O presente ensaio constitui parte da investigação concluída pelo autor em 2013. Em breve será publicado um livro com o trabalho completo realizado pelo autor acerca da obra de João César Monteiro.
O duplo e as máscaras
No momento em que aparece o corpo de João de Deus (João César Monteiro), a sua imagem contém, potencialmente, uma outra: a do autor renomeado, ou diversas outras, os excertos textuais reconduzíveis aos mais variados âmbitos culturais, permitindo-nos entrever um outro que não ele. Se, por um lado, a natureza dúplice do autor-ator permite um diálogo ininterrupto entre o cinema e o mundo, a personagem e a pessoa, salvando a representação através da marca indelével e autêntica da sua presença física no plateau; por outro lado, o corpo de João César Monteiro, enquanto lugar dialógico em que se encontram e colidem fragmentos textuais heterogéneos, leva-nos a uma interpretação que vai além da representação semântica dos enunciados, implicando, como diria Maurizio Grande [apud Comand, 2001: 2] “uma performance da reflexividade que visa o jogo entre a forma e o sentido, entre o conteúdo e a expressão, entre o significado literal e a alusão paródica, entre o sujeito da enunciação e as ‘máscaras retóricas’ da linguagem”[1].
Ainda que o protagonista da trilogia possa considerar-se uma personagem autobiográfica (também “é preciso ter sempre em mente que se trata de uma ficção”[2] [entrevista com João César Monteiro por Maurizio Borgese, 1991: 21]), uma espécie de espelho deformante capaz de dar ao seu intérprete uma nova consciência de si próprio, o corpo exposto de Monteiro é fundamentalmente um étranger, enquanto o seu ser duplo – atrás e diante da câmara – perturba com a sua presença no ecrã a serena sucessão das imagens como um “grão de areia [introduzido] na máquina para emperrar o mecanismo”[3] [Bazin apud Burdeau, 1996: 53]. Com efeito, a escolha de Monteiro em interpretar o papel de protagonista da trilogia faz com que o seu corpo se encontre sempre fora de sítio sendo um corpo estranho, uma espécie de intruso que, a partir de Recordações da Casa Amarela (1989), embora saiba não ser um comediante profissional[4], decide comparecer diante da câmara para habitar o mundo por si próprio posto em cena.
A estranheza do corpo de Monteiro, no entanto, não se manifesta só diante da câmara, não se esgota nas ações de João de Deus que desfilam pelo ecrã; explicita-se por trás da imagem, em profundidade, através de uma constante sobreposição de vozes e textos heterogéneos. Ainda que Monteiro habite na primeira pessoa o mundo por si criado, experimentando diretamente a própria fisicalidade na cena, o seu corpo, enquanto lugar dialógico, transborda os limites da imagem, derrama-se para fora do ecrã. Em suma, João de Deus, se por um lado permite o reconhecimento imediato do seu intérprete, por outro aparece-nos como um corpo estranho, ao coabitarem nele elementos provenientes dos mais díspares universos textuais e discursivos. É como se Monteiro, tal como Proteu, assumisse inúmeras formas e múltiplas máscaras, continuando simultaneamente a permanecer ele próprio num constante jogo de reflexos entre o sujeito citador e o objeto citado. Estas máscaras, provenientes de diversos âmbitos culturais e submetidas muitas vezes a processos degradantes de forte índole paródico-satírica, dão ao corpo proteiforme de Monteiro o direito de confundir, de macaquear, de falar parodiando, de se afastar da oprimente sociedade, de não ser literal, de não ser ele próprio, subvertendo a ordem pré-constituída do mundo. Tudo isto se manifesta na trilogia através de complexas operações transtextuais[5] pelas quais o corpo monteiriano se torna uma espécie de palimpsesto. Estas práticas heterogéneas envolvem sobretudo o código puramente cinematográfico, a sua dimensão narrativa e iconográfica e podem ainda adotar atitudes explícitas ou vagamente alusivas, de complacência ou hostilidade em relação aos elementos de referência.
O burlesco e paródia na comédia lusitana
Antes de dar início à análise dialógica do corpo de Monteiro, porém, parece-nos indispensável introduzir a moldura narrativa em que têm lugar as ações de João de Deus, a fim de poderem observar-se as operações trocistas postas em ato em relação ao universo ideológico-social, ou seja, ao género cinematográfico que Monteiro adota no primeiro capítulo da trilogia.
No que diz respeito a Recordações da Casa Amarela (1989), Monteiro inspira-se em parte na comédia portuguesa dos anos Trinta e Quarenta; de facto a ação desenrola-se sobretudo num bairro popular de Lisboa, precisamente num espaço limitado pela casa, as ruas em torno e a taberna. As várias personagens evocam parecenças com os protagonistas dos filmes antigos, reproduzindo por vezes as mesmas atitudes: João de Deus vive num quarto alugado, sente-se muito atraído pela filha da senhoria, a dona Violeta (Manuela de Freitas), e vive de estratagemas como o pequeno trabalho jornalístico que lhe é encomendado por Ferdinando (Duarte de Almeida alias João Bénard da Costa) no restaurante. Em Recordações da Casa Amarela encontramos ainda, como na comédia dos anos Trinta e Quarenta, a relação de conflito entre classes sociais diferentes: por exemplo, entre a dona Violeta que se pretende nobre, afirmando que a sua casa pertenceu em tempos a “marqueses e marquesas de príncipes de Portugal”, e João de Deus que consome a sua miserável existência entre o seu quarto invadido de percevejos e as ruas do bairro.
A este propósito, porem, é importante sublinhar como esta proximidade de género oscila entre o regime lúdico e satírico, já que alguns elementos que caracterizam a comédia dos anos Trinta e Quarenta sofrem no filme de Monteiro uma processo de saturação e exageração, sendo levados ao excesso muitos dos elementos que caraterizam o género imitado. Na verdade, em Recordações da Casa Amarela, João de Deus não pertence à pequena e média burguesia, como os protagonistas do filme modelo: é um miserável, um rejeitado que visita a mãe só para lhe pedir dinheiro ou que faz amor com uma prostituta, sua coinquilina. Além disso, as palavras das vizinhas são bastante ordinárias e roçam a vulgaridade mais grosseira: quando João de Deus se escapa na noite, depois de ter abusado da filha da sua senhoria, ouvem-se referências explícitas às suas capacidades sexuais e, sucessivamente, às dos respetivos maridos, como: “Panilas, o meu marido? […] Havia de ver os calos que tenho nos beiços da cona por causa dos colhões do meu marido”. Assim, se bem que o regime desta imitação não esteja bem definido, o filme funciona prevalentemente como uma caricatura, em que é estipulado, entre o autor e o público, um “‘contrato de pastiche’”[6] [Genette, 1982: 141], celebrado explicitamente pelo subtítulo “comédia lusitana”, que legitima a sua pertença, ainda que parcial, ao género de referência.
Mas a relação criada por Monteiro não se limita à exageração estilística que o pastiche-caricatura implica. O conteúdo do hipotexto, como constatámos anteriormente, vê-se aviltado por um sistema de transposições degradantes, sendo o filme caracterizado pela presença de fortes intenções parodísticas e burlescas. De facto, como sugere Genette, por vezes o pastiche, no sentido mais lato do termo, comporta em parte um “travestimento”. O disfarce burlesco é uma transposição estilística que comporta uma reescrita no sentido mais estrito do termo: aquele atua principalmente sobre o estilo do hipotexto de referência, “conservando a sua ‘ação’, isto é, tanto o conteúdo fundamental como o movimento […] mas impondo-lhe toda uma outra elocução”[7] [Genette, 1982: 67].
A este propósito, em Recordações da Casa Amarela, encontramos uma forte trivialização burlesca: na nossa “comédia lusitana” assistimos à degradação da personagem de João de Deus, “cujo desejo impotente oscila entre uma prostituta (com o coração na terra) e uma mulher-polícia” [Regina Guimarães e Saguenail, 1989: 41]. A comicidade ligeira típica da comédia transforma-se numa ironia grotesca, por vezes cínica ou fortemente trivial: basta pensar nos pelos púbicos de Julieta, recolhidos no duche por João de Deus, ou na infeção do seu aparato genital, comparado pelo médico durante a consulta a “uma rica hortaliça”. Ao mesmo tempo, porém, encontramos em Monteiro um forte intuito paródico em relação ao género-modelo. De facto, se a deformação paródica consiste em aplicar a um texto uma verdadeira ação baixa, suficientemente diferente da de origem mas análoga o suficiente para permitir o seu reconhecimento [Genette, 1982: 157], Recordações da Casa Amarela apresenta por vezes e de maneira parcial essas peculiaridades. A paródia confunde-se muitas vezes com o burlesco, mas quando é completa distingue-se porquanto “muda também a condição das personagens das obras que parodia”[8] [Fournel apud Genette, 1982: 159]. Não será casual que as personagens de Monteiro pertençam a um estrato social inferior ao dos heróis pequeno-burgueses das comédias dos anos Trinta e Quarenta: por exemplo, todas as personagens da casa de dona Violeta são marginais, como a prostituta Mimi (Sabina Sacchi), ou então pobres velhos doentes e abandonados. Esta combinação de práticas hipertextuais dá origem, assim, àquela categoria que Genette chama de paródia mista, em que se encontram elementos típicos da paródia, como o abaixamento das condições sociais das personagens do hipotexto, e elementos do disfarce burlesco, com a instabilidade estilística que o distingue.
Nosferatu, von Stroheim, Keaton ou o cinema da subversão
Concentrando-nos, em vez disso, no epílogo de Recordações da Casa Amarela, deparamo-nos com uma operação transtextual de toda uma outra natureza. Trata-se da cena em que assistimos à ressurreição de João de Deus no corpo de Nosferatu[9]. Ele emerge das vísceras da escuridão, do subsolo de um espaço urbano decadente e agonizante. A sua missão é a de invadir o espaço físico e mental dos seus habitantes, para operar nas suas vidas uma profunda revolução moral. Tal como a personagem de Murnau carrega consigo a peste, o mal obscuro, disseminando a morte na cidade onde desembarcou, também João de Deus interpreta alegoricamente a figura do vampiro, do predador solitário, cuja missão será a de despertar as consciências burguesas adormecidas. “[Monteiro/João de Deus] não transmite a doença ou a morte mas contagia, difunde o seu desejo e a sua perdição. Não só desvia moralmente, mas conduz ao extravio do sentido de blasfémia e degradação: ele contagia, desvia e sobretudo purifica da moral e do sentimento de culpa.”[10][Contento, 2000: 95].
O Nosferatu interpretado por Monteiro assume fortes conotações paródicas: configura-se, como diria Genette [1982: 24], como “uma citação desviada do seu sentido ou simplesmente do seu contexto e do seu nível de dignidade”[11]. A paródia, na sua forma mais rigorosa, “consiste […] em retomar literalmente um texto conhecido para lhe conferir um novo significado”[12] [Genette, 1982: 24], “conservando o texto nobre para o aplicar, o mais literalmente possível, a um tema vulgar (real e de atualidade)”[13]. É precisamente isto que acontece no epílogo de Recordações da Casa Amarela. Monteiro “modifica o tema sem modificar o estilo”[14] [Genette, 1982: 29]: João de Deus (personagem de perfil baixo) eleva-se a Nosferatu, apropriando-se de algumas características próprias do vampiro, como o avançar lento e sonâmbulo no interior de um espaço de fortes matizes expressionistas.
Sob uma análise mais atenta, tal referência hipertextual resulta um tanto complexa. A personagem vampiresca de João de Deus apresenta anomalias em relação ao Nosferatu de Murnau: ela emerge das vísceras da cidade, presumivelmente dos esgotos, e não do porão de um barco e, sobretudo, aterroriza crianças e não adultos. É por isso lícito pensar que tal referência, além do intuito paródico, é caracterizada também por uma operação transtextual próxima do disfarce e da trivialização burlesca. Em certo sentido, Monteiro “modifica […] o estilo sem modificar o tema”[15] [Genette, 1982: 29]: trata-se sempre da personagem do vampiro, mas “degradado por um sistema de transposições estilísticas e temáticas depreciadoras”[16] [Genette, 1982: 33].
A alusão ao famigerado vampiro está presente também no peritexto de A Comédia de Deus (1995): nos genéricos o autor utiliza o pseudónimo de Max Monteiro para indicar o nome do intérprete da personagem de João de Deus. Podemos ler numa entrevista concedida pelo próprio Monteiro: “É quase um gracejo. Pensei em Max Schreck, o actor que faz de Nosferatu no filme de Murnau. Isso vem do livro de Jean-Louis Leutrat sobre os fantasmas. Ele encontrou algumas semelhanças entre Recordações da Casa Amarela e Nosferatu (1922). E eu sempre achei que tinha uma certa semelhança física com Max Schreck.”[17] [entrevista com João César Monteiro por Pierre Hodgson, 1996: 33]. Tal referência transtextual configura-se como uma clara alusão paródica; de resto, tal como neste caso, a paródia brinca preferivelmente com textos breves e bastante conhecidos, baseando-se essencialmente no princípio da substituição, a maior parte das vezes sem qualquer motivação formal.
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Além de remeter para a figura de Nosferatu, na trilogia encontramos a presença de outras personalidades ilustres da história do cinema. Basta pensar no poster de von Stroheim no quarto de João de Deus e na sequência, ainda em Recordações da Casa Amarela, em que ele ressurge subitamente, mascarado de oficial de cavalaria, trazendo à memória, através da sua atitude altiva e do seu porte nobre, o capitão Sergei Karamzin, protagonista do filme Foolish Wives (Esposas Levianas, 1921), realizado e interpretado pelo próprio von Stroheim. Não obstante o hipotexto sofra uma transformação diegética, no filme de Monteiro existem diversas analogias com aquele: a personagem por ele interpretada usa a divisa de uma alta patente militar e monóculo, é fortemente atraído por mulheres bonitas e jovens e não tem quaisquer escrúpulos em apropriar-se do dinheiro de outrem. É emblemática a sequência em que João de Deus se introduz no quarto de Mimi, falecida alguns instantes antes, para lhe roubar as poupanças.
Também A Comédia de Deus é caracterizada pela presença de elementos associáveis a Esposas Levianas: recordemos as lágrimas simuladas de João de Deus diante da sua jovem empregada Virgínia (Anabela Teixeira), ou a cena em que o pai de Joaninha, o talhante Evaristo (Rui Luís), se vinga de João de Deus por este ter seduzido a sua filha (Cláudia Teixeira). Não obstante tais referências entrem no âmbito da paródia e, num certo sentido, do disfarce burlesco, segundo modalidades semelhantes àquelas já analisadas entre Nosferatu e Recordações da Casa Amarela, podemos notar como toda a trilogia apresenta afinidades com o cinema de von Stroheim, sobretudo pelo comportamento assumido por João de Deus diante da sociedade. Monteiro partilha com von Stroheim o desejo de grandeza, a vontade de subir na escala da hierarquia social ao ponto de se autoproclamar barão em As Bodas de Deus (1998). Para ambos, a assunção de altos cargos militares ou nobres “permite enganar por um instante a sociedade, estar acima das suas leis comuns, de infringir as suas proibições”[18] [d’Allonnes, 2002: 58]. Em Recordações da Casa Amarela, por exemplo, João de Deus, vestido de oficial militar, declara ao comissário da polícia a sua intenção de “marchar sobre São Bento”. Em As Bodas de Deus boa parte da ação desenrola-se no interior de um sumptuoso edifício de época, circundado por uma natureza luxuriante, em que o barão João de Deus disfruta das graças de uma jovem aristocrática ganha ao jogo, conjugando assim o estatuto nobre com os prazeres da carne. Monteiro e Stroheim são simultaneamente “grandes predadores e grandes senhores [que] fazem com mestria e brio, com estilo” o que os outros fazem de modo pouco gracioso: assim, o comum torna-se singular e “aquilo que é vício(s) torna-se arte de viver. E de um golpe, sendo soberbamente imorais, põem a descoberto a baixa imoralidade geral”[19] [d’Allonnes, 2002: 59]. Neste caso, Monteiro não parodia nenhum texto específico, não leva a cabo nenhuma transformação textual de tipo paródico ou burlesco, mas apropria-se de um género, de um estilo com os motivos temáticos e expressivos que isso implica. Por tais razões é plausível sustentar que esta operação possa entrar, de forma complexa, no âmbito da imitação.
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Uma outra referência hipertextual, obtida através da mediação de uma tipologia formal abstrata, é representada pelas fortes afinidades presentes entre a trilogia e a obra de Buster Keaton. Além da analogia imediata, caracterizada pelo facto de ambos serem autores e atores das suas obras, entre Monteiro e o seu modelo instaura-se uma relação profunda de similaridade, que envolve tanto a conceção do espaço como as características dramáticas de ambos. Antes de mais, entre os dois autores encontramos uma forte semelhança, sobretudo em relação à subversão das relações lógicas de causa-efeito entre as personagens e o espaço em que agem. O sistema cinematográfico de Keaton organiza-se em torno de “leis elementares que às vezes se sobrepõem às da lógica quotidiana”[20] [Ballo, 1982: 15], dando vida a uma personagem fortemente burlesca, entendida como expressão daquilo que é monstruoso e contranatura. O efeito cómico de tal perturbação, obtido por meio do artifício do excesso, deriva assim “do seu surpreendente absurdo”[21] [Ballo, 1982: 15] – pense-se, por exemplo, na segunda parte de The Boat (1921), de The Electric House (Pamplinas na Casa Eléctrica, 1922) ou de My Wife’s Relations (1922). Além disso, é importante sublinhar como a destruição das habituais relações lógicas da realidade se torna um momento de apoio criativo para a construção do gag. Este “toma forma através de uma transferência-deslocamento da perceção comum da realidade e da reconstituição, no interior do mundo derivado do deslocamento, dos percursos causa-efeito da lógica comum”[22] [Ballo, 1982: 18]. De modo análogo, também o corpo de Monteiro, intérprete de João de Deus, é antes de mais um corpo cómico, um corpo que escapa à ordem estabelecida, tornando-se portador de uma desordem, ou melhor, de uma outra ordem pessoal. Assim, à semelhança de Keaton, João de Deus não só viola a ordem das coisas, mas opõe e impõe ao mundo o seu universo pessoal. Ele age segundo um esquema bem preciso: por um lado comporta-se, nas situações normais, de maneira completamente anómala, por outro enfrenta situações anómalas de modo completamente normal, com uma absoluta simplicidade. Pense-se no almoço no convento, quando João de Deus, em presença da abadessa (Manuela de Freitas), se apropria de toda a comida presente na mesa para depois nem lhe tocar, ou na lição de natação dada a Rosarinho (Raquel Ascensão) ao som da ária de Wagner.
Para além do elemento burlesco encontramos outras afinidades, sobretudo no que toca à conceção do espaço. Como Keaton, Monteiro privilegia os planos fixos, frontais e distanciados, em que têm um papel fundamental tanto a profundidade de campo como a posição e as movimentações dos atores. Ele coloca o seu corpo e os das outras personagens num “espaço limpo e lógico, mesmo quando o excesso e a destruição aí aparecem”, construindo “um enquadramento de tipo renascentista, claro, eficaz, onde cada elemento presente está focado”[23] [Ballo, 1982: 62]. Prova disso, de modo particular, é a cena da lição de natação em A Comédia de Deus. Aqui, o espaço (um plano médio em que se instaura uma relação harmónica e equilibrada entre o ambiente e as personagens) evoca a perspetiva central do século XV, de modo análogo ao espaço keatoniano, em que o olho da câmara de filmar é colocado num centro ideal, evocando tanto a unidirecionalidade do olhar teatral, em particular da cena “à italiana”, como a angulação frontal da perspetiva renascentista. Assim, o volume do espaço capturado na sua fixidez é predisposto, por ambos, de modo a chamar a atenção do espectador para a relação entre os movimentos dos atores e os elementos significantes presentes em campo.
Em Monteiro, o espaço serve essencialmente para se colocar em cena, como personagem principal, ele mesmo e não outros, determinando, como para Keaton, a construção da dimensão espácio-temporal de cada enquadramento. Nesta circunstância, a operação mimética levada a cabo, não obstante ser reconduzível à forgerie, não tem nada de sistemático, não quer homenagear o próprio modelo nem apropriar-se de um estilo de outrem; pelo contrário, o estilo imitado por Monteiro revela “uma necessidade interior que oferece aos rituais filmados o seu escrínio indispensável”[24] [Jousse, 1999: 24].
Riso amargo
Chegados a este ponto não podemos deixar de notar a riqueza das referências homomediais presentes na obra de Monteiro e, consequentemente, o papel que nela assume o cinema. Além de constituir uma inexaurível fonte a partir da qual atingir situações narrativas e elementos iconográficos, o cinema representa para Monteiro o único país habitável, um país distinto, por oposição à “imundice social”[25] [d’Allonnes, 2002: 56], “um país para aqueles a quem Serge Daney chamava os ‘cinéfilos incompreensíveis’, socialmente inapresentáveis e mediaticamente aberrantes”[26] [Marcos Uzal in d’Allonnes, 2004: 262]. O cinema torna-se, assim, um meio para se defender da baixeza social e, simultaneamente, um modo de estar no mundo e de o habitar, combatendo abertamente tudo aquilo que o oprime. É como se Monteiro, identificando-se com certas personagens ou autores cinematográficos – quase querendo justificar a sua carga subversiva – encontrasse no cinema uma razão para a existência e um novo modo de enfrentar o mundo: “É o percurso de cada ‘cinéfilo’ para quem o cinema é o lugar de um reconhecimento depois de um renascimento.”[27] [Marcos Uzal in d’Allonnes (org.), 2004: 264].
Na verdade, além do dispositivo keatoniano, encontramos outras referências cómicas, cuja carga subversiva e irreverente se materializa na mise en scène de situações narrativas ou na re-interpretação de personagens procedentes do universo cinematográfico. Por exemplo, “[s]alvaguardadas as devidas diferenças, [em Vai-e-Vem (2003) reparamos em] duas referências cinematográficas marcantes: The Fatal Glass of Beer (1933) de W. C. Fields[28] e Monsieur Verdoux (O Barba Azul, 1947) de Charles Chaplin.”[29] Contrariamente ao que sucede em Que Farei Eu com Esta Espada? (1975), filme no qual a presença de Nosferatu se materializa mediante um trabalho realizado na mesa de montagem, em Vai-e-Vem o cinema não é objeto de referência intertextual literal e direta. Tal seria, de resto, impossível, já que “[o] plano, ao contrário da imagem mas como a música, não pode reproduzir-se nem citar-se”[30] [Daney: 1993, 22], a menos que se realize um verdadeiro transplante intertextual. As referências homomediais instalam-se no filme através de alusões mais ou menos explícitas nas quais é o espectador a desempenhar um papel decisivo na ativação da máquina textual: é ele que decifra os textos submersos, que perceciona a natureza das suas transposições, regulando o correto funcionamento das engrenagens dialógicas.
No que a The Fatal Glass of Beer diz respeito, as afinidades com Vai-e-Vem concentram-se em apenas duas unidades narrativas, ambas relacionadas com a figura do “filho pródigo”. A semelhança entre os dois filmes manifesta-se no plano do conteúdo reevocando, grosso modo, alguns aspectos temáticos do filme de partida, sem que aí exista uma particular adesão à mise-en-scène e ao contexto diegético original. A primeira analogia reside na “Balada do Jorge” que João Vuvu (João César Monteiro) canta, acompanhado por uma sanfona, à mulher-polícia Bárbara (Maria do Carmo), a quem narra os eventos que conduziram o filho, Jorge (Miguel Borges), à prisão. Também em The Fatal Glass of Beer encontramos uma cena semelhante, na qual Snavely (W. C. Fields), protagonista da curta-metragem, entoa uma canção sobre o filho detido, comovendo com a triste história o oficial Posthlewhistle (Richard Cramer). O segundo elemento a que se alude no filme de Monteiro, procedente da curta-metragem de Clyde Bruckman/W. C. Fields, é representado pelo regresso do filho a casa e a subsequente renegação por parte do pai e da mãe. Chester (George Chandler), regressado a casa após cumprir a pena de prisão, conta ter deitado fora os títulos financeiros que roubou, provocando a ira dos pais que, de tão desapontados, lhe quebram uma jarra e alguns pratos na cabeça, para depois atirarem para fora de casa o corpo sem sentidos, bem no meio de uma tempestade de neve. Também em Vai-e-Vem a confissão do filho provoca no pai uma reação violenta. Ao ouvir as palavras de Jorge, que confessa não ter “um centavo” dado que fez “doação de todo o pecúlio que roub[ou] a uma fundação cultural”, João Vuvu fica atónito com a decisão do filho, que ainda por cima pensa interná-lo num lar de idosos. O gesto de João Vuvu é extremo e inesperado face à sua índole aparentemente pacata. Efetivamente, a sua mordacidade e ferocidade sempre se haviam revelado em palavras, sem jamais se traduzir em ações maldosas ou agressivas. Dececionado pela atitude do filho, João Vuvu atira-o ao Tejo, livrando-se dele definitivamente.
Talvez este gesto imprevisto não seja afinal tão incompreensível e inesperado como à primeira vista poderia parecer. Numa análise mais atenta, o assassínio do filho Jorge poderia revelar a verdadeira natureza criminosa de João Vuvu, que podemos imaginar culpado pelo desaparecimento repentino de todas as mulheres que o visitam em casa. Isto explicaria, segundo Angélica G. Manso [2010: 161-162] “o misterioso e sucessivo desaparecimento de Adriana (Rita Pereira Marques), Narcisa (Lígia Soares), Jacinta (Rita Durão) e Urraca (Rita Pereira Marques), das quais, após intervirem em cenas isoladas e independentes, nada volta a saber-se”[31]. A sucessão das figuras femininas de Vai-e-Vem remete, com as divergências que toda a alusão intertextual logicamente comporta, para a série de uxoricídios cometidos por Henri Verdoux (Charles Chaplin), que se vê obrigado pela sociedade, cínica e desapiedada, a viver no crime para poder sustentar a sua verdadeira família. Na verdade, o sentimento de desilusão e desconfiança face à sociedade é um dos poucos elementos, reconduzíveis a Monsieur Verdoux, que conseguiram cruzar os limites do guião de Vai-e-Vem, imprimindo-se no espírito de João Vuvu. A este respeito, é exemplar o conselho que dá ao filho durante a conversa na margem do Tejo: “Foge da sociedade como o diabo foge da cruz. A única sociedade que deves fazer é contigo próprio.”
Infelizmente, a maior influência exercida pelo filme de Chaplin não encontrou lugar na realização do filme de Monteiro que, por razões muito provavelmente ligadas ao seu precário estado de saúde[32], excluiu uma sequência completa do guião. Trata-se da parte do filme em que a personagem do “Comandante Gregório Vaquinhas (João Vuvu disfarçado) da Marinha Mercante visita a Dona Betsabé Onanías, uma rica septuagenária que vive numa encantadora vivenda campestre”[33] [João César Monteiro, 2003 in Nicolau (org.), 2005: 468]. Nesta sequência Monteiro funde e atualiza alguns elementos narrativos provenientes do filme de Chaplin. Por exemplo, o disfarce de João Vuvu e o seu interesse pelas posses de Dona Betsabé remetem para uma das falsas identidades com que Henri Verdoux engana as mulheres para lhes furtar as riquezas que possuem. Em particular, estas alusões dizem respeito à figura do oficial da Marinha Capitão Bonheur e aos planos que concebe para se desembaraçar da sua abastada consorte. Tal como a personagem chapliniana, João Vuvu injeta veneno numa garrafa de vinho mas, ao contrário do que sucede em Monsieur Verdoux, alcança o seu intento homicida. Após o passeio de barco, Betsabé, envenenada, morre de ataque cardíaco durante o jantar romântico com o seu amor, Gregório Vaquinhas/João Vuvu. Esta sequência, de presumíveis traços idílicos, reevoca precisamente aquela em que o Capitão Bonheur, após ter falhado a tentativa de envenenamento, procura assassinar Annabella (Martha Raye), atirando-a ao lago. A reproposição dos mesmos elementos, ainda que com leves alterações, como a inversão da ordem das cenas do jantar e do passeio de barco ou a tentativa de homicídio – falhada em Chaplin, bem-sucedida em Monteiro –, corroboram a semelhança existente entre os dois filmes. Como é evidente, a sua filiação não se esgota na relação alusiva. Ela comporta igualmente operações transformadoras de natureza quantitativa. Existem reduções ou acréscimos substanciais em relação ao hipotexto chapliniano e transposições heterodiegéticas [Genette, 1982: 344] que atualizam a identidade dos protagonistas e o ambiente em que se desenrolam as ações das personagens.
Malgrado a sequência acima referida não ter sido incluída na versão final do filme, em Vai-e-Vem observamos outras transposições relativas à diegese original. Várias são as analogias, como a contraposição entre os interiores ordenados, onde reina o equilíbrio e a placidez, e os exteriores caóticos, onde, por exemplo, prevalece o ruído do autocarro em que viaja João Vuvu. Essa dicotomia está presente também ao nível pragmático[34] no dia a dia de João Vuvu, cujas deslocações entre a casa e o jardim do Príncipe Real remetem para as viagens de comboio que Monsieur Verdoux faz para se encontrar com as suas amantes-vítimas. Além disso, a analogia entre tais deslocações reflete-se no ritmo com que se sucedem no decurso da diegese, fazendo-as alternar em ambos os filmes com a apresentação e desaparecimento das respetivas personagens femininas.
Mas existe um outro aspecto associável ao cinema de Chaplin, cuja relação transtextual é inerente à operação imitativa. Não há qualquer filiação a um filme específico, tratando-se desta vez de uma afinidade bem mais ampla, que percorre transversalmente parte da filmografia chapliniana. As deambulações urbanas de Vuvu, e mais genericamente as precedentes, de João de Deus, trazem à memória as peregrinações de Charlot, o vagabundo interpretado por Chaplin. Os pseudónimos de Monteiro apresentam uma certa semelhança com a personagem chapliniana, não apenas porque ambos os autores oferecem o próprio corpo aos seus duplos no ecrã, mas pelo facto de partilharem uma certa duplicidade perante o mundo. Como Charlot/Verdoux, João de Deus/Vuvu “é um mendigo com ideias megalómanas” [Vítor Silva Tavares in d’Allonnes (org), 2004: 79] pertencente agora à média burguesia, ou pelo menos assim parece. O vaguear pela cidade, o aspecto oximórico que caracteriza ambas as personagens chaplinianas repercute-se, ainda que sob formas diferentes, na essência antitética que anima os alter ego de Monteiro. Há um desdobramento, uma ambiguidade fundada na coexistência de elementos contrapostos. Quer se trate da presença simultânea do sublime e do trivial em João de Deus ou da coincidência de modos requintados e gestos violentos em João Vuvu, observamos em ambos a índole contraditória própria das personagens encarnadas por Chaplin. O vestuário de Charlot materializa de forma exemplar essa incongruência: o chapéu de coco, o peitilho e o laço em cima, as calças a cair e os sapatos disformes em baixo; os movimentos elegantes com que tira o chapéu ou ajeita o laço em contraste com os gestos e a mímica do vagabundo. Existe sempre uma nota dissonante entre o aspecto exterior e o gesto. “Enquanto o protagonista[, por exemplo, em The Gold Rush (A Quimera do Ouro, 1925),] se veste com os trapos do vagabundo-caçador de ouro, os seus gestos revelam um irrepreensível cavalheiro. Mas quando se torna milionário e se veste com luxo, transforma-se num vagabundo: o vulgar coçar-se em várias partes do corpo, os gestos grosseiros, tudo traduz a não correspondência entre vestuário e função.”[35] [Lotman, 1999: 164]. Em suma, o corpo monteiriano reevoca, embora segundo características próprias, a natureza bifronte do corpo chapliniano, a sua unitária contrariedade, a união harmónica de opostos aparentemente inconciliáveis.
O corpo grotesco e a carnavalização da língua
A análise transtextual levada a cabo até aqui demonstrou a nítida prevalência de procedimentos transformativo-imitativos, permitindo-nos aceder ao laboratório monteiriano para lhe descobrir as matérias-primas e as técnicas de trabalho. É chegado o momento de procedermos à análise inerente ao hibridismo axiológico-linguístico. Como demonstraremos em breve, encontramos também aglomerados de formas linguísticas e estilísticas heterogéneas nos quais qualquer pretensão de unilateralidade ideológico-discursiva é subjugada pela ambivalência das línguas e das vozes que se cruzam e desencontram no seu interior. A este respeito, veja-se a mistura de gírias e estilos antonímicos e o revezamento entre referências nobres, de alto grau de erudição, e discursos obscenos e prosaicos. Deste modo, Monteiro aproxima o que é distante e separa o que tradicionalmente está unido, libertando a matéria do mundo das convenções unilaterais a que a ideologia dominante o vincula.
Tudo isto acontece mediante processos de trivialização em que a palavra irónico-paródica vem subverter a ordem habitual do mundo. O regime burlesco e o revezamento antinómico do alto e do baixo são o único remédio para salvar o homem da horrível sociedade. Como tal, Monteiro “usa venenos em quantidades precisas para se constituírem em contravenenos, phármaka: o sublime que salva do obsceno, o obsceno que torna mais sublime o sublime” [Paulo Filipe Monteiro in Acciaiuoli; Marques (orgs.), 2012: 272]. Em suma, o alto e o baixo intervêm com o fim de desmascarar as proibições e as imposturas da cultura dominante, revelando a arbitrariedade dos significados atribuídos às palavras e às coisas. “O divino surge do esterco” e “toda a merda pode, para os alquimistas, ser um dia transformada em ouro” [Paulo Filipe Monteiro in Acciaiuoli; Marques (orgs.), 2012: 272]. Monteiro leva à letra “o conselho de um poeta francês chamado Pierre-Jean Jouve: “Commence par le plus bas / s’épaissant sur les mots obscènes et froids”[36] [entrevista com João César Monteiro por Rodrigues da Silva, 1992 in Nicolau (org.), 2005: 360] e instaura, mediante a conjugação carnavalesca dos opostos, um regime dialógico desrespeitoso face à unilateralidade do sistema monológico vigente.
Em Le Bassin de John Wayne (1997), num local noturno um tanto ou quanto bizarro devido às manifestações extremistas de um pequeno grupo de neonazis, Henrique (João César Monteiro) e Jean de Dieu (Hugues Quester) bebem um copo enquanto ouvem Quero Cheirar Teu Bacalhau de Quim Barreiros, canção popular-pimba com claras alusões erótico-alimentares. No final da música, Henrique manifesta um irreprimível desejo de ter relações sexuais, citando, enquanto tenta convencer o amigo da necessidade de “esvaziar aqui os colhões”, uma célebre exclamação de John Wayne em The Searchers (A Desaparecida, 1956): “That’ll be the day!”. Henrique negoceia com uma prostituta (Manuela de Freitas): “Prefiro ao natural: cona e broche. Já estou velho para os três pratos! E só tenho fome de cona. Sou homem de gostos simples.” Mais uma vez assistimos à aproximação irreverente e invulgar de palavras e coisas incompatíveis nos contextos habituais. A fome e as imagens a ela ligadas são transpostas para um plano obsceno, literalmente abaixadas para satisfação dos órgãos sexuais. A boca é substituída pelo baixo-ventre, delineando uma inversão topológica das funções nutricionais do corpo. Nesta cena de equilibrada composição formal, Monteiro dá mostras da sua lúbrica licenciosidade, subvertendo as exigências morais e as normas da vida em sociedade. Enquanto se ouve a canção de Johnny Guitar (1954), Henrique faz sexo, fora de campo, com a prostituta e quase lhe desfaz a vagina. O auge da escabrosidade é atingido, porém, na cena em que Henrique urina no bar e logo depois se lamenta da desistência da prostituta enquanto a banda-sonora reproduz o Deguello de Rio Bravo (1959).
Este “acto inédito em cinema, como tantos outros que João César Monteiro retira da obscenidade para trazer à luz” [Areal, 2011: 258], expõe a sua vontade de depravar a moral coletiva, a sua atitude anticonformista perante a sociedade. De pé sobre o palco, com o órgão sexual na mão, Henrique urina diante do público presente no bar, diante da câmara, isto é, diante de nós – espectadores do filme –, transgredindo todas as normas prescritas pelo código ético e artístico da sociedade do espetáculo. Monteiro encena aquilo que deveria ser excluído das representações consideradas comummente normais, destruindo qualquer pretensão dirigida à alta cultura e à ideologia hegemónica, aqui personificada pela figura de John Wayne (de The Searchers e Rio Bravo) e pelo cinema clássico americano de que ouvimos alguns trechos musicais.
A ação escatológica reforça a carga subversiva de toda a sequência e põe em prática um inegável abaixamento paródico das alusões cinematográficas convocadas no filme. O ato de urinar, uma das ações tradicionais do realismo grotesco, “é sinónimo de destruição, […] de tumba para aquilo que é aviltado. Mas todos os gestos e expressões deste tipo são ambivalentes”[37] [Bachtin, 2001b: 161], já que os órgãos genitais remetem ao mesmo tempo para a germinação, a renovação. O gesto de urinar em palco humilha e submerge aquilo contra o que se lança a fúria iconoclasta de Monteiro e, ao mesmo tempo, liberta toda a força regeneradora contida no “caralho – que, como nos recorda Henrique, – é [precisamente] o lavrador da natureza”.
Em Monteiro a obscenidade não exercita apenas uma função degradante-burlesca, o cómico que lhe é subjacente não desemboca no sarcasmo enquanto fim em si mesmo, nem sequer na ironia burguesa “que é puramente negativa e formal”[38] [Bachtin, 2001b: 14-15]. Ao contrário “do autor puramente satírico, que conhece apenas o riso negativo”[39] [Bachtin, 2001b: 15], reduzido à ironia pura e a um fenómeno privado e abstrato sem qualquer ligação com a totalidade ambivalente da vida, a paródia carnavalesca reapropria-se do aspecto renovador e regenerador da cultura popular, da “lógica do ‘mundo às avessas’”, de formas linguísticas profanadoras, “livres das regras correntes (não carnavalescas) da etiqueta e da decência”[40] [Bachtin, 2001b: 14]. Para Monteiro esta estética do obsceno é uma verdadeira exigência, um meio através do qual confrontar o imobilismo sufocante da cultura dominante para “destruir e reconstituir todo este falso quadro do mundo, quebrar todas as falsas ligações hierárquicas entre as coisas e as ideias, destruir todos os extratos ideais divisores entre eles”[41] [Bachtin, 2001a: 316]. “Há gente que nunca se cultivou por baixo” e isto preocupa profundamente Monteiro, que sente “um verdadeiro antagonismo com o alto, o elevado, […] uma desconfiança básica, elementar” [João César Monteiro, 1999: 15].
A subversão cultural necessita de uma revolução completa, no sentido topológico do termo, isto é, uma inversão total da ordem axiológica do mundo. Isto significa que, por vezes, a inversão dos valores e das funções fisiológicas do homem, a inversão do alto e do baixo, podem não bastar para perturbar a ordem estabelecida. Para o fazer, como escreve Bachtin [2001a: 366], o interior deve fundir-se com o exterior e o homem projetar-se todo para o exterior. Eis pois que a visão em campo da micção materializa no ecrã a permuta da interioridade com a exterioridade, a passagem da esfera privada para a pública, tornando manifesta uma das ações mais íntimas e pessoais do ser humano. Revelando o que se oculta sob as ações mais sórdidas e banais, Henrique/Monteiro denuncia e exibe, literalmente, com uma irreverência sem limites, o falhanço da política reacionária da nossa sociedade e o início de um novo mundo liberto de todos os fascismos disfarçados de democracias[42]. “Eu não acredito na chamada democracia. Acho que é uma coisa completamente esvaziada de sentido, mas acho engraçado que se viva em regimes democráticos, porque isso é um jogo puramente formal de aparências, com aspectos cénicos curiosos.”[43] [entrevista com João César Monteiro por Alexandra Carita, 1998 in Nicolau (org.), 2005: 380].
Tais afirmações encontram a sua exposição cinematográfica na sequência de Vai-e-Vem[44] em que João Vuvu conversa com a sua velha amiga Fausta (Manuela de Freitas). Os dois, tendo-se encontrado casualmente num autocarro na direção de São Bento, decidem ir a um café pôr a conversa em dia antes de Fausta se dirigir ao parlamento para dar as suas “aulas de broche” aos governantes. Com efeito, este seu novo local de trabalho “é melhor que o Intendente”, pois como replica o senhor Vuvu “não tem comparação. É outro asseio, sem olvidar imunidades e boa governação.” Mas a irreverência contra as instituições e o poder estabelecido está bem longe de se atenuar. Sentado em posição simétrica em relação à amiga – a ordem do quadro, como sempre em Monteiro, oferece as condições ideais para a instalação da transgressão e da subversão ético-política, dado que o equilíbrio formal realça a desordem axiológico-verbal –, João Vuvu dá início a uma das mais ferozes reprimendas jamais ouvidas contra a religião cristã. Com um tom corriqueiro, Monteiro versa sobre a “grande patranha [que enfiaram] nos cornos de um carpinteiro a quem a mulher, uma puta judia, apareceu de barriga”; e sobre Jesus, o qual, “como qualquer pantomineiro que se preze, limitou-se a papaguear a lengalenga que todos já estavam fartos de saber: que esta vida é um vale de lágrimas”, para depois contar os preparativos da sua viagem à Etiópia.
Corte súbito e passamos a um plano de conjunto das duas personagens sentadas frente à escadaria do parlamento. Aqui João Vuvu expõe, numa abundância de detalhes, a técnica do brochim, o “broche chinês”, como se de uma lição de educação sexual se tratasse, um pouco licenciosa sim, mas ainda assim didática. Neste plano-sequência, a denúncia do poder político é desde logo evidente. A crítica à democracia, “ou, pelo menos, [a]o que dela resta, na sua grotesca expressão teatral”, é corrosiva e manifesta o mal-estar e a aversão de Monteiro pelo poder político[45] e suas ridículas dinâmicas legislativas. Mas se a irreverência se manifesta abertamente no conteúdo do discurso de Monteiro/Vuvu, não podemos descurar o facto de a irrisão paródica acontecer, também e sobretudo, por meio de uma particular figura retórica como a hipérbole.
A arguta e pormenorizada lição do brochim parece assumir, dada a terminologia empregue e o rigor da descrição, a forma de uma exposição técnica, atribuindo assim a uma ação trivial de baixo teor cultural uma conotação alta, como se se tratasse de uma formulação médica, anatómica. O broche chinês é alvo de uma hiperbolização, uma exageração em que podemos constatar a presença de elementos caricaturais e paródicos. Com efeito, a natureza hiperbólica é confirmada, seja pelos destinatários desta técnica erótica, isto é, os políticos de São Bento, seja pelo contexto supostamente alto em que é enunciada. Vuvu expõe diante do parlamento os procedimentos desta remota prática, elevando aquilo que por natureza é baixo, e destruindo a respeitabilidade do hemiciclo, local em que se decidem a sorte da res publica e as leis que regulam a integridade moral. Não por acaso, as palavras adotadas por Vuvu para descrever o ato legislativo relativo ao “broche chinês” são impregnadas de um estilo propositadamente irrisório que denigre a forma pedante e interesseira da linguagem e da conduta parlamentar.
Outra figura retórica, próxima da hipérbole na intenção e na modalidade, é a enumeração, cujo intuito paródico deriva do número excessivo de elementos enunciados. Exemplar neste aspecto é a digressão de Vuvu relativa aos princípios ativos dos fármacos, enumerados durante a sua conversa com Fausta. Na verdade, o elenco exagerado de produtos farmacêuticos que Vuvu, “em sinal de gratidão pelo bom acolhimento”, teria oferecido aos abissínios que teria conhecido na sua viagem à Etiópia, ridiculariza o espírito missionário das congregações católicas sob cuja falsa atitude caridosa se escondem “séculos de intolerância”, depredação e depravação, pois como sustenta Vuvu “resta-lhes a pedofilia”. A vertigem da enumeração liberta o sentido e revela as reais intenções que se ocultam por trás do significado aparente da enumeração, afirmando o exato oposto daquilo que é enunciado. De resto, os elencos excessivos e a acumulação exagerada partilham a ironia mordaz da antífrase, a inversão paródica cara ao realismo grotesco, cuja intenção é precisamente a de tornar ineficaz qualquer desejo de sistematização metódica e unilateral do mundo [Eco, 2009].
Num segundo olhar, porém, a retórica da enumeração excede em Vai-e-Vem os limites da sequência em que aparece, e organiza a própria estrutura do filme, reproduzindo numa escala mais ampla a mesma proliferação da acumulação. A semelhança, se não mesmo o parentesco, entre enumeração e acumulação, é-nos confirmada por Eco [2009: 133], quando escreve que “em geral as várias formas de listagem caberiam naquela figura de pensamento que é a acumulação”, de que também faz parte a enumeratio [Eco, 2009: 133]. Vai-e-Vem desenvolve-se pela adição de sequências independentes, cuja concatenação prescinde da consequencialidade lógica da diegese de tipo naturalista. Não existe nenhum desenvolvimento narrativo, as personagens não sofrem nenhuma maturação psicológica e as suas ações não têm como fim o alcançar do “objeto-valor”[46]. A coesão narrativa, se assim podemos defini-la, é dada pela organização rítmica através da qual Monteiro dá forma à matéria diegética. “Dividido em cenas como o projecto de La Philosophie dans le Boudoir, de que este filme herdou a ‘posição’ ou ‘o dispositivo’” [João Bénard da Costa, 2003], Vai-e-Vem é composto por uma sucessão de quadros, alternando o percurso de autocarro feito por Vuvu entre sua casa e o jardim do Príncipe Real e os seus encontros-cerimónias com as jovens mulheres. Monteiro reproduz “a construção rítmica de Sade”, acrescentando aos dois tempos do logos e do eros o revezamento entre exteriores e interiores, estrutura esta “rigorosamente binária, um pouco como nos filmes de Howard Hawks, mas sem quebrar o movimento perpétuo” [Monteiro, 1999: 71] – acrescentaríamos nós – do vai e vem.
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[1] O texto original em italiano é: “una performance della riflessività che investe il gioco fra la forma e il senso, fra il contenuto e l’espressione, fra il significato letterale e l’allusione parodica, fra il soggetto dell’enunciazione e le ‘maschere retoriche’ del linguaggio”.
[2] O texto original em francês é: “il faut toujours considérer qu’il s’agit d’une fiction”.
[3] O texto original em francês é: “grain de sable dans la machine pour en gripper le mécanisme”.
[4] A este propósito leia-se a afirmação de Monteiro: “je ne suis pas comédien” in Emmanuel Burdeau, “Ne pas céder un poil, Entretien avec João César Monteiro”, Cahiers du Cinéma, n.º 541, dezembro 1999, p. 42.
[5] Para uma abordagem exaustiva acerca do conceito de transtextualidade e das diversas tipologias e regimes que o caracterizam, veja-se Gérard Genette. Palimpsestes. La littérature au second degré. Paris: Éditions du Seuil, 1982.
[6] O texto original em francês é: “’contrat de pastiche’”.
[7] O texto original em francês é: “en conservant son ‘action’, c’est-à-dire à la fois son contenu fondamental et son mouvement […] mais en lui imposant une tout autre élocution”.O itálico no texto é do autor.
[8] O texto original em francês é: “elle change aussi la condition des personnages dans les œuvres qu’elle travestit”.
[9] Protagonista do filme homónimo realizado em 1922 por Friedrich Wilhelm Murnau.
[10] O texto original em italiano é: “Egli non trasmette la malattia o la morte ma contagia, diffonde il suo desiderio e la sua perdizione. Non solo devia moralmente, ma conduce a smarrire il senso di blasfemia e degradazione: egli contagia, devia e soprattutto purifica dalla morale e dal senso di colpa.”
[11] O texto original em francês é: “une citation détournée de son sens, ou simplement de son contexte et de son niveau de dignité”.
[12] O texto original em francês é: “consiste […] à reprendre littéralement un texte connu pour lui donner une signification nouvelle”.
[13] O texto original em francês é: “en conservant le texte noble pour l’appliquer, le plus littéralement possible, à un sujet vulgaire (réel et d’actualité)”.
[14] O texto original em francês é: “modifie le sujet sans modifier le style”. O itálico no texto é do autor.
[15] O texto original em francês é: “modifie […] le style sans modifier le sujet”. O itálico no texto é do autor.
[16] O texto original em francês é: “dégradé par un système de transpositions stylistiques et thématiques dévalorisantes”.
[17] O texto original em francês é: “C’est presque une boutade. J’ai pensé à Max Schreck, qui joue Nosferatu chez Murnau. Cela vient du livre de Jean-Louis Leutret sur les fantômes. Il a trouvé qu’il y a avait certaines ressemblances entre les Souvenirs de la maison jaune et Nosferatu. Et j’ai toutjours pensé que j’avais une ressemblance physique avec Max Schreck.”
[18] O texto original em francês é: “permet de tromper pour un moment la société, de se tenir au-dessus de sa loi commune, d’enfreindre ses interdits”.
[19] O texto original em francês é: “grands prédateurs et grands seigneurs, font avec maestria et panache, avec style, ce que est vice(s) devient art de vivre. Et du coup, en étant superbement immoraux, ils dévoilent la basse immoralité générale.”
[20] O texto original em italiano é: “leggi elementari che talvolta si sovrappongono a quelle della logica quotidiana”.
[21] O texto original em italiano é: “dalla sua sorprendente assurdità”.
[22] O texto original em italiano é: “realizza attraverso uno spostamento-spiazzamento della percezione comune della realtà e della ricostituzione, all’interno del mondo derivato dallo spiazzamento, dei percorsi causa-effetto della logica comune”.
[23] Os textos originais em italiano são: “spazio pulito e logico anche quando l’eccesso e la distruzione vi compaiono” e “una inquadratura di tipo rinascimentale, chiara, efficace, dove ogni elemento presente è a fuoco”.
[24] O texto original em francês é: “une nécessité intérieure qui offre aux rituels filmés leur indispensable écrin”.
[25] O texto original em francês é: “porcherie sociale”
[26] O texto original em francês é: “un pays pour ceux que Daney appelait les ‘cinéphiles incompréhensibles’, socialement imprésentables et médiatiquement aberrants”.
[27] O texto original em francês é: “c’est le parcours de tout ‘cinéfils’ pour qui le cinéma est le lieu d’une reconnaissance puis d’une renaissance”.
[28] Como nos lembra João Nicolau [in Nicolau (org.), 2005: 465], citando o livro de James Curtis [W. C. Fields – A biography, Alfred A. Knopf, New York, 2003], a realização de The Fatal Glass of Beer, “embora seja um projecto original de W. C. Fields, […] é creditada a Clyde Bruckman. Tal deve-se ao facto de o produtor, Mack Sennett, descontente com o resultado final apresentado por Fields, ter exigido que a sequência da canção […] fosse montada com planos alusivos à vida de Chester”, o filho pródigo de Snavely.
[29] O texto citado foi extraído da sinopse oficial do filme.
[30] O texto original em francês é: “Le plan, contrairement à l’image mais comme la musique, ne se reproduit pas, ne se cite pas”.
[31] O texto original em espanhol é: “la misteriosa y sucesiva desaparición de Adriana, Narcisa, Jacinta y Urraca, de las que, tras intervenir en escenas aisladas e independientes, nada vuelve a saberse”.
[32] Veja-se o depoimento de Vítor Silva Tavares [in d’Allonnes (org.), 2004, 89], no qual afirma que a débil condição física de Monteiro foi o motivo para não se ter realizado a cena que deveria ter sido rodada na Serra de Estrela.
[33] Esta citação foi extraída da sinopse do argumento de Vai-e-Vem.
[34] Neste caso podemos falar de transformação pragmática [Genette, 1982: 360] uma vez que assistimos à “alteração do próprio curso da ação e do seu suporte instrumental” [“modification du cours même de l’action, et de son support instrumental”], considerando a atualização ao nível espácio-temporal da ação extraída do hipotexto.
[35] O texto original em espanhol é: “Mientras el protagonista se viste con los trapos del vagabundo-buscador de oro, sus gestos revelan a un irreprochable caballero. Pero en cuanto se vuelve millonario y se pone ropa lujosa, se transforma en un vagabundo: el vulgar rascarse varias partes del cuerpo, los gestos groseros, todo traduce la no correspondencia entre vestimenta y rol.”
[36] No texto a citação está em francês. Uma tradução para português será: “Começa pelo mais baixo / adensando-se sobre as palavras obscenas e frias”.
[37] A versão italiana do texto original é: “è sinonimo di distruzione, […] di tomba per ciò che viene abbassato. Ma tutti i gesti ed espressioni di tal tipo sono ambivalenti”. O itálico no texto é do autor.
[38] A versão italiana do texto original é: “che è puramente negativa e formale”.
[39] A versão italiana do texto original é: “dell’autore puramente satirico, che conosce soltanto il riso negativo”.
[40] As versões italianas dos excertos originais são: “logica del ‘mondo alla rovescia’” e “libere dalle regole correnti (non carnevalesche) dell’etichetta e della decenza”.
[41] A versão italiana do texto original é: “distruggere e ricostituire tutto questo falso quadro del mondo, spezzare tutti i falsi legami gerarchici tra le cose e le idee, distruggere tutti gli strati ideali divisori tra di loro”.
[42] A este propósito é sintomática a presença, em pelo menos duas sequências do filme, de referências metafóricas ao poder repressivo da sociedade, mediante a utilização de imagens alusivas ao Terceiro Reich.
[43] Esta é uma questão que preocupa Monteiro desde o documentário pós-25 de Abril Que Farei Eu com Esta Espada?, em que entrevista alguns marinheiros perguntando-lhes o que é a democracia.
[44] O tom blasfemo e irreverente invade todo o filme e não poupa nenhum poder, seja ele político, religioso ou televisivo. Veja-se a sequência em que João Vuvu, acompanhado por uma sanfona, canta à mulher-polícia as vicissitudes do seu filho Jorge e o crime por ele cometido.
[45] Desde tenra idade que Monteiro sente uma profunda repulsa pelos políticos. Em “A Minha Certidão”, Monteiro [1974a: 47] escreve sarcasticamente: “Por volta dos 15 anos, fixei-me com a família em Lisboa, para poder prosseguir a minha medíocre odisseia liceal. Instalado no colégio do dr. Mário Soares, acabei por ser expulso ao contrair perigosíssima doença venérea. Pensei, então, que entre a política e as fraquezas da carne devia existir qualquer obscena incompatibilidade, e nunca mais fui visto na companhia de políticos.”
[46] Esta definição indica, como explica Dario Tomasi [1988: 16], “o fim para o qual tendem os esforços de uma personagem”. [“il fine verso cui tendono gli sforzi di un personaggio”.]