A última crónica Civic TV teve o efeito antecipado na sua primeira frase, ainda que tenha sido uma surpresa agradável ver tanta gente disposta a questionar não só a sua relação com as séries de televisão como a natureza contrapontual destas face ao que nos faz ver e ainda resistentemente amar o cinema. Foram deixados alguns comentários e pequenas provocações em torno do texto. Gostava de lhes dar uma forma de resposta nestas linhas antes de descer ao objecto que me ocupou o espírito neste mês, as três partes de Millenium, exibidas de seguida no canal FOX Movies. O meu esclarecimento segue a linha que assumi no início dessa crónica, isto é, não se demarca do exercício de opinião polarizado no “não”, a palavra que em grego (oxi) tem virado moda a partir dos nossos ecrãs. Avanço, concretamente, com três “nãos” (1, 2, 3) para responder a algumas das questões levantadas.
(1) Não fui eu que disse que as séries são melhores do que os filmes, mas também não direi que são realidades incomparáveis. Não fui tão longe assim, até porque é difícil de fugir ao trânsito crescente entre as séries e o cinema em matéria de realizadores, actores, argumentistas, tudo. O que disse é que, quanto muito, haverá uma incompatibilidade de partida entre os dois se o realizador procurar fazer cinema na televisão e televisão no cinema. Incompatibilidade com quê? Com o que são, a meu ver, as principais lições da ontologia cinematográfica, onde, como procurei sublinhar citando o caso de Orson Welles e as palavras de Jorge Silva Melo, os modos de ver e dar a ver o mundo – o tal “toque” ou “maneira” do realizador – suplantam o valor da história contada. Não que a boa história seja irrelevante, ela muito simplesmente não é essencial ao grande cinema.
Lembrei-me das palavras de James Gray na sua master class dada há dois anos no Lisbon & Estoril Film Festival. Falava ele da decepção que tivera durante a realização do piloto de uma série chamada The Red Road (2014). Gray dava testemunho dessa maquinaria implacável onde só há tempo para administrar o guião e seguir em frente. O modo de produção acaba, depois, por contaminar a própria natureza dos objectos. É que, ao contrário das séries, o cinema gosta de olhar para trás. Ele está aberto à (re)visita. Temos uma certa tendência para inclusivamente fazermos parar o tempo com o intuito de surripiar aquela imagem ou outra. Nele trabalha-se a dimensão fetichista do olhar do coleccionador sobre a sua colecção. É uma apreciação langorosa tendente à imobilidade pura. Nas séries parece-me que vigora um prazer mais próximo do da leitura rápida, da sucessão de “revirares de página”, de uma construção cena a cena que lembra a forma como os nossos olhos scanam horizontalmente um texto, da esquerda para a direita em sucessivas linhas rectas. Processamos informação, mas raramente habitamos as coisas, lugares e pessoas, com esse sentimento antecipado de saudade, isto é, de desejo de regresso. (2) Não disse também que Wayward Pines (2015-) é uma má série, como li nalgumas reacções. Não cheguei sequer a emitir juízo sobre o que havia visto da mesma dentro daquilo que é ou pode ser uma série de televisão. O que disse, e que é significativamente diferente, foi que é elucidativo o exercício de a pôr ao lado dos filmes de Shyamalan, para, por exemplo, constatar como ao lado do suposto pior filme a badalada série não tem razões para se encher de vaidade. Num medium em estado de graça, levado aos ombros por uma poderosa indústria, a televisão, não pude deixar de me surpreender com o facto de nele ter encontrado a forma de um cinema pobre, corrompido ou descaracterizado.
A própria serialização do cinema será sintomática do presente contexto de euforia em torno dos modelos narrativos das séries televisivas. E surge como uma pequena perversão das estratégias correntes de exibição.
Falei desta série como podia falar de outra. Por exemplo, já que citei aqui os casos de Gray e de Shyamalan, a de outro grande realizador “de câmara” da actualidade: David Fincher. O piloto de House of Cards (2013-) parece-me também emblemático de semelhante processo de descaracterização cinematográfica, com os seus dispositivos teatrais, a meu ver, radicalmente anti-fincherianos e a colagem previsível e pomposa de histórias sobre os bastidores do decision making da política. Contra House of Cards oponho um Advise & Consent (Tempestade sobre Washington, 1962) de Otto Preminger, cinema político acutilante sem as mesmas vaidades estilísticas ou o mesmo embasbacamento com a grandiloquência dos seus actores. O piloto de Shyamalan surge precisamente pelo facto da televisão lhe ter dado refúgio depois do fracasso monumental de After Earth (Depois da Terra, 2013) no boxoffice. E de, na antecipação, me ter interrogado se seria possível voltar a ver o Shyamalan que conheço e admiro. Depois de visto, não pude deixar de sentir essa distância ontológica que faz com que o cinema se incumpra em pleno na televisão e vice-versa. O que significa, enfim, uma série “directed by… Shyamalan, Gray ou Fincher”? A minha proposta foi aferir precisamente o valor cinematográfico dessa “acreditação”.
Mas também (3) não: não direi que não há boas séries, tal como não direi que só há bons filmes. Nuns e noutros, conseguimos encontrar um longo catálogo de boas ou más práticas sobre como desviar o objecto do seu percurso essencial. A própria serialização do cinema será, como identifiquei noutro número desta crónica, sintomática do presente contexto de euforia em torno dos modelos narrativos das séries televisivas. E surge como uma pequena perversão das estratégias correntes de exibição. Em alguns ou mesmo em muitos casos, preside uma lógica de “render o peixe” o mais possível e de ir beber aos novos hábitos de consumo do espectador, cada vez mais um apreciador de longas maratonas televisivas.
Tudo isto não se aplica apenas aos franchises baseados em best sellers da literatura fantástica ou fantasiosa, como The Mazze Runner, Hunger Games ou Harry Potter. Por exemplo, Tarantino dividiu o seu Kill Bill em dois volumes e, com isso, lançou o mote. Tivemos depois Trier e os dois volumes de Nymphomaniac. E estão aí à porta os três volumes de As Mil e uma Noites de Miguel Gomes, que, em certa medida, parodiam na sua estrutura muitas das conclusões que avanço nestas crónicas. Por um lado, o mecanismo tradicional das séries televisivas merece, aqui, uma forma de tratamento cinematográfico, já que os laços narrativos são fracos, quase incongruentes. Por outro lado, o filme raramente olha para trás, “engaiolado” que vai sendo pela ininterrupta cadeia de narração instaurada por Xerazade. Fá-lo deste modo até ao ponto em que nos sentimos trapaceados, tal é a forma como o filme no seu conjunto passa a perna a si mesmo; como no seu projecto estético e político ele é in toto produto de um realizador que quer comer o bolo e tê-lo. Por exemplo, Gomes a fazer de Gomes diz que é burro, que não sabe, não consegue, mas o que faz o Gomes a fazer de Gomes a fazer As Mil e uma Noites? Propõe sempre, a cada novo volume, dar o peito às balas e esboçar “o” retrato deste nosso país assolado pela crise e pela injustiça social. Contudo, depois, a montanha pare um rato: o filme não cessa de se refugiar nessa retórica dos “não sei” ou, como se lê no cartão mais infeliz de todos, dos “aparentemente” que marcam desde o início o discurso do cineasta no e do filme. Se pensarmos que esta série de filmes se baseia – ia escrever “alegadamente” – em notícias dos jornais, apetece dizer que tudo isto soa a desistência.
Apesar da agenda me puxar para o aprofundamento do tríptico de Miguel Gomes, foi outra a série de filmes que me ocupou o espírito no passado mês, e que interessa trazer aqui. Os três filmes Millenium, adaptações ao cinema dos livros policias de Stieg Larsson que muitas cópias venderam em todo o mundo, foram mostrados em modo maratona pela FOX Movies. Acidentalmente ou não, a SIC passou poucos dias antes The Girl with the Dragon Tattoo (Millennium 1: Os Homens Que Odeiam as Mulheres, 2011), a versão de Fincher e Steven Zaillian do primeiro livro da trilogia. A tentação será comparar o já citado filme norte-americano ao filme sueco, Män som hatar kvinnor (Millennium 1. Os Homens que Odeiam as Mulheres, 2009). Vou ceder a essa tentação, sobretudo porque encontro no que os separa a explicação para a importância de dois filmes que, à partida, teriam tudo para redundar o esforço de uma mesma tentativa de adaptação literária. A verdade é que mesmo tendo o mesmo texto por base os dois filmes são muito diferentes entre si.
Desde logo, e começando pela superfície das imagens, o filme de Fincher faz uma interpretação mais plástica da luminosidade nórdica. É um filme mais frio, de azuis, cremes e brancos que, fora o sexo (já lá vou), reduzem a atmosfera estética e dramática a valores celsius negativos. Por seu lado, a versão sueca é mais atravessada no tecido dramático pela fragilidade dos seus dois improváveis heróis. O jornalista interpretado por Daniel Craig é muito mais assertivo e seguro de si do que o jornalista interpretado por Michael Nyqvist. A situação de um é diferente da do outro. Por exemplo, no filme sueco Mikael Blomkvist irá cumprir pena de prisão decorrente da condenação por crime de difamação, ao passo que no filme norte-americano Blomkvist não só goza ainda da sua liberdade como tem em mãos a possibilidade de contra-atacar os seus inimigos com material novo facultado pelo poderoso patriarca da família Vanger. Também a hacker punk Lisbeth Salander interpretada por Rooney Mara parece ter um controlo maior sobre as operações que a mesma personagem incarnada pela sueca Noomi Rapace – nem que seja por esta última aparecer mais assombrada/manietada pelo seu passado. É curioso ver como, de uma maneira ou de outra, o jornalista e a hacker se vão juntar nas suas forças e nas suas fraquezas; como os dois filmes entrelaçam a história de um e outro numa dialéctica que não cede um milímetro ao sentimentalismo romântico.
Contudo, e voltando às superfícies…, a diferença fundamental reside no facto de Fincher descer a temperatura da imagem para elevar a temperatura dos corpos a níveis altíssimos. The Girl With the Dragon Tattoo é o thriller frio mais quente da história do cinema. E, nem de propósito, é muito mais sexual e animal – e, nesse sentido, também mais assustador – que o filme sueco, que por comparação se revela tímido na sua gramática corporal. Ainda que se trabalhe nos dois filmes um qualquer êxtase pela investigação e obtenção da informação, Fincher é mais engenhoso, mais cineasta, a dar um sentido animal aos gestos indagatórios. Há uma rítmica intensa entre, por exemplo, o modo como Lisbeth Salander vasculha no laptop ou em dossiers num arquivo empoeirado e o modo como se atira ao corpo de Blomkvist, procurando fazer do sexo – e das relações humanas – parte de um qualquer processo instantâneo de pesquisa. Uma cena extraordinária no filme de Fincher não é replicada no de Niels Arden Opley. Em pleno coito Mikael Blomkvist procura conferenciar com Lisbeth (“I was thinking…”) sobre o caso em investigação.
A troca de informação, a conjugação de cérebros, nunca se aproximou tanto do calor – e desejos – dos corpos. Depois da primeira noite de sexo, Lisbeth diz a Blomkvist “I like working with you”. Este é o novo “I love you”/”I want you” no cinema do realizador de The Social Network (A Rede Social, 2010). No filme sueco, mais quente na imagem, o sexo é inibido, ainda que Noomi Rapace saiba como jogar com a sua sensualidade bruta quase tão bem quanto Rooney Mara. São dois dragões sinuosos, incontroláveis e, portanto, tremendamente desejáveis. Não precisa de legendagem o facto de Blomkvist fazer questão de continuar perto de Lisbeth nos dois filmes seguintes. Se no início ela sabe tudo sobre ele, porque invadiu o seu computador privado e, com isso, devassou o seu direito à privacidade, nos filmes seguintes a relação inverte-se. É o macho atrás da fêmea. A sedução é, contudo, a mesma: pelo processo de pesquisa e descoberta, usurpação, partilha e revelação de dados. Troca de informações como troca de fluidos. Tudo o que rodeia a narrativa destes dois corpos é, para mim, um MacGuffin de interesse oscilante.
Os dois filmes seguintes, Flickan som lekte med elden (Millennium 2: A Rapariga que Sonhava com uma Lata de Gasolina e um Fósforo, 2009) e Luftslottet som sprängdes (Millennium 3 – A Rainha no Palácio das Correntes de Ar, 2009), aparecem realizados por Daniel Alfredson. Muda-se de realizador porque, de facto, o primeiro filme sobrevive bem sozinho, ao passo que os dois seguintes são o “volume 1” e “volume 2” da mesma história. Lisbeth é envolvida numa rede de tráfico de mulheres e alta corrupção e Blomkvist vem a lume em defesa desta “rapariga que brincava com o fogo” (título inglês do filme). É interessante como uma rede de factos nunca nos afasta da força desse elo que liga este inesperado casal entre si. O desenlace deste segundo filme, próximo que está da violência e tensão de um slasher, provoca essa reunião nas condições mais extremas. O último filme será como que uma obra de bastidores, um courtroom drama que salda todas as dívidas que ficaram por pagar a Lisbeth, em consequência das injustiças e abusos de que esta foi vítima. É um longo, demasiado longo, epílogo, mas de novo é o desenlace que puxa por nós: como será o esperado reencontro? Depois de tanta negociação, tanta politiquice, tanta escavação perigosa, Blomkvist rouba a Lisbeth um tímido, quase contrariado, “obrigado”. Mas fica à porta. Não entra. Ela perdeu o seu “príncipe encantado”? Talvez, mas isso não é perder para Lisbeth. A guerreira solitária, o dragão agrilhoado ao passado, ganhou finalmente asas na solidão do seu novo apartamento por mobilar. Ela é uma jogadora exímia que não pode perder. Muito pelo contrário: agora o céu é o limite. Não precisamos de pensar em Assange ou Snowden para sabermos que o futuro é dela. Melhor: o futuro é Lisbeth Salander.