Um homem na minha posição (neste momento, horizontal) está sujeito a ouvir estranhas histórias a seu respeito. Por exemplo, há alguns anos correu o boato de que fizera figura de parvo bebendo champanhe pela chinela de Sophia Loren. É um puro absurdo, ainda por cima difamante. Admito que tentei beber esse líquido borbulhante pela chinela dela, mas ela nunca tirou o maldito sapato do pé. Por isso, apanhando-a distraída, foi pela bolsa de mão que o bebi, quase sufocando quando, acidentalmente, engoli também o «batôn».
Groucho Marx, “O Meu Melhor Amigo é um Cão”, in Memórias de um Pinga-Amor (tradução de Wanda Ramos)
Em Duck Soup (Os Grandes Aldrabões, 1933) de Leo McCarrey, ele é Rufus T. Firefly, o recém-eleito presidente de um país fictício à beira do colapso – e que com o novo líder, vai ser ainda mais dominado pelo caos. Em Horse Feathers (Os Irmãos Max na Universidade, 1932) de Norman Z. McLeod, interpreta um professor muito especial, que mistura o seu status com a capacidade de concretizar qualquer disparate – e de se opôr a tudo e todos sem razão aparente (quem se lembra desse maravilhoso momento musical do filme?). E a lista continua: ao longo de uma dúzia de aventuras em celulóide com os seus irmãos [mais o Love Happy (Louco por Mulheres, 1949), com uma novíssima Marilyn Monroe, que não é realmente deles, e outras tantas que interpretou a solo – a mais famosa é a primeira dessas investidas, com Carmen Miranda: Copacabana (1947)], Groucho Marx obteve cargos e reputações diferentes para exercer a sua persona, sempre complexa nas suas características excêntricas, e que por isso se tornou única e cada vez mais inconfundível de comédia para comédia, em momentos de puro nonsense que passaram de geração para geração. Um génio que esteve presente nos palcos e no grande ecrã, mas também na rádio, na televisão (ao tornar-se presença assídua em variadíssimos talk-shows e ao ganhar o seu próprio espaço no horário nobre, a apresentar o concurso “You Bet Your Life”) e também em numerosas histórias humorísticas, reunidas num sem-número de livros que permanecem surpreendentes e intensamente cómicos.

Se considerarmos as duas fundamentais categorias de palhaços, Groucho (ou Julius, no seu nome de baptismo) tanto pertence a uma, como é um eterno candidato à outra. A maneira de falar e de responder, com eficácia humorística, satírica e surreal, a todas as pessoas contrapõe-se à mais exímia pantomima, que inclui desde o lançamento de bens alimentares a outrem até a tácticas mais extravagantes e infantis, como a famosa cena do espelho em Duck Soup. Estas características de palhaço pobre contrapõem-se às do rico, porque no entanto, a persona de Groucho é a de um homem que anseia o poder e escalar para a sociedade dos “palhaços ricos”, ou seja, das pessoas de quem ele faz sempre troça para conseguir singrar (como a personagem feminina recorrente, interpretada por Margaret Dumont). Mas foi isto tudo que fez dele um ícone de Hollywood e um ídolo imortal da comédia e da sociedade americana do século XX. Um brilhante palhaço sem muita maquilhagem, mas que vinha sempre acompanhado, nos filmes, pelos óculos característicos e o bigode (mais propriamente, uma tira de graxa) a condizer, mais um modo peculiar de andar e de se expressar, como se fosse uma metralhadora imparável de tiradas e punchlines impagáveis, que não deixam nenhuma vítima escapar sem ser atingida, pelo menos, por um dos seus muitos cartuchos mortiferamente hilariantes. Enquanto Chico passava a vida a fazer trocadilhos de linguagem no seu exageradíssimo sotaque italiano e Harpo exercia os seus dotes de mímica, Groucho levava sempre o espectáculo para outras vias – e se a comédia dos Marx se tornou um pouco menos anárquica e mais “familiar” após a saída da Paramount e a entrada na MGM, a atitude marxista (pouco dada às politiquices do outro senhor barbudo) de Groucho nunca perdeu a sua vitalidade. E é por isso que, Hoje, ainda nos conseguimos rir tanto com ele. Porque ele canta, dança e fala, fala, fala… numa palhaçada sem fim em que consegue dizer tudo.
E é do cinema sonoro que falamos quando nos lembramos de qualquer um dos filmes que os irmãos Marx protagonizaram, e dos momentos mais memoráveis de Groucho em particular. The Cocoanuts (1929) de Robert Florey e Joseph Stanley, estreado um ano depois do aparecimento do fenómeno proporcionado pela novidade de The Jazz Singer (O Cantor de Jazz, 1927), começou por ser uma peça com um enorme sucesso na Broadway, mas hoje é mais recordado por ter sido a entrada “oficial” dos irmãos no mundo do cinema. É o único filme dos Marx que não resistiu tão bem ao tempo por se ter tornado mais um documento histórico desses primeiros tempos do som. Entre esse filme e o último dessa primeira fase na Paramount (à época um fracasso colossal, e hoje uma obra aclamada em toda a parte) há uma curta distância temporal: 4 anos. Mas basta uma revisão atenta desses dois filmes para perceber como os Marx, além de se terem tornado um marco universal da comédia, também são um exemplo em bruto da rápida evolução dos filmes falados, e da multiplicidade de caminhos que, a partir do som, da voz e da música, o humor pôde tomar a partir daí.
Ou seja, com os irmãos Marx conseguimos fazer a História dos primórdios do som no cinema. Foi um passo de gigante dado num curtíssimo período temporal, porque desde os múltiplos truques para impedir que o mais pequeno barulho acidental se intrometesse com o frágil equipamento de captação de som (no filme de 1929, todas as folhas de papel que surgem na narrativa estão humedecidas, porque o pequeno barulho da sua movimentação causava um enorme transtorno para as gravações) até às várias e arriscadas experiências sonoras e musicais de Duck Soup, compreende-se como os irmãos aproveitaram os primeiros anos do som no cinema para desenvolver as suas potencialidades e a sua criatividade cómica e cinematográfica. E em grande parte, isso deve-se a Groucho, e à maneira como ele progrediu no seu estilo rápido e fulminante de gozar com todos os escalões sociais e estereótipos norte-americanos.
A personagem “Groucho”, que muitas vezes se confundiu entre a ficção e a vida real, já que a sua anarquia e rebeldia se deviam mais à atitude sempre desconcertante do artista perante as convenções sociais e a seriedade da burocracia moderna – como demonstra o famoso episódio da “reunião” com Irving Thalberg, protector dos Marx nos primeiros anos da fase MGM [em que desenvolveram A Night at the Opera (Uma Noite na Ópera, 1935) e A Day at the Races (Um Dia nas Corridas, 1937) sob a tutela desse poderoso magnata da indústria] que Groucho conta em pormenor na famosa entrevista a Dick Cavett (para saber tudo, ir aqui). Essa personalidade, que sempre misturou a imprevisibilidade com as piadas frenéticas que quase nos impedem, por vezes, de respirar entre gargalhadas, passou tanto nos filmes como nos espectáculos, e também nos tais inúmeros artigos que Groucho publicou, ao longo de várias décadas, em variadíssimos títulos de imprensa.

Alguns dos seus melhores trabalhos escritos estão reunidos em dois livros que, felizmente, estão editados em Portugal, e que respeitam ao máximo, nas suas traduções, a cadência e o timing característico das piadas deste Marx. Memórias de um Pinga-Amor, da Assírio e Alvim, e Histórias Curtas e Grossas, selecção de vários textos emblemáticos pelo fã Robert S. Bader traduzida pela Gradiva, são dois documentos únicos que exploram a multiplicidade de dimensões da comédia de Groucho: desde o mais puro nonsense (presente no texto genial “A História Não-Natural do Amor”, editada no primeiro livro citado), às memórias de hilariantes histórias (mais ou menos) verídicas do universo e dos mitos de Hollywood, até à desconstrução extremamente satírica dos próprios bordões da sua persona, ou da dos seus irmãos (“A razão por que o Harpo não fala”, do livro da Gradiva, é disso exemplo). O Groucho da vida de Hollywood confundia-se entre os risos dos seus filmes e as memórias mais ou menos realistas da sua convivência com o star system, mas nunca perdia a sua acutilância e a sua originalidade.
Sendo o mais mediático dos irmãos Marx, Groucho nunca perdeu, no entanto, a sua ligação com a família, e é por isso que as suas maiores conquistas cómicas se encontram nos momentos em que contracena com os irmãos. É na química com os irmãos que Groucho ganhava a sua maior capacidade de improviso, envolvendo-se em ferozes ataques de humor (é de destacar os vários gags em que faz parelha falada com Chico, numa troca de ideias que nunca acaba bem). A única vez que os cinco irmãos (a formação original quando eles começaram no mundo do vaudeville) se reuniram em público foi numa emissão do Tonight Show, em 1957 (regressaram os dois irmãos que ficaram pelo caminho: Gummo e Zeppo). Groucho foi o único que “resistiu” ao fim da era dourada dos Marx no cinema, fazendo o seu percurso graças aos novos meios de Hollywood e graças às suas enormes qualidades de entertainer. Mas são os filmes marxistas que mais nos ficam na memória. E é sempre um prazer voltar a qualquer um deles. Tanto os maiores clássicos da trupe como os seus filmes menos conseguidos, mas que são também pontuados por um ou outro momento verdadeiramente genial [The Big Store (Casa de Doidos, 1941) e Go West (Os Marx no Far West, 1940), por exemplo].
Entre os três irmãos mais conhecidos do grupo, Groucho foi o último a deixar este mundo. No dia 2 de Abril de 1974, ao ser chamado ao palco do Dorothy Chandler Pavilion, em Los Angeles, para receber um Oscar honorário, Jack Lemmon apresentou o homenageado, dizendo que o trio revolucionou tanto a comédia como o outro Marx mudou a filosofia e a política. Karl continua a ser estudado e analisado por especialistas nessas matérias. Groucho e seus irmãos continuam a quebrar as barreiras do senso comum e do conservadorismo, com gags anárquicos espectaculares que são muito mais intemporais do que se pensava nos anos 30 e 40, quando os filmes foram lançados. E tal como Groucho terminava muitos dos seus textos, encerro esta pequena dissertação (alegremente) marxista com uma interrogação, surgida sem qualquer tipo de explicação ou coerência com tudo o que aqui foi dito: “E quando é que quer que eu apareça em sua casa para jantar, uma noite destas?”.
P.S. – Minto. Não termino de teclar estas linhas sem salientar que, como é obvio, vale a pena recordar Groucho, e também Chico, e Harpo, e o discreto mas talentoso Zeppo (era perito em imitar os outros irmãos, o que deu jeito nos tempos da Paramount). Oportunidades para reavivar a memória deste marxismo não faltam: em boa hora foram reeditadas, pela NOS, duas caixas que incluem a maioria da obra do grupo. Um filme realizado para a RKO, Room Service (Um Criado ao Seu Dispor, 1938), ainda pode ser encontrado em algumas lojas, numa edição da Costa do Castelo. E os dois outros filmes aqui mencionados (aqueles que têm as senhoras Monroe e Miranda) encontram-se a preço de saldo, em (duvidosas) edições de uma daquelas estranhíssimas distribuidoras espanholas que pega em tudo o que tem direitos baratos ou que se encontra no domínio público.
Rui Alves de Sousa
Autor do programa radiofónico Um Lance no Escuro e redactor do site Máquina de Escrever.