Numa conversa recente com o realizador Miguel Gomes a propósito da sua obra prestes a estrear entre nós As Mil e uma Noites (2015), este dizia que um dos objectivos a que se propôs foi criar uma equipa de rodagem capaz de responder em tempo real filmando ficções capazes de se relacionar com as notícias que uma equipa de jornalistas ia produzindo sobre o Portugal de 2014. Não interessa tanto aqui o espelho que o filme esculpe entre a ficção e o suposto real, mas mais a noção de máquina de contar histórias em tapeçaria, heterogénea, que no final possa produzir uma ideia de trama conjunta. Lembrei-me dessa “máquina” quando, numa conversa entre Alicia, a menina de 12 anos prestes a morrer de leucemia, e o seu pai Luís, ela lhe pergunta qual era o super poder que ele escolheria caso pudesse. Ao contrário deste que optava pela dom da invisibilidade, Alicia preferia o poder da transformação: de se mutar a todo o tempo em quem quisesse.
É este poder de transformação aquilo que salta à vista no segundo filme de Carlos Vermut, espanhol vindo da ilustração de banda-desenhada. A abrir, as linha rectas e os fora de campo possantes (como se diz, no início desta batalha entre razão e instinto, 2+2 são sempre 4 e a matemática é a única verdade inalterável) mostram um passo de magia de uma menina mal comportada na sala de aula ante o seu professor. Depois, passamos à literatura, ao instinto. O professor desempregado, que tem relutância em vender a La Colmena de Camilo José Cela ao quilo juntamente com outros livros, sabe que o que é importante é que a sua filha Alicia passe os últimos momentos da sua vida com ele. Mas mesmo assim está disposto a tentar obter uma batelada de dinheiro (7 mil euros) para conceder à filha um último desejo, um vestido de colecção exclusiva pertencente a um manga japonês chamado Magical Girl. Estamos portanto na “casa” de uma pequena “anedota” dramática em jeito indie sobre as relações de parentesco.
Se o poder mágico de transformação é o trunfo do realizador espanhol, ele também deixa antever umas quantas debilidades de quem ainda apura o seu gesto
Contudo, quando Luís está prestes a partir uma montra de joalharia há uma femme fatale (rapariga “caprichosa e tonta”) que lhe vomita para cima. Esse vómito é para Vermut o sinal do acaso que lhe permite transformar lentamente Magical Girl (Rapariga Mágica, 2014) num thriller com imagética noir onde a delicado drama dá lugar à chantagem, à prostituição sado-maso e eventualmente ao homicídio. Sem contar muito mais, até porque a graça do filme está na substituição da noção de tensão tradicional (como libertar-se desta situação?) por um trompe d’oeil que pretende subverter o género em que se encontra até ao último instante, note-se a reverência tarantiniana [os slow motions de Reservoir Dogs (Cães Danados, 1992) e os inusitados e sangrentos desvios de Pulp Fiction (1994)] que muito terão agradado Pedro Almodóvar que se diz querer produzir o seu terceiro filme, assim como o júri do festival de San Sebastián que lhe deu o prémio máximo, a Concha de Prata.
Se esse poder mágico de transformação é o trunfo do realizador espanhol, ele também deixa antever umas quantas debilidades de quem ainda apura o seu gesto. Disso são exemplos as tiradas mais ou menos políticas sobre o seu país (entalado entre a razão e o instinto), as límpidas metáforas da destruição do puzzle ou do livro que ninguém irá pegar na biblioteca (a Constituição Espanhola), as cenas com ferrete independente (Alicia a dançar ao espelho) e noutros casos o over acting ou o slow acting a denotar falsa profundidade nos seus personagens e ainda alguma falta de mão de Vermut para a direcção de actores.
Se virmos Magical Girl como essa tentativa de fazer as personagens de um género cinematográfico serem a dada altura abocanhadas por outro género, podemos dizer que, no final, sob o aparente triunfo da matemática e da razão (as matemáticas aniquilam as letras), o espectador fica demasiado próximo da ideia de truque. Ou seja, ainda é preciso invisibilizar mais a intenção, a linha que segura a espantosa levitação.