Segunda parte da entrevista que Carlos Natálio fez a um dos directores do IndieLisboa. Nesta metade da conversa fala-se da importância política dos prémios de festival, da pedagogia do olhar, dos novos formatos de visionamento e de D.W. Griffith como o latim da história do cinema. A parte I pode ser lida aqui.
E depois há outros festivais com os quais o Indie se identifica mais…
Em relação ao modelo de programação, gosto particularmente da Viennale. Nesta há um conjunto muito alargado de público que passa uma espécie de cheque em branco ao festival. “Não sei o que vão programar este ano mas vou lá estar.” É o que muitos pensam. Já foram a edições anteriores e confiam suficientemente para voltar a ir. E este é um bom exemplo até porque Viena é uma capital com o mesmo número de população de Lisboa e um bom objectivo era chegar ao seus números, 100 mil espectadores todos os anos. Um festival que na verdade não é muito diferente do IndieLisboa, quer na sua filosofia, quer no número de filmes. O Indie foi agora em Abril e a Viennale é em Outubro. Quando vires o programa deles vais perceber que eles têm vários filmes que passaram cá este ano e que outros vão, por sua vez, ser exibidos no Indie de 2016. Há um fluxo e uma afinidade com o festival assim como há com outros. No fundo constitui-se uma rede de festivais com uma linha de programação muito parecida. Nessa rede, diria que na América do Sul o mais próximo será o BAFICI [Festival de Buenos Aires], na Europa a Viennale e na Ásia o festival Jeonju na Coreia. Sendo que no Indie há algo distintivo que é esse tratamento igualitário entre curtas e longas, a programação nacional e internacional. Por exemplo, na Viennale há uma programação excepcional de curtas mas é minoritária dentro do festival.
A propósito da questão da noção genérica de Indie, tal permitiu uma abertura estratégica do festival a outros territórios. Como é o caso das curtas que, fora dos circuitos de festival, é um formato praticamente invisível.
As curtas estiveram muito ligadas ao sucesso do festival. Quando nos sentámos, o Miguel, o Rui Pereira e eu para desenhar o festival, já depois de termos achado o nome e o conceito, para achar o número ideal de filmes, quantas e que secções, decidimos que para cada competição de longas haveria uma competição de curtas e para cada secção paralela de longas também uma de curtas. Esta decisão foi muito importante ao ponto de ser recorrente no festival teres autores que começaram a ser programados na secção de curtas e entretanto passaram para o formato maior.
E entretanto também com a secção novíssimos…
Sim, agora ainda tentamos ir mais atrás. Mas em geral há uma transversalidade completa que permite identificar muitos jovens talentos e depois seguir estes percursos ao longo de muitos anos. Por exemplo, este ano foi a primeira vez em que se deu um fenómeno interessante. O realizador que ganhou o prémio de melhor filme para a competição internacional e também o prémio dos blogues foi alguém que tinha sido premiado nas curtas há oito anos. Foi o Radu Jude. E juntamente com ele havia mais um ou dois nomes na competição internacional que estavam na mesma situação. Isto é algo que não acontece em Cannes, Berlim, ou nos ditos festivais grandes. Acontece por exemplo em Roterdão, festival que aliás é vítima, do meu ponto de vista, de um certo esgotamento do seu modelo de programação. Parece estar refém de uma obrigação de programar todos os anos 350 filmes. E é complicado encontrar todos os anos esse número de filmes que valha a pena mostrar. E depois com todas as auto-restrições, por exemplo, de ter só estreias internacionais. Faz lembrar o dogma 95: impor-se um sistema de regras auto-castradoras. Porquê?
Há pouco falávamos da importância do Indie Júnior. Como concebes a ponte entre a tua actividade de programador e a tua actividade lectiva, de formação?
Grande parte daquilo que eu faço como professor na área de cinema também tem a ver com aquilo que eu faço como programador. Uma espécie de pedagogia do olhar. Aquilo que faço enquanto professor é uma maneira de olhar para os filmes, de os ler. São coisas que demoram tempo, tem a ver com a formação de uma experiência. E isto faz-se trabalhando os filmes na sua condição histórica e contemporânea. Olhar para um filme independentemente do momento em que foi produzido implica sempre uma capacidade de relacionamento histórico. Somos tão contemporâneos de um filme de 2015 como de um de 1905 e sobretudo contemporâneos pela sua capacidade de os interpelar. Ler neles a produção de um discurso fílmico através das ferramentas do cinema e da capacidade de relacionar isso com outras coisas. Relacionares-te com a tua própria identidade enquanto espectador de cinema. O que faço como programador de cinema é relacionar-me com objectos que me permitem manter com eles uma relação de criação de uma interpelação emocional, intelectual. Um desafio permanente à minha capacidade de leitor. O que quero quando estou no cinema é ser desafiado. O meu objectivo como formador é desafiar os alunos a serem melhores leitores das imagens. E nesse sentido não há uma diferença tão grande entre formador, programador e crítico de cinema. São actividades parecidas, sobretudo pela capacidade de despertar este gosto pela leitura cinematográfica. Embora o programador talvez seja uma actividade mais solitária. Vemos os filmes, partilhamos com os colegas, mas a partir do momento em que são seleccionados os filmes vão ter de se defender sozinhos. Depois os espectadores terão um diálogo com as propostas de programação do festival e isso é muito mais importante do que haver um consenso à volta das nossas escolhas. Nós não programamos filmes para tapar buracos ou com os quais não nos sentimos complemente confortáveis. E nesse sentido ao longo dos anos fomos sendo mais críticos em relação ao nosso próprio trabalho de programação.
Foram formando o vosso próprio olhar, no fundo.
Sim. O percurso tem a ver com aquilo que vimos. Agora talvez seja mais claro ler sinais de um certo cinema que está de costas para o futuro e que, tendo sido sido programado em 2004, hoje já não seria seleccionado por nós. Existiam filmes que achávamos na altura muito fortes e em consonância com o tempo cinematográfico contemporâneo e para os quais olhamos hoje com maior desconfiança. Neste sentido, o novo nem sempre é critério.
O novo pode ser uma fórmula vazia.
Exactamente e por isso talvez sejamos hoje um pouco mais reaccionários. No bom sentido, que é a capacidade de não ir atrás de todo e qualquer hype. À medida que vês mais filmes, os critérios de leitura vão-se apertando e produz-se um cansaço que permite que, quando apareça algo novo, tu o saibas identificar rapidamente.
Já foste júri em vários outros festivais e sabes que cada vez mais estes se desmultiplicam em atribuições de prémios. Neste cenário, achas que os júris devem estar conscientes da importância política e económica do prémio que vão atribuir?
Para já acho que a relação que o espectador mantém com os filmes em competição não deve estar dependente da possibilidade de este ganhar um prémio. Mas para um festival é muito importante a questão de um palmarés até porque esses elementos de natureza competitiva ajudam a valorizá-lo, nomeadamente, aos olhos dos patrocinadores. Portanto, um festival precisa de jogar esse jogo mas não deve levá-lo demasiado a sério. O importante é que um júri seja capaz de manter-se dentro do seu espectro de opções, ser fiel aos seus princípios e, se possível, ser consentâneo com as linhas mestras que definem a programação daquele festival. Cada um deve ser capaz de lutar pelo filme em que acredita, independentemente do seu significado político ou estratégico, e não devem preocupar-se com aquilo que acham que o festival quer premiar. Cada júri tem um sistema de valores que constrói ao longo do processo de visionamento e decisão e a sua soberania é essencial. A partir do momento em que o festival designa o júri, deve terminar aí a sua interferência, assim como com a selecção dos filmes. Nós programamos e depois os júris hão-de ser capazes de trabalhar num sistema autónomo de responsabilidade. Agora, há júris e júris. A responsabilidade que sentimos ao escolher os júris é tão grande quanto a que temos ao selecionar os filmes. Gosto desta frase: “cuidado com o que programas porque esse filme pode ganhar um prémio”. Como só programamos e não escolhemos vencedores, então se estamos desconfortáveis em relação a esta ou àquela obra mais vale não a selecionar. Cada programador tem que dar a cara pelos filmes várias vezes: porque apresenta a sessão, porque dirige a conversa com o realizador, porque tem o feedback do público. Por isso não se deve programar numa bolha, imune às repercussões do seu acto. É preciso ter a noção que a escolha de um filme deixará um rasto, seja ele positivo ou negativo. Inclusivé um efeito de contaminação, não é só aquele filme que conta mas também todos os outros que estão à volta.
No limite, um festival pode ficar marcado pela escolha dos filmes errados.
Sim, existe aquela boutade, eu não quero saber quais são os filmes bons que um festival tem, mas sim os maus. Saber o que é um filme mau na Viennale ou no Bafici. E depois perceber se esse filme mau, ainda assim, é suficientemente bom para ser escolhido. Tem de existir uma fasquia elevada em cima, mas também uma fasquia alta em baixo. E não ficar vítima de muitas restrições pois isso implica mostrar filmes que não são os que o público deveria na realidade ver mas aqueles que cumprem as regras do jogo que eles próprios inventaram.
E a escolha dos filmes errados, se recorrente, nessas micro-decisões, pode afastar público.
Sim, mas há erros dos quais só nos apercebemos demasiado tarde e apostas que não geram efeitos de contágio. E em alguns festivais os erros são sistémicos, existe um sistema que ele próprio é um sistema de produção de erros.
Também há a questão da relação. Às vezes é preciso um filme menor para percebermos como e qual o maior e como ele de facto pode sobressair.
Isso é uma questão interessante. Para já, na definição do que seria esse filme menor. No Indie tentamos sempre arranjar espaços para esses ditos filmes menores, filmes que não vão poder ganhar prémios, que têm menor atenção da comunicação social, que atraem menos gente porque não têm um gancho que os puxe para um público mais alargado. Estes são vitais ao festival para este não se cristalizar numa espécie de efeito de reconhecimento.
E, mesmo essa menoridade, ela é um mecanismo intrínseco à comparação. Mesmo que programes 10 filmes maravilhosos, o espectador vai “criar” alguns “maus” ou menores para poder ter termos de comparação.
Claramente, como aliás os júris também o farão.
Tendo o Indie nascido para colmatar falhas da distribuição portuguesa, como é que vês a mudança na relação com esta ao longo destes doze anos?
Penso que algumas distribuidoras têm sido inteligentes em cooperar com os festivais de forma a valorizarem o seu próprio catálogo. E hoje há cada vez mais aquilo que não víamos há dez anos que são as operações conjuntas. Um festival pensa na homenagem de um autor e a distribuidora aproveita esse momento para fazer um relançamento da sua obra, por exemplo, em DVD. Isso aconteceu no caso do Indie com a Heddy Honigmann e a MIDAS filmes, que aproveitou para lançar 4 DVDs. Aconteceu também este ano. Depois de termos mostrado no passado a trilogia Paradise do Ulrich Seidl, uma distribuidora aproveitou esta edição para fazer uma ante-estreia da sua nova obra Im Keller (Na Cave, 2014) e lançá-la a seguir em sala. Existem modelos de colaboração interessantes que não estão completamente esgotados. Por exemplo, um cinema como o Ideal talvez tenha beneficiado da capacidade de o Indie lhes trazer às salas um público que podia não ser originariamente o daquele espaço. Um público novo que não conhecia o cinema e que esperemos que a ele volte.
O que sentes em relação a esse projecto do Cinema Ideal? Vê-lo tendencialmente como uma aposta corajosa, ou como algo mais nostálgico, que surge um pouco em contracorrente?
Eu gostava muito que existissem mais salas como o Ideal. Acho que fazem muita falta. Lisboa é das poucas capitais europeias que não tem cinemas de rua. Para ires ao cinema tens de entrar nos espaços comerciais. Depois do fecho do King, do Londres, do Quarteto já não tinhas salas a dar para a rua. O Ideal nasce num eixo importante da cidade de Lisboa onde passam diariamente milhares de pessoas e onde seria expectável que, além dos outros negócios, existissem também cinemas. Há teatros no Bairro Alto, no Chiado. Porque não cinema? Portanto, acho muito importante que exista e ainda mais importante seria que se multiplicasse. Por exemplo, na Almirante Reis já existiram nos anos 80 pelo menos três salas de cinema. Estes cinemas significam uma vida urbana mais rica, com um consumo cultural mais intenso.
Mudando um pouco a agulha. Tu como programador vês anualmente centenas de filmes, muitos deles em ecrãs de computador. O que sentes em relação a essa experiência? Nomeadamente naquilo que pode modificar ao nível da percepção, depois com a passagem em grande ecrã nos festivais.
É verdade que há esta tendência para ver mais filmes em ecrãs cada vez mais pequenos. Por exemplo, no início do festival os filmes que nos submetiam era na sua grande maioria em VHS e uma menor percentagem em DVD. Neste momento, recebemos 4500 filmes e se calhar só 500 em DVD e o resto vemos por links. O cinema de computador tem meia dúzia de anos, não mais do que isso mas vai-se acentuar, sobretudo em dispositivos móveis. Isso é preocupante na medida em que está implicada uma redução progressiva do ecrã, que é algo contraditório com a experiência estética plena daquilo que historicamente se definiu como a experiência do cinema em sala com determinadas condições de visionamento: sala escura, concentração máxima, ecrã grande que permite ver muitas coisas que na dimensão mais reduzida são impossíveis de observar. Agora, apesar de tudo isto, a grande questão é esta: se por um lado para mim as condições ideais de visionamento de um filme não se alteraram (sala escura, ecrã de dimensões razoáveis), por outro lado, a experiência enquanto programador diz-me que as qualidades de um filme aguentam tudo. Incluindo a redução, essa miniaturização do cinema. É verdade que podes ser mais displicente por não estares a apreender as propriedades cinematográficas mais completas de um filme. Agora, um filme que não tem qualidade não as ganha necessariamente por ser visto num ecrã maior. E o contrário também: um filme bom não o deixa de ser num ecrã menor. Agora, mais importante do que a dimensão do ecrã é a divisão da atenção. Quando vês em formatos mais pequenos é mais fácil dividir a tua atenção por outras coisas. A atenção una e indivisível por um único objecto é cada vez mais difícil e é sempre esta luta pela tua capacidade de não deixar que o teu nível de atenção baixe e que esta se divida por múltiplas coisas ao mesmo tempo. Ainda que estejas num ecrã diminuído, importa que a tua atenção não encolha.
Essa economia da atenção é algo mais vasto, que se sente não só no cinema mas em todo o quotidiano.
A questão é saber até que ponto os novos consumos cinematográficos vão dispensar essa atenção una e indivisível perante um só ecrã. Para mim, enquanto espectador formado na cinefilia tradicional, é difícil de aceitar que uma pessoa possa estar a ver um filme do Griffith e outro ao mesmo tempo, ou a vê-lo e a postar a sua opinião sobre esse filme no Facebook. Aqui eu sou reaccionário e acho que há qualquer da experiência que se perdeu. E pego no exemplo do Griffith por ser alguém que, se diminuíres o teu nível de atenção, não vais conseguir perceber as suas obras e a tua experiência estética e artística perde-se. Eu, como professor, passo sempre pelo Griffith e é curioso ver que para estas novas gerações o Griffith é como o latim. Para eles aquilo é uma língua morta. Acham evidente, mas quando faço perguntas concretas sobre a construção fílmica narrativa dos filmes, apercebo-me que eles não são capazes de ler o Griffith. Se, por exemplo, com cineastas como o Gaspar Noé, basta apanhar fragmentos para se ficar com o todo, o Griffith e a codificação da sua linguagem exige essa atenção indivisível. No Griffith por vezes o plano geral, a “lentidão”, exigem do espectador um trabalho árduo, muito activo.
E o que sentes sobre esta mutação tecnológica do cinema?
A história do cinema passou por convulsões técnicas até mais drásticas que as de agora. A mais popular, a passagem do mudo para o sonoro que foi muito mais radical do que a passagem do analógico para o digital, por exemplo. Com a passagem do mudo ao sonoro tiveste toda uma recodificação à luz de novos desafios de linguagem que o digital não coloca. Para o espectador leigo que está na sala, o digital é a mesma coisa. O digital veio acelerar foi a contaminação de uma linguagem audiovisual que vem já desde os anos 80, em figuras como a linguagem televisiva, o videoclipe, agora o videojogo. Aqui sim, acho que se tem formado um esperanto que está no cinema, na televisão, nos jogos de vídeo. Quer dizer, o latim ainda existe. Mas é minoritário…
Está por baixo de, é a raiz.
Sim. Um espectador que seja versado em “latim” consegue ler o “esperanto” e o “latim”. O espectador que só sabe ler “esperanto” não lê mais nada. O espectador que conhece a história do cinema e é capaz de se relacionar com ela é como se alguém conseguisse falar diferentes línguas. Possui um domínio linguístico que atravessa as diversidades das várias línguas, precisamente porque há elementos comuns a todas elas ligadas a uma gramática da língua e lógicas similares de articulação entre os elementos sonoros e visuais. Embora a transposição para o cinema deste universo da linguística não possa ser total, há algo de comum na capacidade de leitura e de construção. O espectador que é capaz de ler o Griffith é capaz de ler o Tarantino, embora o contrário seja mais complicado, a não ser que este tenha formação nessa tal história do cinema. Falo sempre do Griffith porque, por exemplo, as curtas dele de duas bobinas têm já todos os princípios da construção narrativa. E alguém que queira hoje fazer cinema tem mais a aprender com estes filmes do que com uma curta feita em 2015 por exemplo. Nestes casos convém resistir às evidências, há a tendência para achar tudo evidente. Mais vale fazer o exercício de tentar perceber como é que se pode contar uma história sem palavras, sem som síncrono em 1911, histórias muitas delas com graus de grande complexidade interna. Hoje parece que vivemos num novo regime de cinema primitivo, de um cinema das atracções, do primado do visual, do visual para encher o olho. Se reparares na primeira geração de vídeos no youtube, eles parecem remakes de filmes feitos em 1896. O pequeno gag que se esgota em si próprio. Ou ainda mais radical. Quando vi os senhores dos anéis pensei “isto é o Ferdinand Zecca de 1902”. Filmes como Vie et Passion de N.S Jésus-Christ (1907) causaram grande impacto pois via-se o Cristo a fazer isto ou aquilo e o filme esgotava-se nisso, nessa significação visual que não apelava para mais nada a não ser para si própria. Sendo muito crítico dos blockbusters, sou muito entusiasta e defensor da televisão contemporânea como sendo ela a herdeira de uma certa riqueza narrativa. Algo que como se sabe teve o seu expoente máximo no cinema clássico. Para mim é hoje muito mais gratificante ver uma boa série de televisão em 2014 do que o cinema mainstream americano que não acho muito interessante.
Engraçado fazer esse “jogo temporal”. Podemos reportar-nos à idade da televisão e pensar se ela não estará agora a viver o seu período clássico, como aconteceu no cinema norte-americano.
Sim. Hoje muita dela é herdeira do craft do cinema clássico americano. Bons autores, bons argumentistas, bons actores. Mas inseridos numa lógica de carpintaria em que, sendo séries de televisão comerciais, esse aspecto não é castrador de uma identidade. O que sinto quando vejo uma série de televisão – como o The Wire, Six Feet Under, The Sopranos ou Breaking Bad, séries de que gostei muito – foi que a uma ideia de uma autoria partilhada (que mais uma vez remete para o cinema clássico) não se impuseram à partida limites. Há coisas extraordinárias. Por exemplo, a série de televisão que a Lisa Chodolenko realizou agora para a HBO, Olive Kitteridge (2014). Uma mini-série de 4 episódios, com a Frances McDormand, em que uma das personagens envelhece vinte ou trinta anos. A Lisa em cinema nunca fez nada tão interessante como isto. Porque a série lhe deu tempo, quatro horas, com um arco narrativo de vinte anos. De repente tens uma experiência semelhante à do Boyhood (Momentos de Uma Vida, 2014), mas sem o tempo real. O melhor cinema americano que se faz actualmente, de manufactura tradicional, é o da televisão.
Para terminar, com todas estas experiências por que já passaste, como definirias a tua cinefilia hoje?
Para as pessoas da minha geração, a nossa cinefilia começa na televisão. Feita à base de ciclos de cinema clássico e moderno que a televisão (na altura apenas a RTP) foi ministrando em doses relativamente regulares. Quando tens 10 anos e vês o teu primeiro ciclo Hitchcock na televisão, e aos 15 os primeiros Bergmans ou o Lubitsch. Isso é determinante e relaciona-se com a questão da liberdade. Quanto tens muita liberdade de escolha, acabas por não ter escolha nenhuma. A minha geração passou por um processo de educação em que só se via aquilo ou não se via. Felizmente havia óptimos programadores de cinema na televisão na altura. O papel do Fernando Lopes na RTP2 nos anos 80 foi muito importante por exemplo para uma política de gosto. Portanto, a minha geração começou a ver cinema na televisão e também cinema português. Era fácil ver um filme do João César Monteiro ou do Manoel de Oliveira às nove da noite e hoje isso é impossível. Assim como Lang, cinema europeu ou outro qualquer. Penso que isso foi decisivo para a formação de um gosto cinéfilo, que se forma entre os 10 e os 15 anos. A partir daí, a sementeira está feita. E a partir desta idade, podes melhorar. Depois, à medida que vais podendo construir activamente aquilo que vês, fiz como muitos, comecei a frequentar as sessões da Cinemateca Portuguesa e da Gulbenkian. Também a fase final do Cinema Quarteto com uma oferta diferente, a abertura do King. Todas estas foram experiências de formação cinematográfica muito importantes. Depois entrei para um curso de comunicação com uma componente cinematográfica e fui sempre escolhendo cadeiras que tinham a ver com o cinema. De repente passou a deixar de ser algo diletante para ser algo mais profissional. Começo a trabalhar em programação cinematográfica quando ainda estou no ICA. Depois Cinemateca e Indie. Na Cinemateca só via filmes velhos com aspas e no Indie só “novos”. Mas, além da obrigação profissional, tento complementar a minha cinefilia e durante o Indie não deixo de ver filmes clássicos. E penso que cada vez mais tento complementar a minha formação cinéfila vendo coisas que nunca tive a oportunidade de ver. No fundo, entre o gosto e a obrigação, tentar encontrar um equilíbrio que me permita manter uma dieta cinéfila variada.
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