No magistral filme Annie Hall (1977), há uma cena desconcertante: o personagem interpretado por Woody Allen está numa fila de uma bilheteira de cinema; encontra um casal amigo e começam a falar, naqueles discursos intelectuais sobre arte e cultura, muito ao gosto do realizador. O homem divaga sobre a teoria de Marshall McLuhan (o mesmo que lançou o conhecido conceito de “Aldeia Global”) e o personagem de Woody Allen, farto de ouvir tantas baboseiras redundantes e pseudo-académicas, replica sarcasticamente: “Desculpe, mas o senhor é um pedante e não percebe nada do verdadeiro pensamento de McLuhan”, ao que o homem responde: “Sim? E como tem essa certeza?”. Woody Allen sai da fila da bilheteira e vai buscar pelo braço o próprio e verdadeiro Marshall McLuhan (que se encontrava escondido atrás de um cartaz!) que diz ao pretenso intelectual: “É verdade, o senhor não percebe nada da minha teoria!”. Então, Woody Allen olha para a câmara (para nós, espectadores) e remata de forma seca e resignada: “Se a vida fosse assim tão fácil!…”.
Eis um belo exemplo de como, através de um olhar humorístico cirúrgico, a ficção e a realidade se entrelaçam num filme. Woody Allen, ao longo da sua já extensa carreira, sempre revelou saber transformar-se em paradigmas distintos de humor. Profundamente influenciado pelo seu herói do humor anárquico, Groucho Marx, tem sido um contínuo renovador da comédia cinematográfica. Não se cristalizou com as modas passageiras dos tempos, antes reinventou-se na construção de novas abordagens, misturando habilmente o legado de uma certa comédia clássica burlesca com o legado de Marx. Allen foi arquitetando várias formas de ser palhaço (palhaço-absurdo), desde os tempos em que fazia stand-up comedy para sobreviver ou escrevia textos de humor para outros dizerem. As suas primeiras obras cinematográficas dos anos 60 denotam um enraizamento na tradição da comicidade física mas já com um forte cunho autoral. Allen interessou-se por trilhar um caminho no qual a dinâmica dos gags fazia implodir os mecanismos convencionais do humor. Era um Woody Allen apalhaçado com uma forte noção dos timings de comédia, repleto de tiradas intelectuais e mensagens filosóficas sobre o absurdo da vida e da morte.
Mas Allen foi aperfeiçoando e desenvolvendo o seu modelo de intervenção cómica ao longo dos anos. Começou a questionar o papel da realidade no seu mundo de ficção. E o resultado foram dois magníficos filmes nos quais o realizador subverte a lógica narrativa ortodoxa (muitas vezes influenciada pelo neo-realismo italiano e por temas sérios à Bergman): The Purple Rose of Cairo (A Rosa Púrpura do Cairo, 1985), em que um actor de um filme que é exibido numa sala de cinema sai, literalmente, do ecrã para se apaixonar por uma rapariga da “vida real”; E Zelig (1983), fascinante exercício de falso documentário e um dos menos lembrados filmes do cineasta de Nova Iorque. É também um dos mais estranhos, originais e criativos de toda a sua carreira. Talvez seja pouco (re)conhecido pelo facto de ser um filme conceptual, muito estilizado e de não se encaixar facilmente nas categorias convencionais de cinema, menos ainda, no típico registo de comédia habitual de Woody Allen. Aqui o realizador arrisca e ensaia uma experiência estética inaudita (desde logo por ser a preto e branco), onde a comicidade ganha novas texturas pelo entrelaçado entre a realidade e a ficção. É de novo um Woody Allen apalhaçado, mas muito mais sofisticado e corajoso. Quem mais, senão Woody, poderia conceber uma personagem chamada Leonard Zelig que foi um indivíduo que ficou muito famoso nos anos 1920/30 devido ao facto de possuir uma estranha e invulgar capacidade – a de adquirir a aparência física e mental daqueles com quem convivia. No meio de negros, Leonard Zelig ficava um negro; no meio de pessoas gordas, tornava-se gordo; com índios, ganhava aparência de índio; ao lado de psicólogos, passava-se por psicólogo, no meio de judeus ortodoxos, idem… Só não conseguia transformar-se em mulher devido à “extrema complexidade atribuída ao sexo feminino”. Esta capacidade de se transformar tornou Zelig numa espécie de camaleão humano, suscitando o interesse científico de médicos, políticos, jornalistas e psiquiatras. Ou seja, Woody Allen camaleão espelha na sua arte uma realidade camaleónica.
Neste filme de rara inteligência e humor Woody Allen assume três funções: argumentista, realizador e ator. O filme é todo ele filmado como se se tratasse de um verdadeiro documentário, recorrendo a imagens e fotografias de arquivo dos anos 20 americanos, com testemunhos de figuras da cultura como Susan Sontag ou Saul Bellow, que contam as peripécias de Zelig. Leonard Zelig consegue conviver com figuras históricas como Hilter, o Papa Pio XXI, Al Capone, Charlie Chaplin, James Cagney, entre muitas outras. Só a doutora Eudora Fletcher (magnífica Mia Farrow) consegue compreender o distúrbio de Zelig, tentando ajudá-lo a superá-lo com uma terapia que vai desencadear uma aproximação amorosa entre ambos. Visualmente, Zelig é um trabalho de pura mestria plástica e técnica. Para tal muito contribuiu um dos maiores diretores de fotografia de sempre, Gordon Willis (nomeado ao Óscar pela fotografia). Para recriar imagens que pudessem passar por cenas de um verdadeiro documentário, Gordon Willis filmou com câmaras de 8mm e colocou os negativos numa banheira cheia de água. Raspou-os no chão e submeteu-os ao frio, ao calor e à humidade, para os desgastar e, assim, ficarem com a aparência de imagens com 60 ou 70 anos. Zelig é, pois, um objeto cinematográfico que desafia regras e convenções, está repleto de humor subtil, coloca questões freudianas sobre a personalidade e lança críticas à sociedade de massas dos EUA (a dissolvência da identidade individual face ao coletivo social).
Depois há outra fase da carreira de Woody Allen na qual sofre uma mutação trágico-cómica, fruto do seu pessimismo existencial. O cineasta larga a capa de palhaço leviano e subtil e veste a do palhaço soturno e sorumbático. Filmes como Interiors (Intimidade, 1979), Crimes and Misdemeanors (Crimes e Escapadelas, 1989), Stardust Memories (Recordações, 1980) ou Another Woman (Uma Outra Mulher, 1988). Filmes feitos por um “palhaço triste”, vencido, que refletem o olhar negro do imaginário de Woody, ainda que, a espaços, possa haver momentos de uma suave e melancólica doçura humorística. Nesta senda o Woody Allen mais extremo é, quiçá, Match Point (2005), um retrato negríssimo da alma humana, da casualidade da vida, da imprevisibilidade do amor e dos efeitos hediondos da ambição revestida de obsessão. Os dilemas morais e existenciais, as angústias e medos interiores que perpassam por este filme tomam proporções emocionais insuportáveis. Para os personagens e para os espectadores. É uma obra de um pessimismo pragmático (longe das habituais coordenadas do humor nonsense) que olha a condição humana com uma frieza perturbante e cínica, pejada de pecados infames, sem apaziguamentos de qualquer ordem moral, sem esperança nem redenção. É como se autores pessimistas como Schopenhauer, Emile Cioran, Nietzsche e Thomas Bernard contaminassem o espírito de Woody Allen, sugando-lhe as réstias de sangue humano quente (leia-se optimismo, humor, comédia). É a veia mais lúgubre e arrasadora de Woody Allen, que destila crimes sem sentido, mortes por “obrigação moral”, ódios mundanos e metafísicos, desnorte existencial e pitadas de um ténue e cirúrgico humor negro. É o Woody Allen mais existencialista que se possa imaginar, sem esperança de redenção nem fé no que quer que seja, com um olhar clínico sobre o desejo, a morte, o medo, a consciência, o pecado, o perdão.
Desta e de outras têmperas é feito o humor de Woody Allen: um humor que advém da comicidade mais absurda ou da tragédia mais dramática. Há, pois, vários Woody Allen’s no cineasta de Manhattan (1979). Com naturais altos e baixos criativos, é certo, mas sempre com um olhar acutilante sobre a condição humana no planeta Terra.
Victor Afonso
É o autor do blog O Homem Que Sabia Demasiado.