Like all of the very great comics, before making us laugh,
Tati creates a universe. A world arranges itself around his character…
He can be personally absent from the most comical gags,
for M. Hulot is only the metaphysical incarnation of a disorder
that is perpetuated long after his passing.
Jonathan Rosenbaum
Inconfundível figura alta, de chapéu, gabardine, cachimbo entre os dentes, e calças mais curtas do que as pernas. A gentil personagem de Mr. Hulot, que se confunde com o próprio criador, Jacques Tati, extravasa os seus adereços, mas precisa deles para vincar a dissonância da sua presença na contemporaneidade, um “ovni” da sociedade moderna, ponto de confluência entre Keaton e Chaplin: “juntando o desempenho de um (o modernismo de Keaton) ao profundo humanismo do outro (o populismo de Chaplin)”, como notou João Mário Grilo.
Desde muito jovem um desportista – o ténis era aliás um dos seus números cómicos de eleição – Jacques Tati marcou as primeiras pegadas no cinema, como ator, numa curta-metragem intitulada Oscar, champion de tennis (de Jack Forrester, 1932), embora seja Soigne ton gauche (Cuida do teu Gancho Esquerdo, 1936), realizada por René Clément e escrita pelo próprio Tati, aquela que estimou como verdadeiro primeiro trabalho. Este início levou-o a outras curtas e dois filmes de Claude Autant-Lara [Sylvie et le fantôme (Sílvia e o Fantasma, 1946) e Le diable au corps, (1947)], um treino intensivo que beneficiou, posteriormente, a filmografia pessoal, uma das mais queridas obras do cinema francês, onde coexistem a loucura citadina de Playtime (Vida Moderna, 1967) e Trafic (Sim, Sr. Hulot, 1971) e a corrompida tranquilidade – ora campestre ora veraneante – de Jour de fête (Há Festa na Aldeia, 1949) e Les vacances de Monsieur Hulot (As Férias do Sr. Hulot, 1953).
Jour de fête foi, pois, a primeira longa-metragem que realizou, na sequência da curta L’école des facteurs (A Escola de Carteiros, 1947), antecipadora do interesse pelos contrastes, mas onde ainda não existe Mr. Hulot. Tati veste antes a farda do carteiro François, que, sobre as rodas da sua bicicleta, e depois de assistir a um documentário acerca da eficiência dos serviços de correio americanos, acelera no pedal (“rapidité, rapidité!”, diz ele) e transforma um dia de festa (Bastilha), numa impulsiva mise-en-scène. Filmado com duas câmaras, uma a preto e branco e outra a cores, Jour de fête foi originalmente apresentado na versão a preto e branco, por complicações técnicas com a cor. Embora já conhecida a outra versão, é a duas cores que se mantém a memória original do filme.
E por falar no preto e branco, Les vacances, o filme seguinte, utiliza-o numa suave unidade estilística, conjugada com o french flavour da discreta, mas requintada, banda sonora de Alain Romans, que nos fica involuntariamente no ouvido. “O mais burlesco dos filmes franceses e o mais francês dos filmes burlescos”, assim o definiu Jacques Lourcelles, em indubitável alusão também ao nascimento da figura de Hulot, aqui tido e achado numa estância balnear. O jeito amável, a postura, os movimentos, toda a sua maneira de estar é um eco de outro tempo. Justamente, em Les vacances, essa dessincronização torna-se memorável numa partida de ténis (ei-lo, o seu número preferido, que voltamos a encontrar em Parade), em que Hulot apresenta a sua peculiar técnica de jogo, sempre alheado e imperturbável perante o desconforto do adversário.
Digamos que a presença de Hulot é, simultaneamente, invisível e opaca: surge despojado de um protagonismo clássico, dentro das “comédias democráticas” de Tati, e depois, enquanto verdadeiro mestre de gags, tudo choca contra ele. Tudo, menos as crianças, que aparecem – sobretudo em Mon oncle (O Meu Tio, 1958) –, como a mais simples e genuína ligação ao mundo, abstraídas das futilidades do progresso. Não é por acaso que Parade (1974) lhes faz uma pequena homenagem, no final, deixando-as por sua conta, entre os objetos do circo…
Antecipador das obras que traduzem a modernidade ao mais alto nível – Playtime e Trafic – Mon oncle, começa por explorar a temática das máquinas no plano doméstico. A casa dos Arpels é um autêntico laboratório de curiosidades tecnológicas, onde o tio Hulot se mostra perdido, por exemplo, a tentar abrir um armário na cozinha hi-tech da irmã… O sobrinho, menos prezado pelos pais que os eletrodomésticos, vê em Hulot o companheiro de fuga, para quem a bicicleta é emblema lírico da liberdade.
Por sua vez, Playtime revelou-se o projeto mais arrojado, um cenário de arquitetura urbana criado de raiz – a chamada Tativille –, “sonhado” pelo realizador e desenhado por Eugène Roman. Uma cidade envidraçada, repleta de escritórios, escadas rolantes, automóveis, onde o advento da vida moderna ganha contornos particularmente acústicos. O universo sonoro é, aliás, a mais estrutural característica de todos os filmes de Tati. E os diálogos, esses, tornam-se cada vez mais supérfluos, “barulho de fundo” suplantado pelo som dos materiais sintéticos, dispersos nos imponentes planos gerais – enquadramentos matemáticos que lhe concedem a área aberta essencial, para compor a performance das suas piadas físicas. Sendo hoje um dos mais aclamados títulos, Playtime sofreu na altura críticas precipitadas, dirigidas a uma suposta megalomania de Tati, que acabou por comprometer a atenção do público.
Com uma produção de orçamento bastante mais reduzido (prejuízo do feito anterior), Trafic, fez prevalecer a sátira subtil em relação à odisseia do homem com o automóvel, apontando para a conclusão de uma filmografia que Serge Daney classificou de “furiosa síntese”. Parade, um exclusivo para a televisão sueca, encerra definitivamente a aventura das longas-metragens, com um Tati, mestre-de-cerimónias do circo, a revisitar a pantomina singular de Mr. Hulot. E esse sentido de revisitação é especialmente imprescindível na curta-metragem Cours du soir (Aulas Nocturnas, 1986), de Nicolas Ribowski.
Eis o eterno pioneiro do cinema moderno, com nostalgia do passado. Eis um pouco do seu universo, que é, arquitetónica e humanamente, superior às palavras. (Ver o texto do Luís Mendonça, Pierre Étaix: o gag depois de Tati)
p.s. Gostaria que este texto fosse como aquele momento de Parade, em que as crianças brincam com tudo o que lhes vem à mão. Mas o sentido cronológico e a rapidité da sociedade moderna de que faço parte, não me deixa ficar a brincar, demorar-me indefinidamente na grande e rigorosa construção que é o cinema de Tati.