Escreveu Agustina Bessa-Luís sobre Maria Helena Vieira da Silva e a sua pintura que “aquilo que afecta a essência, como seja a beleza ou o poder baseado no conhecimento, é banido na arte de pintar. Daí que muito surpreenda e até escandalize a expressão da arte do nosso tempo. Mas simplesmente ela procura desembaraçar-se da perfeição inerente às coisas em si e que turva a essência em si mesma”.
De facto, o belo vive hoje (não terá sempre vivido?) dias de ouro, e a beleza na arte é condição sine qua non da sua apreciação pública: é útil porque é belo. No cinema, quando as câmaras digitais evoluem para capacidades superiores às do olho humano e os sensores captam as mais infinitesimais fagulhas de luz (e os programas de correcção de cor acordam os tons desmaiados com um simples clique), a beleza é cada vez mais fácil de alcançar; fala-se em qualidade de cinema, em imagens cinematográficas, mas que raio é uma imagem de cinema? Certamente não é uma que ouse por condição a beleza.
Volta à Terra (2014), de João Pedro Plácido, peca do mal dos nossos tempos e, em particular, do mal do documentário contemporâneo, onde as possibilidades tecnológicas de construir bonitas imagens enxarca toda a empresa de planos entre o postal turístico e o anúncio a redes de telecomunicações. Mas classificar assim a obra de estreia na realização do director de fotografia é reduzir tudo aquilo que se encontra por entre as imagens (e, convenhamos, nas próprias imagens também): a intimidade com as pessoas de Uz, o retrato de um país e de um interior, o agrilhoamento do campo e da pastorícia, uma história de amor perdida entre o ficar e a necessidade de imigrar para o estrangeiro (podíamos estar a falar de Trás-os- Montes nos anos 60, mas é hoje – quando a beleza nos faz crer que já não há disso, onde o pitoresco no faz acreditar que tudo é feliz, quando tudo foi mercantilmente convertido em objecto de consumo feliz e vendável).
Há, portanto, no automatismo de uma câmara que olha para o mundo como uma bela paisagem bucólica, um programa (um algoritmo) ideológico. Não poderá definir-se ideologia como aquilo que vemos sem realmente olharmos? A bela imagem é consequência de um tal automatismo, um olhar que não repara (n)as coisas. Se a Plácido dou o benefício da dúvida e acredito que esse embelezamento sai mais por prática publicitária do que por motivos doutrinários, a forma como o interior de Portugal foi sendo retratado no cinema do Estado Novo é já espaço para outras considerações menos benevolentes. O campo como sítio de idílio comunitário onde o corporativismo reinava ameno e as almas cantavam contentes os seus desgostos de amor à beira-rio (por oposição à cidade viciosa – que só não o era quando o bairro se convertia também em aldeia e o campo encontrava um gueto no espaço urbano). Por tudo isto, os passeios contemporâneos pela ruralidade (especialmente os de olhar documental) devem ter cuidado com a pintura que esboçam. Volta à Terra tem esse cuidado por nunca enveredar na etnografia, nem, por outro lado, na idealização de um espaço de perfeita harmonia campestre. Plácido, acima de tudo, filma pessoas (num país, o nosso) e são elas que lhe dão o melhor que o seu filme tem.
Fica, por isso mesmo, uma conversa de telemóvel no topo da serra entre pedregulhos e ovelhas onde um rapaz vê o seu coração partido. É belo com certeza, mas é também íntimo, verdadeiro e de certa maneira profundamente sóbrio.