Não se pode escrever com propriedade que Woody Allen faz sempre o mesmo filme. Mas pode escrever-se que em toda a carreira fez três ou quatro, com um desvio ou outro [Zelig (1983) será o corpo mais estranho]. Assim, Irrational Man (Homem Irracional, 2015) é uma espécie de remake de Match Point (2005) que já era uma espécie de remake de Crimes and Misdemeanors (Crimes e Escapadelas, 1989) e por sua vez já tinha dado origem a Cassandra’s Dream (O Sonho de Cassandra, 2007). As histórias não são exactamente iguais, nem o tom é o mesmo, mas os temas do “crime e castigo” (clarificado pela presença assídua de livros de Dostoiévski) e da sorte e do acaso (metaforizado em bolas de ténis e pequenas lanternas vermelhas) constam em todos. No entanto, numa obra tão obcecada com a repetição, as diferenças, por mais pequenas que sejam, acabam por ter enorme importância, nomeadamente para se gostar mais ou menos de cada um dos exemplares.
Os parecidíssimos Match Point e Cassandra’s Dream, de uma sisudez irritante e niilismo exasperante, são os mais desagradáveis desta “tetralogia” (que um seja considerado um clássico e o outro um objecto menor será eternamente um mistério para mim). Essa desagradibilidade, embora normalmente encoberta por piadas e situações absurdas, sempre existiu no cinema de Woody Allen, é verdade, mas resulta muito mais bem quando temperada com humor. Explico-me: Allen nunca foi um cineasta subtil (presumo que tal nem lhe passe pela cabeça), por isso, ao afastar-se da comédia, a sua necessidade de explicitar o tema do filme de todas as maneiras e feitios fica demasiado exposta. Em Irrational Man, essa ânsia de Woody Allen é tão evidente como nos outros casos. Para piorar as coisas, o realizador enfia filosofia de pacotilha a torto e a direito para tornar ainda mais óbvio ao que vai. [Especulação minha: esta é a mais pura manifestação do sentimento de inferioridade que Allen, um miúdo judeu do Bronx, conserva em relação às esferas sociais “superiores”, a uma “Manhattan” permanentemente inalcançável, e em particular aos intelectuais; nesse sentido, mais do que em qualquer outro, é muito pouco americano.] Contudo, esses defeitos, contextualizados no formato da comédia ligeira, não são apenas suportáveis como até quase ternurentos.
Neste filme, Woody Allen consegue a proeza de juntar aquilo que dividira em Crimes and Misdemeanors: a comédia romântica agridoce por que é mais conhecido e o filme-tese.
Em Irrational Man, até os crimes são filmados como momentos de humor físico, quase slapstick. Essa leveza perpassa por todo o filme, nos diálogos, nas situações, nas representações. Principalmente quando comparado com Match Point ou Cassandra’s Dream, cuja gravidade cedo começava a pesar no espectador, que terminava exausto. Quanto à prosápia do professor de Filosofia de Joaquin Phoenix e restantes personagens, pode ser explicada pela desconfiança de Woody Allen em relação ao ser humano. Ao jeito de Ingmar Bergman, o nova-iorquino põe na boca de gente inteligente e culta racionalizações várias para os actos mais vis e cruéis; os instintos mais básicos desculpados em nome de um suposto altruísmo. O homem irracional é, claro está, qualquer homem, mesmo o mais racionalista, o intelectual.
Neste filme, Woody Allen consegue a proeza de juntar aquilo que dividira em Crimes and Misdemeanors: a comédia romântica agridoce por que é mais conhecido e o filme-tese. Para tal, apoia-se em dois actores excepcionais (e, provavelmente, não o conseguiria sem eles): Joaquin Phoenix, a pança proeminente e a representação à flor da pele, nervosa, desregrada, sempre a ameaçar descambar para a loucura real – reza a lenda que o método de Phoenix é ser irremediavelmente ele próprio, biografia (como que arrasta a morte do irmão para todo o lado) e cicatrizes incluídas -, rivaliza com, se não suplanta, o impressionante “aristocrata” de Martin Landau em Crimes (para quem não apanhou, é um elogio, bastante grande); e Emma Stone. Ao contrário do que se poderia antecipar [ou do que o anterior Magic in the Moonlight (Magia ao Luar, 2014) supunha], Stone é muito mais Mia Farrow do que Diane Keaton. Mais fria e desagradável (lá vem esta palavra) do que estouvada e divertida. Em certo sentido, é uma mulher fatal para a personagem de Joaquin Phoenix, inocentemente tão “culpada” quanto este. Parecendo que não, é uma sensação muito difícil de representar (ter Parker Posey como contraponto ajuda, mas não explica tudo). Scarlett Johansson, mais preocupada em ser uma femme fatale a sério, jamais o conseguiria. [Outra especulação minha (porventura partilhada por outros): face às acusações de abuso sexual à sua filha Dylan, que perduram há mais de vinte anos, esta leva de filmes sobre “crime e castigo” não parece inocente; como não parece inocente que as mulheres mais desprezíveis do seu cinema se assemelhem tanto a Mia Farrow.]
Se Irrational Man não é tão bom quanto Crimes and Misdemeanors, andará lá perto. Este condicional é, por si só, um elogio, enorme.