Em plano geral, corpo magro, espinha vertical, andar ligeiro e elegante. Em grande plano, nariz pontiagudo, cara chupada, sorriso leve, olhos cansados e umas entradas proeminentes no escasso couro cabeludo. Em plano de pormenor, as mãos grandes que Robert Bresson usou para filmar um dos roubos de carteira em Pickpocket (O Carteirista, 1959), naquela que foi a primeira aparição deste clown no grande ecrã. Pierre Étaix fez algum furor nos anos 60 – chegou a ganhar um Óscar – para depois desaparecer subitamente após ter realizado um filme polémico, até hoje incompreendido, e ter sido premiado com uma mão cheia de azares extracinematográficos. Étaix podia ter sido um dos clowns do mudo, porque o mudo era, de facto, a sua casa sentimental e estilística. Mas, por muito paradoxal que possa parecer dizê-lo, Étaix era um mudo que amava o som.
Pierre Étaix vai nascer para o espectáculo com a paixão pelo circo e a ele regressará depois de uma passagem quase meteórica pelo cinema. Como num dos seus filmes mais ambiciosos, Yoyo (Yo-Yo, 1965), apetece dizer que em mais nenhum caso se adequará melhor a expressão, que aqui improviso: “uma vez clown, para sempre clown“. Ainda assim, desengane-se o leitor que pense na arte burlesca de Étaix como pura transcrição da sua fascinação pelo espectáculo circense. Étaix soube fundamentalmente extrair das suas origens a polivalência típica aos intérpretes nos pequenos circos itinerantes onde o palhaço acumula os papéis, por exemplo, de trapezista e domador de leões. De novo, Yoyo aparece como autobiografia relevante não só para atestar o indisfarçável amor ao circo, como para nos dar a perceber o que o circo valeu a um dos mais prodigiosos gagmen da segunda metade do século XX.
Étaix foi designer gráfico, ilustrador de livros, músico, palhaço antes de, no cinema, realizar, escrever, interpretar e – não é um pormenor – desenhar o som dos seus filmes. O desdobramento de Étaix nas suas funções fez deste um independente puro e um esponja sempre pronta a absorver os ensinamentos que aprimorassem qualquer uma das suas artes. No cinema, encontra a escola. Ou melhor, para ser mais preciso, junto de Tati Étaix descobre o lugar onde os seus “sete instrumentos” podiam tocar em liberdade, à procura, quiçá, de uma forma final coerente, ainda que o desejo pelo concerto, para um comediante de forte costela burlesca, não fosse, de facto, maior que o gozo pelos efeitos de um desconcerto. Étaix aplica, assim, os seus saberes à arte de desenhar gags a partir de um cineasta onde tudo era geometria e onde tudo era caos. Para Mon oncle (O Meu Tio, 1958) dispensa os serviços da sua imaginação para conceber alguns dos gags mais marcantes da obra de Tati e ainda será o responsável pela concepção gráfica dos cartazes do filme – com eles, Étaix como que transformou num “traço puro” todo o poder sugestivo do imaginário tatiesco. Com Tati, Étaix vai absorver noções de ritmo e precisão na construção (no desenho, para retomar a palavra mais justa aqui, não fosse Étaix um palhaço designer antes de tudo) do gag. Construção essa que aos olhos do jovem comediante francês aparecia, expurgada, sob a forma de uma linha pura, na banda de som. As cores Eastmancolor de Tati, intoxicantemente evocativas de uma infância mais sonhada do que alguma vez, de facto, vivida, não serão o lugar do reencontro entre mestre e aluno, até porque os filmes de Étaix serão realizados num preto-e-branco relativamente austero. Também não é a ideia de um gag arquitectónico, que faz escola em Tati, que irá seduzir o jovem cineasta. Será mais pelo ouvido do que pelo olho que a esponja Étaix saberá aproveitar os ensinamentos do mestre. E pelo ouvido, espante-se o leitor!, Étaix encontrou tudo o que excluiu pela imagem: cor e arquitectura.
Se face a um filme de Tati o impacto das imagens é suficiente para que a sedução se gere, como um lugar quente onde queremos estar, mesmo antes de sabermos que aí se irá trabalhar a comédia, nos filmes de Étaix a entrada é menos imediata. O riso será aqui o lugar de um progressivo enleio, mas para chegar a ele é preciso estender um fio; desenhar, ponto a ponto, a situação geradora da gargalhada. Dirá, em entrevista, que construiu o gag no papel como se fosse um relógio. Para essa construção, foi decisivo o contributo de um Jean-Claude Carrière em início de carreira, que co-realiza e escreve com Étaix as suas curtas-metragens e que continuará a ser o seu argumentista nas longas-metragens. [Será interessante constatar como este pensamento “de situações insólitas” irá depois contaminar a obra de Buñuel, quando Carrière se transforma no seu argumentista de serviço a partir de Belle de Jour (A Bela de Dia, 1967).] Na sua primeira curta-metragem, Rapture (1961), fica logo evidente o gosto pelo encadeamento de acções ou situações na obra de Étaix. O que se concerta aqui é a tragédia delirante dos pequenos gestos: um homem recebe pelo correio uma carta da sua amada que contém lá dentro uma fotografia sua cortada ao meio. Perante tamanha ofensa, o amado ofendido prepara uma resposta à altura. É a partir daqui que o pequeno nada de escrever uma carta se transforma numa sucessão de desastres imponderáveis, ao ponto de parecer que o mundo (o mundo dos objectos, entenda-se) conspira para que o amado sofra na mudez, isto é, não possa exorcizar a sua dor com uma invectiva dirigida à amada, à ex-amada: “eu ex-amo-te”, dizia uma personagem a outra no segmento de Godard de Ro.Go.Pa.G (Rogopag, 1963).
Esta incapacidade de “dar resposta” é, desde logo, relevante num filme não só filmado a preto-e-branco como gravado sem som. Este último detalhe não confundia o espectador conhecedor de Tati. O realizador de Les Vacances de Monsieur Hulot (As Férias do Sr. Hulot, 1953) e Mon oncle não registava o som nas rodagens, produzindo-o a posteriori em estúdio. A primeira camada sonora era, então, como uma página em branco que depois se salpicava de tinta – é inesquecível, nesse sentido, o som da porta da estalagem de Les Vacances de Monsieur Hulot. Étaix fará o mesmo, mas mergulhando mais ainda – quase ao ponto da paródia pura – no cinema mudo primitivo, de Max Linder, Charles Chaplin, Buster Keaton e Laurel & Hardy – só para citar algumas das suas mais evidentes inspirações. A preto-e-branco, filmando situações numa curta-metragem à moda dos one reelers da Keystone, Étaix usa o som como um bem escasso. Face a tudo o que é escasso, impõe-se uma economia da precisão. Mas para cada “salpico de som” gera-se no quadro uma vibração ou um autêntico rasgo na imagem que a desconcerta. Em Rapture este rasgo é produzido, por exemplo, pelo som do tampo da escrivaninha, de onde o amante irado retira o material necessário para responder à aviltante provocação da amada – mais avisada foi ela que ele por, num filme avesso ao verbo, ter “escrito” a separação amorosa no gesto de uma foto rasgada. O pobre Étaix vê-se aos papéis para domar os objectos banais que garantem a escrita de uma carta: a caneta, o boião com tinta, a resma de folhas… Tudo conspira para que o evento da vingança não tenha lugar. Na realidade, como se verá no seu final trágico/patético, o verdadeiro deslize da personagem de Étaix foi não ter tido em consideração a natureza do seu mundo, que fala por fotos, imagens, isto é, um mundo que não sabe escrever e, portanto, não sabe – e não quer! – falar. Esta brincadeira com o som e a acção será o lugar que, a partir de Tati, Étaix ocupa para se afirmar como singular voz no universo da comédia burlesca. Os filmes seguintes desenvolvem o gestus que inicia a sua obra: uma acção de ruptura, de rasganço, com o que era comédia verborreica que fazia lei na televisão e cinema de então e de proximidade, ou colagem/citação aos mais magistrais clowns do cinema, desde logo, os mestres franceses Max Linder e Jacques Tati.
Max Linder estava nos antípodas daquele que se considerava seu discípulo, Charles Chaplin. A sua personagem era um burguês hipersensível que se via sempre metido em embaraços ora para conquistar a donzela, ora para executar tarefas mundanas, como, por exemplo, tomar banho [Max prend un bain (1910)] ou passar umas férias na sua casa de campo em harmonia com os animais da sua propriedade [Max en convalescence (1911)]. Étaix não será movido pela fome ou a vontade de integração de um Charlot; terá como background cómico o impecável universo pequeno-burguês contíguo ao de Linder. Em Yoyo chega mesmo a debater-se com “o problema” do excesso de fortuna, mas já lá vamos. Depois de Rapture, Étaix filma aquele que terá sido, até hoje, o seu maior sucesso internacional: Heureux anniversaire (1962). Esta curta expõe o cardápio da criatividade cómica da dupla Étaix/Carriére. A premissa é simples: um casal prepara a comemoração dos seus anos de casados. A mulher, em casa, prepara o repasto, com a mesa colocada a preceito, os canapés deliciosos e uma prendinha colocada sobre o prato. Depois, resta esperar, um pouco como Charlot na noite de fim de ano em The Gold Rush (A Quimera do Ouro, 1925). Portanto, resta-lhe esperar sentada, porque o marido nunca mais vem. Não que se tenha esquecido, bem pelo contrário: noutra ponta de Paris, o sobressaltado marido aparece-nos a reunir prendas e outro tipo de “atençõezinhas” para a festa. O problema é que Paris é um rebuliço, e tudo, a começar pelos engarrafamentos, concorre para impedir que o bom marido salve a mulher da espera eterna cada vez menos terna. Nos gags passados nas ruas de Paris respira-se Tati puro em pleno cinema de Étaix. Os carros acumulam-se num carmaggedon digno do que seria Playtime (Play Time – Vida Moderna, 1967), Trafic (Sim, Sr. Hulot, 1973) ou até o Week End (Fim-de-Semana, 1967) de Godard. Anda-se a passo de caracol. Um homem entra num táxi, dá as direcções e este insere-se na fila para ali ficar retido. Outro condutor, com capacete, óculos protectores e carro de corrida a condizer, põe os óculos e avança a todo o gás… para percorrer apenas uns centímetros. A colecção de gags é uma delícia, mas o jantar, na outra ponta de Paris, começa a esfriar. A mulher, tentada pelos canapés, não resiste e começa a degustar a refeição na ausência do marido. O nosso herói bem se esforça; está numa luta contra o tempo, mas a cidade é implacável.
Esta visão, repito a palavra, “implacável”, da vida urbana será reeditada por Étaix várias vezes, mas em especial no episódio homónimo de Tant qu’on a la santé (1966). Aí assistimos novamente aos efeitos do rebuliço urbano, debaixo da sinfonia dos martelos pneumáticos que esburacam a rua incessantemente e que fazem tremer tudo à volta. Por exemplo, a casa de Étaix. Tudo cai ao chão com a tremideira, até as notas na folha de pauta musical disposta ao piano ou as pétalas das flores no vaso ou… a fotografia da amada que acaba no lixo. E, nesse instante, é a própria que bate à porta. Mal vê onde mora a sua fotografia, retira-se com a mesma velocidade com que entrou. De novo, o simbolismo da fotografia é apropriado pelo mecanismo do gag de Étaix. O mesmo se passará nos filmes seguintes, como Yoyo, com o amante sonhador que fantasia sobre a sua amada alguns minutos por dia (a melancolia como desporto diário), e no derradeiro filme burlesco, Le grand amour (O Grande Amor, 1969), onde a indecisão sentimental do marido, dividido entre a mulher e a secretária, é representada pela colocação da fotografia da primeira ora dentro da gaveta, ora fora, onde sempre estivera, em cima da escrivaninha. Ainda não saímos do “trauma” de Rapture?
Heureux anniversaire valeu a Étaix o Óscar da Academia para melhor curta-metragem, o que lhe deu algum respaldo para poder avançar para um projecto um pouco mais ambicioso: filmar a sua primeira longa-metragem, já com o próprio Étaix como realizador a solo, ainda que Carrière se mantenha como argumentista. Le soupirant (1962) evoca mais ou menos directamente Seven Chances (As Sete Ocasiões de Pamplinas, 1925) de Buster Keaton. A personagem principal é um estudante de astronomia que vira Don Juan depois de ser “convidado” pelos pais a arranjar uma mulher. O trintão ainda vive na casa dos pais, onde já não encontra o sossego – de novo, uma questão de ruído… – que precisa para estudar os astros. A partir da sugestão dada, Étaix responde com uma transformação completa, tornando-se em poucas horas num auto-didacta de todas as técnicas de sedução imediata. Depois de um pequeno curso intensivo auto-administrado no seu quarto, este “choninhas” de astronomia vira boémio à procura de parceira. Qualquer rabo de saia que ande na rua torna-se candidata possível ao tão instigado e urgente matrimónio – a mesma urgência que faz mover Keaton na sua comédia clássica. Mas, como acontece sempre em Étaix, e no grande cinema burlesco, as suas tentativas vão redundando numa sucessão de desastres. A dificuldade em se relacionar com elementos do sexo oposto será uma batalha não só aqui como em quase todos os filmes de Étaix. A apoteose dessa imperícia patética será Le grand amour, que é uma espécie de remake “ao contrário” de Le soupirant, e curiosamente fecha o círculo da obra burlesca de Étaix. Em 1969, Étaix lança um filme na ressaca do seu primeiro divórcio, que, conta, teve um efeito devastador na sua vida. Ora, Le grand amour narra a história não de um homem que não consegue sair da casa dos pais, mas de um homem que não consegue sair da casa dos sogros. Se o astrónomo de Le soupirant não aguenta já a co-habitação com os progenitores, o industrial de aliança no dedo há dez anos não aguenta a convivência diária com os pais da sua mulher. Nos dois casos, o esforço de emancipação aparece como uma urgência em conquistar o amor: o da próxima mulher que apanhar na rua (Le soupirant) ou o da bonequinha irresistível que acaba de se tornar a sua nova secretária (Le grand amour).
Mas entre Le soupirant e Le grand amour há Yoyo, produção ambiciosa que pode ser descrita como uma espécie de Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941) do cómico francês. Começamos no ano de 1925, tendo como cenário uma espécie de Xanadu de um homem só. Uma legião de empregados repete uma série de rituais patéticos para responderem às pequenas e às grandes necessidades do patrão, como passear o cão ou reunir um grupo de bailarinas de Charleston para animar o serão. Num estrito respeito pela cronologia dos factos – o cinema sonoro em 1925 ainda não tinha sido inventado -, toda a primeira metade do filme é quase muda. As personagens não falam, mas pequenos sons, como a porta (a porta tatiesca?) que range ao abrir, vão dinamitando o silêncio por dentro de cada quadro. O que Étaix ensaia aqui é aquilo que será levado até às últimas consequências anos mais tarde por Mel Brooks, com Silent Movie (A Última Loucura, 1976), e recentemente por Michel Hazanavicius, com The Artist (O Artista, 2011): uma citação directa do cinema mudo. No caso de Étaix, esta é uma convocação mais que um suspiro ou uma paródia. O Kane deste filme aspira por uma vida que só circunstâncias históricas lhe irão trazer. Com a crise de 1929 – com o crash da bolsa de Wall Street “crasha” também o cinema mudo -, o nosso herói ganha voz e descobre o amor. Esse amor surge sob a forma de uma vida pobre à frente de um circo itinerário composto por si, pela mulher da sua vida e o filho que resultou do seu amor. Numa sequência, Étaix presta homenagem directa a um dos realizadores que mais admirava. O circo chega a uma localidade onde se sinaliza num cartaz a presença de concorrência: Zampanò e Gelsomina, os heróis de La strada (A Estrada, 1954). A partir dos anos do sonoro, Yoyo vai acelerar os acontecimentos e precipitar-se no futuro. O que acontece a seguir é a constatação universal de que os filhos tendem a repetir os mesmos erros que os pais ou que a história é, no fundo, uma sucessão de repetições. Todavia, o filme reserva no fim uma nota de esperança, com o rompimento do círculo que ameaçava fechar, na sua perfeição algo sinistra.
Se Étaix transporá depois para filme uma reflexão agridoce sobre o matrimónio baseada na batalha psicológica que travou com um divórcio na sua vida, em Yoyo conta o cineasta francês que o argumento, co-assinado de novo por Carrière, foi escrito sob a influência de dois estados de espírito: o de quem acabara de perder tragicamente o pai, que perdera a vida a atravessar a estrada, colhido por um carro, e o de quem sonha ainda com os seus “anos de circo”. Uma combinação interessante destes dois estados de espírito será posta em cena num dos gags mais geniais do repertório Étaix/Carrière. Em Le grand amour, o marido sonha com o adultério perfeito com a sua secretária em plena via rápida. Tudo é muito literal aqui: ele está na cama com a sua amante e a sua cama tem rodas. Contudo, nem a fantasia mais delirante escapa à mimesis do real. Se no mundo do sonho mais ou menos molhado do marido insatisfeito há camas-carro, não pode deixar de haver também engarrafamentos de camas-carro, acidentes aparatosos e até ambulâncias, como vemos numa cena em que o casal tem de deixar passar uma cama de hospital “conduzida” por um doente de perna engessada. É o Week End das camas-carro ou, dito de outra maneira, o idílio amoroso não escapa ao apocalipse da vida urbana. Étaix criou este gag a partir da história de um amigo que, vivendo nas imediações de uma auto-estrada, se queixava que o ruído dos carros era tal que sonhava muitas vezes que a sua cama tinha rodas. Através desta petite histoire temos alguns dos ingredientes fundamentais da arte do gag em Étaix. Por um lado, ensaia-se o comentário à sociedade do cansaço e do consumo enquanto sinfonia dos ruídos do inferno citadino. Por outro lado, encontramos nesta anedota a principal fonte de inspiração de Étaix para a construção dos seus gags: a matéria resultante da observação dos pequenos nadas do quotidiano. Há uma cena em Yoyo que é elucidativa: Étaix mostra o seu “livro de gags” à trapezista de quem está enamorado. Ela pergunta-lhe: “como constróis os teus gags?” Ele diz-lhe, muito simplesmente: “Não sei, olho, observo”. Essa é a grande herança de Tati no cinema de Étaix: o poder de observação ou a capacidade de transformar o absurdo dos gestos diários, de que a vida urbana é fértil, numa geometria do riso.
Étaix nunca foi um cineasta muito popular. Le grand amour é um dos seus filmes mais conseguidos, mas revela também uma tentativa de adaptação de Étaix às exigências do seu tempo. Nele encontramos um exercício particularmente inspirado sobre as construções abstrusas da memória e de paródias “e se?” que, apesar da pitada Sacha Guitry nesse particular gozo pelos mecanismos da narração, tem menos que ver com o burlesco da acção pura que com o humor non-sense que iria marcar os anos 70/80, com os Monty Python e com a dupla David Zucker e Jim Abrahams ao leme. Étaix fazia uma comédia fresca, que ainda hoje é uma barrigada de risos, mas não conseguia convencer os homens do dinheiro de que estava aí para as curvas, pronto para largar a linguagem do mudo e embarcar em algo mais contemporâneo. O filme seguinte acabou, contudo, por afastá-lo do mapa: Pays de cocagne (1971) caiu mal numa França ainda sob os efeitos do Maio de 68. O retrato que Étaix faz da população francesa em férias foi visto como uma tentativa grosseira de expor ao ridículo todo um povo, que nele se viu reflectido. Hoje resulta como uma ousada criação documental que procura o efeito burlesco num trabalho de montagem ou de sugestão/provocação. Talvez seja essa ousadia que leva Étaix a considerá-lo como o seu mais importante filme, mesmo tendo sido aquele que lhe afundou a carreira no cinema. Face ao desconforto generalizado, de público e sobretudo crítica, Pays de cocagne foi rapidamente retirado das salas e atirado para o esquecimento durante três décadas. Uma ausência também provocada pela retenção dos filmes de Étaix numa distribuidora, que adiou indefinidamente o prometido restauro do conjunto da sua obra. Os filmes acabariam libertados e lançados no mercado home cinema em 2010.
Os “anos do esquecimento” de Étaix foram dedicados a cumprir o sonho da personagem de Yoyo, fechando o círculo e fazendo então do circo a sua vida – e não tanto da vida o seu circo. Vai inaugurar a École Nationale du Cirque com a sua mulher, Annie Fratellini, a actriz de Le grand amour. Ao mesmo tempo, a sua participação no cinema é feita em regime de amizade, ou em jeito de reconhecimento mútuo, em filmes de Fellini, Iosselliani e Kaurismaki. Étaix teve ainda a (in)felicidade de participar num dos títulos mais infames da história do cinema: The Day the Clown Cried. História sobre um palhaço no campo de concentração de Auschwitz que Jerry Lewis realizou em 1972, mas que, por embaraço com o resultado final, decidiu meter na gaveta, sendo até hoje um dos mais desejados “inéditos” da história do cinema – diz-se que La vita è bella (A Vida é Bela, 1997) de Roberto Benigni terá sido uma apropriação mainstream da premissa de Jerry Lewis. De qualquer modo, os cameos de Étaix no cinema durante os anos do seu esquecimento revelam que nem toda a gente se esqueceu dele, sobretudo quem pôde assistir aos seus filmes nos anos 60, onde se contam algumas das mais divertidas e inventivas situações cómicas que o cinema sonoro nos ofereceu. Com efeito, Étaix é uma peça fundamental para se perceber a história do legado deixado por Tati na arte do gag. Hoje podemos participar activamente na celebração do seu cinema para que não volte a cair no esquecimento tão trapalhonamente como caíra o próprio Étaix da janela do seu apartamento na curta-metragem que o lançou no cinema, Rapture. Rupturas? Chega delas! O riso é uma história de continuidades.
As principais fontes usadas para a redacção deste texto foram o ensaio «The Return of Etaix», de David Cairns, e os extras da caixa Blu-ray da The Criterion Collection.