L’Affaire Desombres (2001) é uma grande mentira. Uma das mais sofisticadas e desconhecidas das artes narrativas contemporâneas e, por isso, uma das mais fascinantes. A premissa é simples: os reputados autores de banda desenhada Benoît Peeters e François Schuiten, nesta criação tríplice de 2001 que se apresenta como tomo hors-série e transmedial das Cités Obscures, pretendem estabelecer a genealogia de influências da sua própria obra. Escrevendo uma biografia multimédia do pintor francês oitocentista Augustin Desombres, totalmente fictício (será difícil não nos ocorrer aqui o Tiago Veiga de Mário Cláudio), afirmam, através dela, que todo o ciclo das Cités é uma tentativa de reconstrução intuitiva de um universo por ele inventado (ou pressentido?) e cristalizado numa série de murais que foram destruídos após a sua morte. Segundo o discurso veiculado pelo filme, Desombres ter-se-ia isolado não só da elite artística de Paris, mas também de todos os círculos de convívio humano, encerrando-se numa mansão que decoraria obsessivamente ao longo dos últimos anos de vida e que, a partir de alucinações sinestésicas, teria transformado num receptáculo de imagens de um mundo paralelo. Desta perspectiva, todo o ciclo das Cités Obscures, de Les Murailles de Samaris (1983) a La Théorie du Grain de Sable (2007/2008), não seria mais do que uma tentativa de reconstrução deste universo criado por Desombres, declinando assim Peeters e Schuiten, através de um complexo mecanismo de distanciamento, a responsabilidade pela genialidade da sua própria obra.
O processo começa com um sumptuoso espectáculo audiovisual, apresentado em Grenoble em Dezembro de 1999 no âmbito do festival “Les 38e Rugissants” e reposto no Forum des Images em Paris em Março de 2000. Em seguida, Peeters e Schuiten realizam uma média metragem de 50 minutos com o mesmo título e, finalmente, publicam-na em DVD, integrando uma edição em formato de álbum de banda desenhada que inclui um booklet de 31 páginas com um conteúdo de autonomia ambígua. Esta obra (espectáculo-filme-livro) é, por sua vez, uma sequela de um outro objecto hors-série das Cités Obscures criado em 1990 e publicado, com o título Le Musée A. Desombres, sob a forma de CD áudio acompanhado de uma brochura ilustrada por Schuiten.
Esta bizarra estrutura, que Peeters, ele próprio, adjectiva de “polimórfica” e “insólita”, e que se concretiza numa multitude de textos e paratextos, é, em grande medida, responsável pela mistificação de L’Affaire Desombres. A prova de veracidade é um propósito óbvio do livro e do filme, que visam, através da multiplicidade de suportes em que a obra existe, convencer o espectador-leitor de que a figura histórica é efectivamente real e que é a responsável pela invenção das Cidades Obscuras. Alguns elementos utilizados para atestar a genuinidade de Augustin Desombres aparecem, de forma transmedial, em todos os suportes. Temos, por exemplo, o recurso à figura de uma professora universitária, que, no seguimento de uma longa investigação, pretende analisar, pela primeira vez, os míticos murais de Desombres. Por outro lado, o musicólogo e compositor Bruno Letort comenta e reinterpreta musicalmente, tanto no espectáculo como no filme, as pautas supostamente escritas por Desombres e que recuperam as sonoridades que o pintor, através das paredes, acreditava ouvir durantes os seus delírios. Peeters e Schuiten recorrem ainda, com grande destaque nos três suportes, a uma mise en scène fotográfica protagonizada por um actor não identificado, o que garante, através do contrato da imagem real, a carnalidade desta figura sorumbática e fugidia.
Se Peeters e Schuiten recorrem ao passado para falar do presente, da mesma maneira fazem uso da mentira para dizer a verdade
No entanto, há alguns mecanismos que são específicos do suporte cinematográfico, e são estes que mais nos interessarão. Em primeiro lugar, as imagens documentais de L’Affaire Desombres apresentam-se com uma planura absoluta, onde a poesia é propositadamente evitada para sublinhar a sua honestidade. A filmagem de uma conferência onde a professora universitária, interpretada por Catherine Aymerie, expõe os resultados da sua pesquisa aproxima-se da rudeza dos registos frequentemente pouco cuidados de eventos públicos, procurando um enfraquecimento na contestação da veracidade por parte do espectador. As imagens animadas, por sua vez, apontam para uma credível genealogia da inspiração, através de uma associação do trabalho de Schuiten às invisibilidades do chamado “maître de l’Aubrac”. Fundamental é, também, o tratamento das supostas obras de juventude de Desombres, verosímeis pelo seu afastamento das respectivas peças de maturidade e filmadas com uma enganadora objectividade. Finalmente, é surpreendente a própria aparição de Schuiten e Peeters como entrevistados do documentário, os quais, beneficiando da insuspeitável reputação adquirida no mundo artístico, mentem descaradamente no ecrã.
Qual é, então, o interesse de Schuiten e Peeters na criação desta mentira, que, caso fosse crível, retiraria mérito aos artistas? A chave está, evidentemente, na vontade de que ela seja detectada: os criadores das Cités Obscures procuram, com L’Affaire Desombres, a complexificação de um universo que começaram a criar praticamente vinte anos antes e que, naturalmente, lhe dará força diegética, mas não uma mentira histórica que seria facilmente descoberta com qualquer pesquisa enciclopédica. A fuga da linha clara na banda desenhada (escola que Benoît Peeters, porém, tanto elogia nos seus ensaios teóricos sobre Hergé) concretiza-se assim não só através de uma prolixa alternativa gráfica, mas também através do detalhe narrativo, que, aqui, é completado através de pormenores (falsamente) extradiegéticos: Desombres é um elemento pertecente à diegese com tanta justiça como qualquer outro das Cidades Obscuras (o seu atestado de pertença começa no próprio nome: Das-sombras) e, assim, não é por acaso que surge desenhado por Schuiten, com os traços característicos da série, na capa do álbum-DVD. Esta complexidade é o resultado da geografia que os autores procuram estabelecer: para que ela funcione, é necessário que exista tanto no plano interno como no externo, ou seja, que haja uma comunicação directa entre o nosso mundo e o das Cidades Obscuras.
Resta-nos a questão do objecto: como podemos classificar L’Affaire Desombres? Será este o “affaire”, afinal? Schuiten e Peeters retiram evidente prazer no apagamento das fronteiras entre os capítulos desta criação (o espectáculo – o filme – o livro), distinguindo as composições, mas oferecendo-lhes o mesmo título e tratando-as como diferentes fases de um só processo, apenas repensadas, nas palavras de Peeters, “em função do seu novo suporte”. Deste ponto de vista, a obra é um dos mais cativantes projectos transmediais da arte narrativa contemporânea, aproximando-se do esquema, por exemplo, de alguns célebres casos de criações americanas em televisão e em comics, mas inovando drasticamente pelo número de suportes e pelo vanguardismo das suas mutações.
Les Cités Obscures é, incontestavelmente, um dos mais intricados e exuberantes mundos ficcionais criados no século XX, tendo até justificado a publicação, em 1996, de um Guide des Cités para que o leitor se orientasse mais facilmente no labirinto de Peeters e Schuiten. A cosmovisão apresentada pela série foi insuflada de referências à pintura, literatura e arquitectura oitocentistas, ostentando citações, nomeadamente, a Henry Fuseli, Jules Verne e Victor Horta. No entanto, através de tentativas de representação de um novo passado do futuro, comenta sobretudo o mundo contemporâneo, reflectindo, com grande acuidade, sobre como o ser humano, frequentemente, se organiza segundo estranhas e desajustadas fórmulas urbanísticas e como as suas criações habitacionais o ultrapassam por completo (disso são evidentes exemplos a cidade viva, minada por jogos de aparência, em Les Murailles de Samaris, ou o Centro Pompidou tomado como objecto alienígena em Les Mystères de Pâhry). É esta mesma lógica que justifica a invenção de L’Affaire Desombres: se Peeters e Schuiten recorrem ao passado para falar do presente, da mesma maneira fazem uso da mentira para dizer a verdade: não é Augustin Desombres, com o seu carácter aglutinador, Fuseli, Verne e Horta num só? Não é ele, pela sua insuspeita carnalidade, a mais verdadeira chave das influências das Cités Obscures? O desvio pelo cinema não pode senão cimentar esta leitura.