um ingrediente tão fresco à Sopa de Planos… Passou há poucas horas pelos meus olhos, e pelo coração (ou não fosse um “profundo e absurdo” melodrama, como diria Peter von Bagh), este arrebatado hino de amor do finlandês Teuvo Tulio – Rakkauden risti (A Cruz do Amor, 1946). Diante da sua imagem, isto é, da pintura à qual deu rosto e corpo, Riita (Regina Linnanheimo, companheira e colaboradora de Tulio) observa a verdade que se concretizou para lá da tela. Não mais um quadro, mas um espelho, esta representação da amante crucificada, de busto exposto e cabeça inclinada – tal e qual a de Jesus –, faz confluir para si todo o sentido do drama amoroso. O tal verdadeiro amor, simbolizado na luz divina do quadro, que choca com o erotismo da postura e seminudez feminina, surge no momento em que o pintor desenha a sua musa, acariciando cada traço como se fosse já uma posse real. Puro expressionismo. Por sua vez, este plano concentra a reta final da via-sacra de Riita, quando “a vontade do Pai” está prestes a libertar-se da tinta para se realizar no corpo autocontemplado. “Pai, porque me abandonaste?” poderiam ser também as suas palavras, pois o velho pai terreno deixou-a pregada nessa cruz invisível, consolado com a ideia de que a vida na cidade lhe trouxe a boa fortuna. Mas o amor na cidade não acompanha o lirismo e inocência de quem a ela não estava habituado. Quando surge, mata.
Inês Lourenço

A noite é de festa rija na mansão de um milionário entediado. Os empregados procuraram animar o patrão com uma festa noite adentro, com champagne e um grupo de simpáticas raparigas que dançam Charleston como se deve: freneticamente. Um dos empregados não desarma nas suas funções e vai limpando o que pode com o espanador. Contudo, a temperatura da festa sobe e é preciso relaxar um pouco, mesmo quando se quer ser o mais zeloso dos mordomos. Calha bem que ao seu lado está pendurado um quadro com uma faustosa moldura doirada, onde se vê representada uma mesa repleta de frutos. Ao lado da composição frutal, esta natureza-morta exibe o néctar dionisíaco guardado numa garrafa de vidro e um copo vazio “por usar”. O empregado está cansado de trabalhar, quer relaxar, por isso, não hesita: estende a mão ao quadro, retira o copo, depois a garrafa de vidro onde repousa o dito néctar e serve-se solenemente ali mesmo. Depois, “bota abaixo” o líquido. O trompe-l’oeil dobra sobre si mesmo. A natureza-morta era, afinal, uma natureza bem viva, pronta a responder aos desejos do momento. Não é um quadro, afinal? Será antes uma espécie de shadow box fazendo-se passar por uma pintura? O que Étaix produz com este pequeno gag é a confirmação de que um quadro pode ser mesmo isso: um quadro, isto é, uma coisa emoldurada. Se a profundidade é ilusória ou real, se os objectos têm volume ou apenas sugerem esse volume, isso são pormenores que não abalam o essencial: há moldura, isto é, quadro (frame) e há composição, isto é, mise en scène. O mesmo se podia dizer do cinema? Talvez.
Luís Mendonça