Lendo o ensaio de Jorge Luís Borges sobre o trabalho do escritor Nathaniel Hawthorne, deparo-me com um debate interno, que Borges ensaia, sobre os valores e os desvalores do recurso alegórico. Ele chama à mesa a voz de Benedetto Croce desaprovando o esquema(tismo) narrativo de Dante no seu Inferno – a alegoria viria a ser uma adivinha mais extensa, mas lenta e mais incómoda – opondo-a à de Chesterton, que olha a alegoria como apenas uma das múltiplas e (em potência) igualmente belas formas da linguagem humana. Na moderação entre os dois está o escritor argentino afirmando que “há escritores que pensam por imagens (Shakespeare ou Donne ou Victor Hugo, digamos) e escritores que pensam por abstracções (Benda ou Bertrand Russel). A priori, uns valem tanto como os outros, mas, quando um abstracto, um racionalista, quer também ser imaginativo, ou passar por tal, acontece o denunciado por Croce. Notamos que um processo lógico foi engalanado ou disfarçado pelo autor, ‘para desonra do entendimento do leitor'”. Xavier Beauvois é, neste sentido, um racionalista a fazer-se passar por alegórico e La rançon de la gloire (O Preço da Fama, 2014) é o objecto travestido que resulta desse intento: uma versão ultra-pasteurizada do pathos em ponto de rebuçado das mãos sabedoras de Chaplin – o grande confeiteiro do cinema.
O filme começa com uma legenda que nos avisa esta história é baseada em factos verídicos para que fiquemos confiantes do realismo da fábula que vamos acompanhar: espera-se assim que o impacto emocional seja mais forte no espectador, por este sentir a extravagância do real e para mais facilmente se identificar com os personagens do pequeno conto proto-natalício. E esse conto traduz-se em poucas linhas; em 1977 Charles Chaplin dança pela última vez a dança dos pãezinhos na pequena localidade de Vevey, na Suíça. Todo o mundo chorou. Um par de malandros probretanas viram no homem que elevou a mendicidade ao cume artístico uma oportunidade de inverterem a sua própria indigência ao raptarem o cadáver do cómico inglês e exigirem a consequente compensação financeira resultante da devolução do dito. Promete, de facto. Mas não cumpre.
O esquematismo do texto é tocante e, acima de tudo, é extraordinário que uma premissa com tanto potencial se converta num filme tão enfadonho.
Beauvois, que realizara antes Des hommes et des dieux (Dos Homens e dos Deuses, 2010), que à altura pôs todas as alminhas nas palminhas – um exemplo limpinho do que é o lento e pasmoso cinema europeu que todos os anos vence festivais e a crítica encarneirada (o ano passado foi o Pawlikowski) – vira-se agora para o drama-cómico de pendor moral de olhos vidrados no mercado interno francês [estavam a pensar em ti, meu querido Intouchables (Amigos Inseparáveis, 2011)]. O problema encontra-se no facto de, em ambos os casos, se sentir que o dedo de Beauvois é um que faz por fazer e menos por querer. Ou colocando a coisa doutra forma, sente-se a farsa na realização, como se tiques e toques da realização e dramaturgia fossem construções competentes mas desprovidas de intenção pessoal. Ora, em Des hommes isso notava-se menos, já que o ‘estilo’ cinema-de-autor-europeu dá-se muito bem ao mimetismo cordato e competente, mas em La rançon tudo se torna evidente: o ritmo cómico (ou outro qualquer) evaporou-se, a utilização da música incomoda de confrangedoramente básica (é de propósito, mas há limites…), os actores são subaproveitados em todas as cenas (com excepção do momento do circo – onde, nem de propósito, Beauvois se anula para bem dos clowns), o esquematismo do texto é tocante e, acima de tudo, é extraordinário que uma premissa com tanto potencial se converta num filme tão enfadonho.
Salvam-se os poucos insertos de Chaplin que a televisão vai diegeticamente exibindo (e que inspiram a gatunagem), mas para isso prefiro a minha televisão cá de casa onde posso entrar voluntariamente na hipoglicémia delico-doce do King.