Filthy stuff, water: fish fuck in it.
W.C. Fields
Our only redemption is knowing oneself, and being that.
W.C. Fields
No comedian, no actor, but an ordinary failure
who wouldn’t be coaxed into the last face-saving.
Charles Dickens/David Thomson
Dia de Natal. Ano, 1946. William Claude Dukenfield acorda na cama do hospital em Las Encinas, Pasadena, California, depois de um coma de vários dias. Demasiado álcool e de menos corpo para o acomodar foi a causa. Naquele feriado que tanto dizia detestar não era ninguém da sua família que ali estava para o ver acordar mas sim a sua secretária, Magda Michael, e a enfermeira. Segundo reza a lenda (e sabemos como as lendas têm propensão para as rezas) o moribundo colocou um dedo nos lábios, como que a pedir silêncio, piscou à enfermeira e depois fechou os olhos. A este melodramático e improvável relato da morte de W.C. Fields pode juntar-se ainda outra história de partir corações. A terceira e derradeira das suas mulheres, a actriz Carlotta Monti, conta como uma vez o foi visitar ao hospital e decidiu virar a mangueira da rega do jardim para o telhado para que o génio da comédia pudesse ouvir uma última vez a sua música favorita: a chuva a cair…
Basta começar a puxar pelo cinema de Fields para perceber como este “romantismo chuvoso” está em franca oposição às suas próprias “meteorologias”. Como diz a certa altura em Million Dollar Legs (1934), em que faz de Presidente de Klopstokia, um reino inventado no leste da Europa necessitado de ouro: it never rains in LA. / Only money, only money. E é em L.A. que Fields passará a gostar de “andar à chuva”, nomeadamente quando deixa de ter a etiqueta de “maior malabarista do mundo” em espectáculos de vaudeville e passa a estrela de cinema com salários superiores a cinco mil dólares por semana. De outra forma, L.A. é a terra do sol e das laranjas como em It’s a Gift (1934) onde o sonho do merceeiro Harold Bissionette é ir para o oeste e começar um negócio de citrinos. Afinal de contas há que ter qualquer coisa para juntar ao gin. Mas da chuva, chuva… daquela molhada, não é preciso ter grande cautela. O chapéu de chuva até é torto, como se não abrisse há muito tempo. É assim a primeira aparição à Trinitá (inverta-se a história) de Fields no western My Little Chickadee (Riquezas da Sua Avó, 1940) em que contracena com Mae West. E quando chove ela é molha-tolos. Não porque ela seja miudinha mas porque quem leva com ela são mesmos os tolos. Lembrem-se do final do genial The Man on the Flying Trapeeze (1935) em que o “perito em memória” Ambrose Wolfinger não tem memória curta e leva os chatérrimos cunhado e sogra na parte de trás do carro a levar com a intempérie…
Como é evidente o que queria era desenterrar as hipóteses que impossibilitam juntar o palhaço Chaplin ao palhaço Fields por via do melodrama. Muitas vezes com Chaplin, que se via a partir de fora (isto é, que tinha grande consciência de si próprio) havia a tentação de engrandecer o pequeno, o vagabundo que no final das contas se sacrifica em prol de outrem. E nós sentíamos uma ponta de pena no meio da gargalhada. Com Fields, em nenhum momento, por mais golpes que levem as suas impossíveis personagens (com nomes ainda mais inenarráveis, McGargle, McGonigle, Whipsnade, Sousé), por mais cordas que a sociedade lhe imponha como trapézio, nos sentimos tentados à comiseração. Basta recordar a forma como fecha The Old Fashioned Way (À Boa Velha Maneira, 1934). Como em outras ocasiões, Fields é um homem ligado ao vaudeville e lidera uma trupe de performers que anda pela estrada mostrando truques (entre os quais se encontra o fugir aos pequenos credores). Do grupo faz parte a sua filha que anda a ser cortejada por um milionário que por sua vez tenta escapar ao pai e ao futuro na universidade para estar perto dela. Quando o grande McGonigle (assim se chama a personagem de Fields) percebe que o pai do rapaz apenas aceitará a ligação do filho a alguém de uma classe inferior (e ligada a essa coisa menor chamada “teatro de variedades”) caso se omita a relação a esse homem que diz ser “uma desgraça para a sua profissão”, finge ter um trabalho em Nova Iorque e deixar o caminho aberto para que a filha seja feliz.
Mas quando a comédia se verte em drama, quando Fields acena com a bandeira do sacrifício e da heroicidade, ele fá-lo sempre mantendo uma certa engenhosidade cómica. No momento em que anuncia à filha o desejo de partir sozinho, inverte as coisas: I know that you wouldn’t wanna stand in the way of my sucess. E depois de se fingir surpreendido ao saber que o jovem quer casar com a filha e que apenas precisa da sua permissão para tal ainda nos lembra a ironia: Isn’t it wonderful how everything rounds itself out eventually? Nem sempre assim acontece com Fields. Mas por vezes a moeda só é lançada ao ar quando ele já sabe que só há caras ou coroas, quando sabe que o eventually é tudo menos eventual. E se o espectador podia terminar aflito, com pena deste homem que deixa a filha para esta ser feliz e que não tem um tostão no bolso, nem sabe onde vai dormir, Fields não deixa que isso aconteça e na cena final já está nas ruas todo confiante a vender a banha da cobra, ou o sumo dos cactos que obteve na sua “viagem” às montanhas do Paraguai (não esquecer que na sua dicção é “Paraguá” e “cactai”).
Não há tempo para derrotas nem pelo sentir-se afectado pelo exterior pois isso seria dar ao espectador uma dica para a piedade. Trata-se sempre com W.C. Fields de mostrar que mais importante que o sucesso ou insucesso do grupo é a manutenção da integridade do indivíduo. Não interessa, como interessa a Chaplin, a Lloyd ou a Keaton mostrar o optimismo da vida e o sucesso do indivíduo por via do movimento e superação face às regras da sociedade. Em Fields por vezes esse sucesso é um gift para um “herói por acaso”, um sucesso que até chega obra ex machina de uma sorte sem consciência. Quem podia esperar que o terreno para as laranjas que o ex-merceeiro Harry Bissonette comprou na California valorizasse assim tanto e o tornasse um homem rico? Ou que Sam Bisbee conseguisse vender de repente por milhões o seu pneu indestrutível (já voltamos ao pneu que é importante) na conclusão de You’re Telling Me! (1934)? Mas mais importante do que ter limusinas ou criados com o nome Bisbee nas costas da casaca é que se saia sem mácula, é que independentemente dos maus humores, misogenias, lutas pela sobrevivência, a pessoa surja intocada. É esse o centro do diamante do seu cinema, essa intocabilidade que apenas surge a olho nu depois de passar o caos da realidade. Como todos os textos sobre Fields citam esta expressão não vou ser eu a faltar à regra. Dizia ele: “Um homem que não gosta de crianças e animais, não pode ser má pessoa!” Lembrem-se (lembro-me) que o profundo gesto de sacrifício de McGonigle surge depois de ter dito que uma senhora de sociedade se vestia como uma “well kept grave” ou após esperar o momento oportuno para agredir o seu bebé, Baby LeRoy, a mais precoce vedeta do cinema de sempre. Mais longe da candura chaplinesca não podíamos estar…

Mas abria o apetite para pneus. Vários são os filmes em que Fields conduz ou é conduzido e muitos problemas acontecem. Já falei do carro com a parte de trás à chuva, mas há ainda o final de International House (Casa Internacional, 1933) realizado por Edward Sutherland, filme que deu o estatuto de estrela de cinema a Fields [mais de 15 anos após a sua estreia com a curta Pool Sharks, (1915)]. Naquele o professor aviador Quail vem a um hotel na cidade chinesa de Wu Hu para uma apresentação ao mundo dessa nova invenção chamada televisão. As coisas como sempre correm mal e Quail escapa-se no “Spirit of South Brooklin”, um carro com o tecto demasiado baixo para si a para a sua cartola. Anda a conduzir pelo interior dos halls do hotel a destruir tudo pelo caminho e a fugir de meio mundo (entre o qual um Bela Lugosi armado em general do leste) até entrar directamente no seu avião (alguém falou em Furious 7?). Ou ainda um dos melhores sketches do filme antologia If I Had a Million (Se eu Tivesse um Milhão, 1932) que reuniu vários argumentistas, realizadores e actores famosos, entre os quais Ernst Lubitsch, Joseph Mankiewicz, Norman Z. Macleod, Norman Taurog, Gary Cooper, Charles Laughton, George Raft. Se todas as histórias se unem na premissa que o nome indica, Road Hogs, a que junta Fields à sua inimiga favorita Alison Skipworth [juntos ainda iriam fazer Tillie and Gus (1933) e Six of a Kind (Segunda Lua-de-Mel, 1934)] tem esta ideia hilariante de pôr este par de “excêntricos euromilhões” a comprar carros em barda para os espatifar logo a seguir, um a um, dando lições aos chicos-espertos da condução.
Além dos carros como fonte de estatuto social, comédia, fuga, independência há uma metáfora mais poderosa também extraída do carro: a do pneu. Pode mesmo dizer-se que entre You’re Telling Me! e Man of the Flying Trapeze, do ano seguinte, 1935, aquilo que mais comunica entre si é essa roda de borracha. O still que se pode ver acima é de um dos gags mais hilariantes deste segundo filme em que, após uns desaguisados com a polícia sobre um lugar de estacionamento proibido, solta-se um pneu do carro a Albrose Wilfinger. Atrasado para ir ver o espectáculo de wrestling que ninguém quer perder, Fields começa a perseguir o pneu. Ao chegar a um caminho de ferro (isso que David Thomson descrevia no seu livro sobre a história de Hollywood, “The Whole Equation”, como sendo no início do século XX nos Estados Unidos um verdadeiro travelling para o futuro), como por magia, e ante a eminência de choque frontal de um comboio que começa a chegar por uma das linhas, perseguido e perseguidor mudam-se instantaneamente para a linha de caminho de ferro do lado, com um comboio desta vez a vir de trás e não pela frente.
Nada de especial além do trompe d’oeil à Méliès se não fossem dois singelos dados do filme anterior. Esse saltar de linha é mais importante do que possa parecer. Em You’re Telling Me! quando a princesa Lescaboura (Adrienne Ames) visita a cidade de Sam Bisbee, pergunta a uma das socielites locais onde mora o homem que, ele próprio tendo pensado suicidar-se, a tinha salvo do mesmo destino. A dondoca, espantada com o interesse de tão alta figura em tão baixa pessoa, responde com desdém à princesa: Where does he live? The other side of the railroadtrack. O outro lado da linha do comboio é, não só o lado de lá da maioria das pessoas expressando o profundo individualismo (por vezes desconfortável) dentro e fora do ecrã da persona de W.C. Fields, mas é também um dos seus temas mais correntes. É o tema das do casamento acima das possibilidades das suas filhas [aqui, ou em The Old Fashioned Way ou em You Can’t Cheat an Honest Man (Quem Nasce Torto, 1939)] ou da sua própria subida de fasquia social. Essa fasquia, de um lado ao outro dos caminhos de ferro das classes sociais, atravessa-se por via do pneu indestrutível que acabou de inventar e que segue caminho apesar de todas as pancadas e pregos afiados que encontre pelo caminho. Essa fasquia ultrapassa-se um pouco como os desvios de golpe de Errol Flynn em Gentleman Jim (O Ídolo do Público, 1942) de Raoul Walsh , em Fields com os contornos na ilusão e no trapézio.
Esse indestrutibilidade como espaço do eu que não se pode perverter ou enganar – you can’t cheat an honest man – conhece brechas, mas sempre do lado exterior. É o pneu que incha até explodir a estação de serviço em The Big Broadcast of 1938 (Desafio no Mar, 1938) antes de ir jogar golf, voar numa mota lado a lado com um pato e aterrar num grande cruzeiro. Mas são também os pneus a voar por todos os lados no culminar da chase scene de The Bank Dick (Herói por Acaso 1940) em que um assaltante resolve raptar Fields para este conduzir um carro para fugir dali para fora após um assalto ao banco. Mas pouca sorte tem. Não são os polícias que capturam o malfeitor mas a condução arriscada de Fields que desmantela o carro, peça a peça. É que W.C. Fields é “pior do que o pior dos piores” malfeitores sem o saber. E aqui está uma marca da sua persona: a capacidade de deixar um rasto de destruição, de ofender os mais fracos, de se apoderar do dinheiro dos inocentes [genial o gag em que engana uma e outra vez o jardineiro (interpretado por outro dos seus companheiros de número, Bill Wolfe em Poppy (1936)] sem nunca ofuscar a integridade da pessoa.

Fica como enigma enriquecedor a reflexão sobre o tipo de espelho que existia entre a vida e a arte de W.C. Fields. Sabemos da relação de culto entre o one man wonder que dominava todos os aspectos do cinema à frente e atrás das câmaras e a personagem de inconsequente “ditador” das fragilidades da humanidade que era Charlie Chaplin. Sabe-se também desse possível raccord entre a tristeza do palhaço Keaton e a fragilidade do ser humano frequentemente enganado nos negócios. Thomson, no livro a que acima fiz referência, conta mesmo como Chaplin dizia que a única coisa com graça na obra de Buster Keaton era a forma como o seu cunhado e afins detinham grande parte da Buster Keaton Productions. Já em relação a Fields só há indícios de que para um Rick Gervais avant la lettre no ecrã (aquele sorriso de quem se quer mostrar sempre em controlo da situação, que recusa em desarmar mesmo quando as faltas e as cacetadas ao ego são mais que muitas, só fazem lembrar o protagonista de The Office) existia atrás da câmara um misantropo Krusty, the clown do vaudeville que almoçava garrafas de gin e considerava as mulheres como elefantes: I like to look at them but I wouldn’t wanna own one.
Interessante o tema do amor no seu cinema. Teve três relações sérias sendo que, com excepção da última com a actriz Carlotta Monti que o acompanhou até ao leito de morte, as duas outras foram bastantes problemáticas. Do seu primeiro e único casamento com a assistente dos tempos de vaudeville, Harriet “Hattie” Hughes, resultou um filho e um ultimato: ela pediu-lhe para assentar e arranjar uma profissão séria. Ele não foi na conversa e nove anos depois juntou-se com Bessie Poole, uma performer das produções da Broadway Ziegfeld Follies. Conta-se, sem grandes certezas, que quando se desentenderam ele lhe passou um cheque de uma avultada quantia em troco de um papel em que ela declarava formalmente que ele não era o pai do filho dela. História escabrosa que ajudaria a pensar esse trauma de misantropia que as suas personagens veiculavam. Dos grandes faladores e malabaristas que Fields deu à luz do cinema por uma só vez me lembro de paixão: foi por Flower Belle Lee (Mae West) em My Little Chickadee. Ela até aceita casar-se com ele pois precisava de adquirir respeitabilidade uma vez que havia sido expulsa de Little Bend por não se lhe conhecer marido e andar embeiçada por um criminoso mascarado. E ela usa-o. Assim como Fields o faz com muitas senhoras de recheada bolsa, como em The Old Fashioned Way ou Poppy.
Fora isso fica-nos o amor pela filha em vários filmes e pela sobrinha naquele que é o mais honesto e absurdo dos seus filmes, Never Give a Sucker an Even Break (O Meu Tio Aventureiro, 1941). Aqui o sucker foi a Universal que o deixou fazer um filme tal qual queria: argumento, realização de muitas sequências (embora creditado a Edward F. Cline), escolha de actores secundários. O resultado, uma demência com gorilas, vilas russas nos céus habitada apenas por mulheres, cães com dentes de leão, aviões que parecem comboios, Fields a fazer de Fields e a fazer de “The Great Man”, personagem do argumento que quer vender à produtora Esoteric Films. De todo este caos resultam duas pérolas de limpidez. O gag tão genial quão verdadeiro: a sobrinha pergunta-lhe “Porque é que nunca casaste tio?”. E ele responde-lhe: I was in love with a beautiful blonde once, dear. She drove me to drink. That’s the one thing I’m indebted to her for. Não é que haja provas mas deixa que pensar esta relação. E depois o plano final da actriz Gloria Jean para a câmara: My uncle Bill… But I still love him! Dele Fields disse que sempre quis ter no ecrã e no seu cinema alguém que o amasse incondicionalmente.
Das repetidas fugas de casa durante a infância aos percalços amorosos percebe-se que a situação mais recorrente nos seus filmes seja a consideração da família como obstáculo. E em especial de um grupo de mulheres, muitas vezes composto de esposa e sogra, temperado por uma porção de crianças birrentas e malcriadas. A mentira com um sorriso nos lábios à esposa é um set up presente quase em todos os filmes. Em You’re Telling Me!, que começa com Bisbee a tentar chegar a casa bêbado sem que a mulher note, este chega a contemplar o suicídio ao antever a reacção da esposa ao seu fracasso enquanto inventor. A princesa Lascaboura diz-lhe a ela: I feel you’re the luckiest woman alive. E a esposa: Why? Did my husband died? Ou em Man on the Flying Trapeze em que a sua família, com excepção da filha, é um trapézio infernal do qual só a custo se sai. Trapézio composto pela sua sogra que se sabe foi inspirada na sua mulher na realidade e cunhado que não por acaso tem o mesmo nome do seu filho, Claude.
O escritor britânico-australiano Clive James, na sua entrada dedicada a Fields em Cultural Amnesia, a sua magnum opus sobre ensaios biográficos que foi fazendo ao longo de uma vida dedicada à cultura, escreve uma coisa bem interessante. Se o apertar da censura explica em parte o parcial eclipse do cómico nos últimos anos da sua carreira, a economia verbal (característica dos mais arreigados misfits) do verdadeiro “poeta do innuendo” ganha especial importância na abordagem do sexo. Diz ele: “For Fields, especially in his later years, being suggestive about sex was at the heart of his speech, because the discrepancy between his raddled body and his intact lusts was the secret of his screen personality. All his best dialogue came from a mental underworlds on sexual indulgence.” Se pensarmos na sexualidade introvertida de Hitchcock, no seu corpo amorfo e apetites voláteis, e em Mae West a reconhecer o “rubber nose” de Fields por detrás da máscara do falso bandido mascarado quase a terminar Chickadee, parece tudo fazer sentido no que diz respeito à relação do cómico com a sexualidade e as mulheres. E nem valia a pena contra-argumentar com as parcerias com Alison Skipworth, pois nestas ou ela é ele, parceiro “másculo” de tropelias, ou pura e simplesmente tira uma pistola em plena estação de comboios para demonstrar o extremo amor que ainda tem ao ex-marido…É Tillie and Gus certamente uma inspiração para Mr. & Mrs. Smith (Mr. e Mrs. Smith, 2005) (o de Doug Liman não o do mestre do suspense).

Entre o corpo real de Fields e uma imagem distorcida e idealizada desse corpo pode também começar a desenhar-se que palhaço foi este que hoje surge ao lado de nomes como Chaplin, Keaton, Tati, irmãos Marx, Lloyd, Laurel & Hardy. Se sobre filmes como Never Give a Sucker an Even Break ou mesmo The Bank Dick se pode dizer que parte daquilo que é a sua fraqueza – a natureza delirante e dispersiva, a estrutura por gags-episódios – é também a sua força, também com a própria persona de Fields uma dualidade terá surgido como força-fraqueza. É que nenhum performer da época se terá adaptado tão bem ao sonoro como ele. Aliás, os fãs dividem-se na consideração do seu período mudo que vai desde Pool Sharks (1915) a Fools for Luck ( Um Patife com Sorte, 1928), quase quinze anos. Uns dizem que é a sua habilidade para a comédia falada, no seu sotaque declamado e vaporoso, sem ser teatral, aquilo que justificou que a segunda metade da carreira, já no sonoro, tenha sido o período em que mais brilhou. Já outros consideram que a transição directa dos malabarismos físicos do vaudeville do palco para o ecrã no período inicial – em gags que se repetiriam várias vezes em vários filmes como as situações da mesa de bilhar com o taco torto ou o gag nos campos de golf (stand clear and keep your eyes on the ball!) – constituíram e condensaram o fundamental do seu talento.
Sobre tal dualidade não é fácil saber quem tem razão. Nos inícios de carreira, mesmo antes de chegar ao cinema, Fields era obcecado com a perfeição dos seus truques, especialmente no treino dos números de malabarismo, abstendo-se de beber álcool, fazendo do seu corpo uma máquina de disciplina. Outra das lendas que se conta é que o uso de luvas se devia às feridas causadas por anos de treino sem trégua. Deste humor físico, ficam-nos a sua inusitada agilidade do juggler e a passagem dos objectos do palco ao palco-mundo dos objectos impossíveis e perigosos, seja uma agulha que se espeta no traseiro (há todo um compêndio a fazer sobre as coisas afiadas que se lhe espetam no cu), as navalhas da barba, os cocos a caírem escada a escada pela fachada no prédio impedindo-o de dormir, as penas de uma almofada, os tacos de golf ou o negro melaço que avança como peste na sua mercearia em It’s a Gift. Só neste filme as sequências da varanda [recuperada de It’s The Old Army Game (1926) com Louise Brooks num dos seus primeiros filmes] e da mercearia, com o cego desorientado e quase surdo a destruir metade da loja, são bons exemplos desse mundo ameaçador dos objectos indomáveis.
Como se pode ler em A Biographical Dictionary of Film de David Thomson, num artigo de despedida “sob a pena” de Charles Dickens [importa lembrar que Fields fez de Micawber em David Copperfield (Vida e Aventuras de David Copperfield, 1935), a adaptação de Dickens às mãos de George Cukor] o rosto triste de Fields (que ao contrário de outros, nunca teve a tentação de se tornar mais atractivo para a câmara, nem sequer de recorrer ao exagero da expressão facial como veículo das suas piadas) com o seu nariz batata inchado e as bochechas gordas raiadas de sangue, parecia dizer-nos que o mundo é muito mau. Essa face-lembrete, que vem sempre acompanhada dos seus objectos – a barriga protuberante, o charuto omnipresente, a chapéu que raras vezes acertava na cabeça, a garrafa de whiskey ou gin – que recusava algum tipo de auto-comiseração, acaba por funcionar como a passagem do humor físico ao humor verbal. À medida que a mão falhava ante a destruição do corpo pelo alcool, a língua afiava e o malabarismo social era cada vez mais um affair de palavras lançadas naquele assobio grandiloquente que quem viu dois filmes com W. C. Fields sabe ser inconfundível e inesquecível.
Além dos nomes inenarrável das suas personagens são também conhecidos os pseudónimos com os quais decidia meter o bedelho nos argumentos dos seus filmes: Charles Bogle em You Can’t Chat an Honest Man, Mahatma Kane Jeeves em The Bank Dick ou Otis Criblecoblis em Never Give a Sucker an Even Break. Já falei da liberdade que teve neste último mas não disse que em Tillie and Gus foi ele que escreveu quase todos os seus diálogos e que em Man on the Flying Trapeze tomou as rédeas da realização dado o avançado estado de alcoolismo de Clyde Bruckman. Ou ainda que em My Little Chickadee a rivalidade de sotaques e protagonismos com Mae West era tão real quanto ficcional, com cada uma a reescrever constantemente as suas partes de forma a ofuscar o parceiro. Com estas lutas pelo controlo criativo da sua personagem melhor se entende que este dualismo entre o som e o silêncio, entre a verbalidade e a fisicalidade nunca tenha chegado a uma homogeneidade sintetizadora dos próprios filmes em que protagonizava. Tal implica que a tal força dinamismo do homem que se sente bem nos dois registos da comédia, seja também a fraqueza que tenha justificado o seu declínio e hoje a sua relativa menoridade face a outros cómicos do mesmo período.

Essa dualidade mal resolvida torna-se clara pela facilidade com que podemos separar os filmes em que W.C. Fields surge como estrela criativo e performativa à volta da qual gravitam argumento e realizador (são os casos de International House, Man on the Flying Trapeze ou It’s a Gift) e os que contratam o cómico para “aparições” precisas: Follow the Boys (Parada da Alegria, 1944), If I Had a Million ou mesmo The Big Broadcast of 1938 são algumas das obras onde essa amovibilidade dos seus gags surge mais evidente. Curiosamente é num filme em que Fields até tem um papel menor, Six of a Kind (Segunda Lua-de-Mel, 1934) de Leo McCarey, e que até tem a importação do seu celebrado gag do snooker, que melhor se pode conjecturar o que seria o impacto do seu talento se tivesse encontrado um sistema mais homogéneo de mise en scène. A performance de Fields surge aqui integrada num todo gerido por McCarey que trabalha constantemente a situação base da comédia como algo maior do que a soma das partes ou gags destacáveis. Neste, um casal que quer gozar uma segunda lua de mel vê-se “vítima” da presença insistente de um casal que responde a um anúncio de jornal que a mulher havia colocado no sentido de dividirem despesas na viagem de carro para a Califórnia. É nesta base de diversão em que um dos casais quer ver o outro pelas costas (mais o cão) para poder fazer o que fazem as pessoas numa lua-de-mel, aquilo que permite agigantar as situações individuais de comédia. Foi essa integração única que Chaplin, por exemplo, conseguiu fazer, sobretudo nas suas longas e que Fields nunca foi capaz de atingir.
Se estamos com conjecturas e outros suspirantes exercícios de “what if” pense-se no que seria esse lado B da biografia fílmica de Fields. Além de se ter emparelhado com nomes grandes como George Cukor em 1936 ou D.W. Giffith em 1925 em Sally of the Sawdust e That Toyle Girl, há uma série de projectos declinados ou inacabados que por esta ou aquela razão se agigantaram na história. Imagina-se se tivesse aceite o papel de Feiticeiro de Oz no filme de Fleming em vez de ter ficado a trabalhar em You Can’t Cheat an Honest Man? Ou se tivesse sido o Uncle Bill em It’s a Wonderful Life (Do Céu Caiu uma Estrela, 1946) de Frank Capra? Ou ainda se Orson Welles não tem abandonado a adaptação de Os Cadernos de Pickwick de Charles Dickens, o projecto pós fiasco comercial de Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941) por causa da incompatibilidade de calendários de Fields?
Pouco adiante mais elaborar sobre esses voos alternativos e ao invés dispensar as poucas palavras que ainda me restam a falar da real família de W.C. Fields. Que família podia ser essa, a de um homem que nunca teve um lar fixo (nunca comprou uma casa sequer), senão composta pelos seus compagnons de route, isto é, os seus actores e personagens secundárias? De alguns já fui falando pelo caminho como Alison Skipworth ou Bill Wolfe. Mas faltava ainda o grande Franklin Pangborn (como esquecer a bebedeira que Fields lhe prega para ele não detectar as falcatruas no banco do tio em The Bank Dick, por exemplo), o pau para toda a obra Grady Sutton, a “tolinha” Gracie Allen ou ainda Kathleen Howard, sua esposa em alguns dos seus melhores filmes. Se essa é a sua família do cinema, nos filmes propriamente ditos o cinema não traz grandes memórias. Além da confusão enquanto realizador substituto no início deste mesmo filme, há o insucesso do argumento que escreve em Never Give a Sucker an Even Break e as constantes interrupções em ensaios e no começo do “film within a film”. Repetidamente, WC. Fields reconhece-se em casa noutro lado. No teatro em The Old Fashioned Way, no circo em You Can’t Cheat an Honest Man ou nos espectáculos de variedades a bordo de um barco em Mississippi (1935) de A. Edward Sutherland. Nestes dois últimos casos Fields verbaliza mesmo o dinheiro que é necessário para manter a sua família intacta e os espectáculos de vaudeville a funcionar.
Como no início de Follow the Boys em que George Raft reconhece a negra sombra do fim do vaudeville e do começo do cinema, com Fields há essa sombra de um possível esquecimento que sobre ele paira. E como de defesas familiares se fala é esse esquecimento que se procurou aqui combater. No final de um dos meus filmes favoritos com W. C. Fields, You’re Telling Me!, a personagem de Sam Bisbee (que começa a história bêbado), já rico, depois de despachar a criadagem, pega num garrafão, afasta-se de costas para a câmara e diz esta coisa estranhíssima: This will be the first real drink I’ve had in months! Ironia, pois claro, farto de beber está ele. Mas será? Não é verdade que todas as bebidas que tomou foram numa situação de inferioridade face à sua esposa, de dependência de uma situação em que ninguém nele crê? Talvez a verdadeira bebida, a bebida da escolha, seja apenas esta última tomada com sobriedade e auto-estima. Essa recuperação de identidade, essa provar que não se está necessariamente drunk again and lying in the gutter, como o acusam em Man on the Flying Trapeze, é no fundo a luta pela credibilidade. Na ficção, mas também no seu cinema. Depois dos inebriantes vapores que transportam o trabalho de Fields para o delírio, convém trabalhar no momento da amarga ressaca e escavar a seriedade do trabalho do eccentric juggler, a integridade do conman profissional, as verdadeiras tonalidades da máscara do palhaço W.C. Fields.