No primeiro plano de A Girl Walks Home Alone at Night (Uma Rapariga Regressa à Noite Sozinha a Casa, 2014) de Ana Lily Amirpour vemos um rapaz de blusa branca encostado a um barraco de madeira, fumando um cigarro em pose à James Dean, mais à frente vemos um carrão estiloso a deslizar num deserto americano pontuado por bombas de petróleo no seu típico vai-e-vem ao som de um tributo a Morricone, temos também os vampiros melómanos de um filme de Jarmusch igualmente sorumbáticos e aborrecidos e igualmente deslizantes (com skates e amores tristes à Van Sant), temos ainda uma atmosfera de banda desenhada (ou novela gráfica, para não insultar ninguém) entre o Sin City e o Persepolis e respectivas adaptações cinematográficas, e claro temos um chador árabe a fazer as vezes da capa do Drácula no evidente simbolismo feminista que tal inversão obviamente implica (sim, filme iraniano, falado em farsi e filmado no deserto da California numa cidade fictícia de nome Bad City).
Portanto, uma salada estranhamente harmoniosa de influências, estilos e referências cinematográficas: o problema está no molho. Molho esse que foi aplicado em doses enjoativas sobre cada um dos planos, molho esse cuja embalagem exclama sem pejo “Estética Videoclip“. O fascínio pelo preto-e-branco altamente contrastado, o gosto pelas câmaras ao ralenti, as lentes a deformarem os cantos do enquadramento, os números musicais alongados ao som da banda iraniana Kiosk, tudo isso cansa e distrai daquela que é a força do filme: o seu olhar sobre o filme de género e as conotações políticas desse mesmo olhar. Tomando atenção a essa que é a única força fora do pastiche tarantiniano, note-se os dois momentos interessantes na inversão do filme de vampiros e da sua mitologia.
Uma salada estranhamente harmoniosa de influências, estilos e referências cinematográficas: o problema está no molho, “Estética Videoclip“.
(1) Hot-dog-finger. Em Bad City há um homem mau e uma prostituta boa, ele rouba, engana, extorque, maltrata e como tal, qual vigilante protectora dos desditosos, a nossa jovem vampira que desliza à noite sozinha fará justiça (ela só mata homens, normalmente aqueles que tenham sido violentos para com mulheres) seduzindo esse proxeneta de segunda e matando-o de seguida. Repare-se na forma com tal morte acontece, a menina draculiana (não confundir com aquilo que se refere as severas leis de Drácon) começa por receber entre os seus lábios o indicador do malandrão, chupa-o mimetizando aquilo que a meretriz havia operado sobre outro membro minutos antes, mostra os seus caninos aguçados, ele acha graça à situação e intumesce-se com o perigo (numa antecipação do seu rigor mortis), ela dá uma mordidela, primeiro suave, depois carnívora, e o rapagão fica sem dedo e ela cospe um dígito ensanguentado (tecnologia touch). A combinação de uma justiceira de burca que defende as mulheres vítimas de abusos masculinos com a figura do vampiro cujo único real receio é ser penetrado por uma estaca produz uma curiosa inversão: a começar por dar à mulher de burca uma força sexual premente que a impele sobre os homens, depois por ver na peça de indumentária tipicamente vista como meio de subjugação um símbolo de força perto da capa de super-herói e por fim o facto de ela tomar o falo (castrando o oponente) para logo o repelir como que se apresentado como uma figura de poder não-masculina mas igualmente potente.
(2) Perfuração das orelhas. Todo o vampiro é romântico (como o Tony de Matos) e todo o vampiro morre e mata de amores; tensão sexual constante entre penetrar com os dentes ou sem eles – ou as duas coisas. Aqui, onde a vampira só morde os malfeitores a sua relação com Arash (o James Dean de segunda) repete essa mesma tensão mas de novo com uma inversão: ele oferece-lhe uns brincos mas eles não tem as orelhas furadas, assim pede-lhe que as fure com um alfinete de dama (sempre os broches) desinfectado na chama de um isqueiro zippo para que os possa usar. Ou seja, em vez de ser o vampiro que perfura e faz brotar sangue do objecto de desejo é o humano desejado (e desejante) que o faz como gesto de amor, ou posto de outro modo, aqui a vampira deixa-se penetrar como expressão da sua dedicação ao amado não perdendo com isso a sua força nem o seu terror.
Esta figura de véu negro que atravessa todo o filme é sem dúvida a grande força icónica de Amirpour e o modo como o seu poder sexual e físico se constrói numa forma que não passa pela masculinização da vampira é, no mínimo, digna de nota.