Como se sabe, algumas pessoas têm medo ou aversão de palhaços. O simples contato visual com essa figura colorida que deveria estar ligada ao riso e alegria, causa sentimentos opostos, extremamente negativos. A psicologia explica esse fenômeno, conhecido como coulrofobia. Felizmente, nunca tive esse problema, mas sempre observo os palhaços como indivíduos que possuem um lado melancólico ou obscuro escondido por detrás da maquiagem. Não sei porquê, mas me lembrei agora de quando morei em Portugal e alguns amigos relataram o caso dos palhaços Batatinha e Companhia, que trocaram socos em direto num programa de TV. Que feio. O que há de errado com esses palhaços?
Enfim, proponho centrar nossas atenções a um palhaço mais simpático, que divertiu a infância de muitos cinéfilos nos anos 1980. Conheçam Freddy: pai de família, um marido atencioso e trabalhador. Iniciou sua vida de forma difícil, sua mãe era freira e foi violada por centenas de malucos numa ala de um hospício onde ninguém poderia ouvir seus gritos. Talvez seja por isso que Freddy tenha alguns defeitos. Mas quem não tem? O problema é que Freddy gosta de matar crianças e este pequeno passa-tempo fez com que fosse queimado vivo por uma multidão de pais enfurecidos da Rua Elm. Anos depois, Freddy volta, obcecado em se vingar nos filhos adolescentes daqueles que lhe tiraram a vida mortal. Mas seu retorno é no subconsciente de suas jovens vítimas e seu ataque cruel acontece no mundo dos sonhos, portanto passível de quebrar as leis da física, matando de forma brutal, porém criativa. E voilá, temos o surgimento de uma das mais transgressoras representações do mal no cinema. Ok, talvez Freddy não seja tão simpático assim.
O lançamento de A Nightmare on Elm Street (Pesadelo em Elm Street, 1984), de Wes Craven, deixou uma série de contribuições para o horror, especialmente no slasher, o gênero no qual adolescentes são frequentemente trucidados por serial killers e que teve seu auge na década de 1980. Um filme revolucionário? É possível. Ou talvez seja um exagero apontá-lo como tal. O que não temos dúvida, no entanto, é que a criação do nosso estimado Freddy Krueger, um vilão peculiar imortalizado por Robert Englund, de um frescor palpitante tanto nos aspectos físicos quanto no psicológico, redefiniu o assassino típico do slasher e acabou por colocar à solta um autêntico ícone na consciência cultural pop americana.
Ao contrário de Jason Voorhees, o assassino de Friday the 13th (Sexta-Feira 13, 1980), ou Michael Myers, o serial killer de Halloween (O Regresso do Mal, 1978), outros dois dos maiores símbolos dos slasher movies, Freddy é menos uma silenciosa máquina de matar maniqueísta do que um sarcástico clown das trevas com personalidade própria. Bem, visualmente Freddy não deveria se preocupar com aqueles indivíduos que sofrem de coulrofobia. Tampouco seria o mais representativo clown do cinema de horror. Este posto ficaria, provavelmente, com o Pennywise (Tim Curry), o palhaço assassino criado por Stephen King e adaptado ao telefilme It (It – Palhaço Assassino, 1990). Até porque ao invés de um grande e arredondado nariz vermelho, Freddy prefere um estiloso chapéu fedora. No lugar de fantasias extravagantes, veste um simples suéter listrado vermelho-verde, duas tonalidades que, colocadas lado a lado, segundo a revista Scientific American, na qual Wes Craven lia naquela altura, são as mais difíceis de criar harmonia para o olho humano. Maquiagem? Não serviria para muita coisa na sua cara deformada pelo fogo. Já deu para perceber que Freddy não é o tipo de palhaço que encontraria emprego fácil num circo. No entanto, suas atitudes ao cometer atrocidades e sua personalidade ao relacionar-se e tirar proveito de adolescentes indefesos não deixam dúvidas de seu caráter de palhaço do horror por excelência. Um detalhe que não o torna mais simpático às suas vítimas, mas é sempre muito atraente ao expectador.
Diferentemente de seus rivais do horror oitentista, Freddy possui uma dialética entre o grotesco e o burlesco que lhe confere um charme, um fascínio pelo seu método de agir, embora, como todos os vilões do gênero, ele tem o mesmo objetivo: matar (de preferência, adolescentes). É um clown por natureza e não basta apenas fazer mais uma vítima para a coleção, Freddy tem necessidade de brincar com elas, precisa fazer algum truque ou contar piadas. Vamos supor que uma provável vítima encontra-se sozinha num beco escuro de madrugada e depara-se com o Jason. A única coisa a fazer é correr e gritar, pois certamente levaria uma facada na barriga ou uma machadada na têmpora. Muito previsível. Com Freddy não seria assim. Ele surgiria nas sombras com um largo sorriso zombeteiro no rosto, um sorriso que revela intenções de colocar chifres no mundo; os braços abertos e alongados além do normal, raspando suas garras em metais para fazer sons agudos e incômodos. Uma bela visão. É o que acontece com Tina, a primeira vítima de Freddy no filme de 1984. Ela solta um “Please, God” e Freddy responde sempre a sorrir, “This is God” mostrando suas garras afiadas. Logo a seguir, mais uma de suas graças: “Watch this”, Freddy corta seus próprios dedos só para mostrar do que é capaz, olha que fixe o que eu sei fazer. E a pobre vítima fica lá hipnotizada sob o efeito dessa figuram tão fascinante e ao mesmo tempo aterradora antes de finalmente tentar fugir. Ou, neste caso, acordar.
Afinal, estamos tratando de um invasor de sonhos. Como já disse, Freddy pode fazer coisas que Jason não poderia porque não está confinado às regras da realidade. Com os outros slashers, o objetivo é escapar do assassino ou encontrar ajuda. Essas opções não estão disponíveis quando Freddy Krueger quer te pegar. O lugar que você tem que ficar longe são seus próprios sonhos, mas o corpo humano inevitavelmente precisa dormir. O sonho é o universo de Freddy, o palco onde faz seu espetáculo de vingança. Não é a toa que todas as vezes em que vem ao mundo físico, Freddy acaba facilmente derrotado.
Algumas questões dessa lógica do sonho se perdem ou modificam ao longo dos filmes. Assim como o próprio personagem acabaria se tornando mais um comediante de stand up cheio de excessos e menos um clown sarcástico, assustador e misterioso. Não digo isso como uma crítica negativa, apenas como uma constatação às transformação que Freddy atravessa. Com a saída de Wes Craven dos projetos de continuações, mais especificamente a partir de A Nightmare on Elm Street 4 – The Dream Master (Pesadelo em Elm Street 4, 1988), de Renny Harlin, a ideia de um clown do horror aterrorizante simplesmente foge do controle e o personagem se entrega de vez à utilização exacerbada do humor.
Ou como esquecer Freddy surgindo de um castelinho de areia na praia com direito a óculos de sol para amedrontar os sonhos de Alice (Lisa Wilcox), protagonista de A Nightmare on Elm Street: The Dream Child (Pesadelo em Elm Street 5, 1989)? Freddy a jogar video game ou a voar na vassoura da bruxa má em Freddy’s Dead: The Final Nightmare (O Último Pesadelo em Elm Street, 1991); ou quando mata uma de suas vítimas no colchão d’água e solta “How’s this for a wet dream”, em The Dream Master; mas o momento mais emblemático dessa fase é quando um dos personagens é sugado para dentro de uma BD e surge o… Super Freddy, em The Dream Child. Sim, eu sei. É um bocado constrangedor. O fato é que a partir de determinado momento, Freddy precisa reafirmar sua presença como uma representação do mal soltando trocadilhos, frases de efeito, utilizando elementos visuais exagerados para desconcertar as situações de horror.
Quero dizer, não basta aos personagens odiá-lo por ser um assassino de crianças e adolescentes, ele ainda tem que fazer suas vítimas ficarem desconfortáveis com suas piadas de mau gosto. Não espere uma risada de cortesia, Freddy! Pelo menos não de suas vítimas. Agora, o público que o aceita do jeito que é, seja o conciso, irônico, obsceno e sombrio clown do início de “carreira”, seja no extravagante palhaço que se tornou nos filmes posteriores, este público vai tremer nos momentos de medo e não vai deixar de divertir-se com suas palhaçadas. Por mais sem graça que sejam.
Ronald Perrone
Não é crítico de cinema nem tem a pretensão de ser, apesar de editar o blog Dementia¹³, onde compartilha opiniões, pesquisas e experiências cinematográficas, especialmente quando se trata de filmes obscuros, subestimados e esquecidos.