Robert Schumann sofreu de doença mental desde a sua meia idade e os sintomas da desordem foram-se agravando com o tempo até ser internado num asilo, por vontade própria e onde acabaria por morrer, diagnosticado com “melancolia psicótica”. Seria de esperar que com o progresso da enfermidade as suas composições manifestassem o degradar da sua condição mental, mas na verdade a música de Schumann não se torna histeriónica nem incaracterística, pelo contrário, cristaliza-se no sentido da secura formal. A condição médica retirara-lhe grande parte da sua força criativa e por isso, por se saber incapaz de criar, o compositor cria que as suas novas composições provinham de vozes angelicais que lhe cantavam partituras. Na verdade, as suas últimas peças são variações de temas anteriores.
Não querendo comparar a incapacidade criativa provocada pela psicose de Schumann ao “embargo” imposto a Panahi de não filmar por duas décadas (ainda que ambos operem sob potências criativas toldadas e ambos encontrem estranhos caminhos de prosseguir criando apesar dos condicionamentos) parece-me que o ponto final da história artística do compositor germânico funciona como espelho invertido daquilo que são os filmes que o realizador iraniano vem fazendo desde a sua condenação em 2010 por propaganda contra o governo iraniano. Digo espelho invertido já que para Schumann as suas obras finais funcionam como uma (re)encenação das obras passadas sobre a ilusão divina da produção de novidade, ao passo que Taxi (Táxi de Jafar Panahi, 2015) funciona como uma produção de novidade que se estrutura narrativamente em várias das suas obras anteriores e formalmente em várias outras obras. A diferença fundamental prende-se então na consciência e no domínio da própria obra por parte dos obreiros – e das obras de outros, também.
Note-se então o seguinte: Taxi começa com uma discussão entre dois passageiros de um táxi em que um deles se admite ladrão moralmente consciente. Esse personagem sai e é-nos revelado que o condutor do veículo é o próprio Panahi. Assim que os protagonistas do debate se ausentam, um terceiro comenta para o condutor (que é também um conductor, um maestro) a natureza encenada do momento anterior. Explica ele que aquele diálogo é muito semelhante a um momento de Talaye sorkh (Sangue e Ouro, 2003). E feito este reparo já não mais se pode deixar de notar os momentos de (auto-)referencialidade: ouve-se falar uma rapariga enclausurada por ter tentado assistir a um evento desportivo – o tema central de Offside (Offside – Fora-de-Jogo, 2006) – e revisita-se a situação da sobrinha do realizador que ao sair da escola não tem quem a vá buscar – evento que despoletava a acção de Ayneh (The Mirror, 1997). Mas não só do próprio cinema trata Panahi, Bir Zamanlar Anadolu’da (Era Uma Vez na Anatólia, 2011) de Ceylan e Midnight in Paris (Meia-Noite em Paris, 2011) de Allen são citados directamente (sabemos que o realizador os terá alugado) e Dah (Dez, 2002), de Kiarostami, está presente no dispositivo – e talvez Night on Earth (Noite na Terra, 1991) de Jarmush também. Este esforço por convocar explicitamente o próprio trabalho e o trabalho que se admira é raro e estou em crer que demonstra da parte do realizador uma consciência do dispositivo meta-cinematográfico como ferramenta ideal para o contorno das dificuldades criativas impostas pelo regime do Irão.
De que dispositivo se trata? Já que este também não é um filme, o que vemos em Taxi é o resultado de um “80 minutos consecutivos” de um conjunto de pequenas câmara de segurança colocadas no tabliê de um táxi com vista a servir de segurança ao condutor. Assim, Panahi filma pessoas entrando e saindo, conversando com ele e umas com as outras. Conversa-se sobre o estado do país, claro, mas conversa-se também sobre cinema (e cinema no Irão, naturalmente), em particular quando a referida sobrinha do realizar tem como trabalho escolar realizar uma curta metragem que se enquadre nos ditames da distribuição iraniana. Assim, o dispositivo das câmaras de segurança estende-se à pequena máquina fotográfica da sobrinha, mas também ao telemóvel do realizador que filma as últimas palavras de um homem moribundo, ou ainda um iPad que exibe o assalto de um dos seus conhecidos. O cinema está na ponta dos dedos, à distância de um bolso: o que importa é saber olhar as imagens que hoje qualquer aparelho capta continuamente e delas encontrar a(s) narrativa(s) que essas imagens em si conservam (ou, mais certo, as narrativas que o olhar constrói sobre elas – como quando a sobrinha obriga um mendigo a devolver os honorários de um furto para que o conteúdo se adeque às imposições do regime).
Convocando por um lado as suas anteriores narrativas e, por outro, construindo novas imagens à semelhança das suas referências, Panahi trabalha um exercício de reciclagem visual e narrativo onde a novidade assenta na falsa naturalidade do dispositivo: apresenta um mundo onde cada imagem se constrói a si mesma e a narratividade dela lhe é intrínseca, mas subtilmente desmonta essa ideia ao revelar ironicamente o engano do engenho. Engano esse que é próprio ao cinema.