A boa regra ditaria que para relatar o que foi o meu MOTELx deste ano deveria começar pelo princípio e terminar onde normalmente tudo termina: no fim. Mas apetece-me começar por onde a memória está mais fresca, precisamente pela sessão do passado domingo, onde se premiou a melhor curta portuguesa e se ante-estreou o mais recente filme de Eli Roth.

Confesso que cometo sempre o juízo precipitado de considerar as curtas-metragens MOTELx como entradas, nem sempre saborosas, para o “verdadeiro cinema”. No caso do vencedor deste ano, Miami (2015), a entrada supera muitos dos pratos principais que tive a oportunidade de degustar. A duração é curta, mas a amplitude do gesto é longa e o olhar surpreende pela sua maturidade. Simão Cayatte assina esta história sobre uma rapariga capturada pelo sonho juvenil de atingir o estrelato mediático e ser reconhecida por todos, até que o seu nome seja notícia nas praias de Miami. Na realidade, basta-lhe ser conhecida, se o talento não lhe valer o reconhecimento imediato. A câmara, sempre firme, presa ao rosto bonito e atormentado da rapariga, vai desenhando um espaço sonoro-visual tendente ao isolamento e, como corolário, à loucura. Acabou por ser, de todos os filmes que vi no festival, a obra mais penetrante do ponto de vista dramático. Uma óptima surpresa.
O filme que se seguiu a esta segunda passagem de Miami, Knock Knock (2015, Knock Knock – Tentações Perigosas), é um pequeno divertimento dentro do género home invasion, com uma notável – e, em certa medida, descarada – dose de misandria. A proposta do filme é simples: como minar de dúvida a confiança, que se pode confundir com soberba, do homem heterossexual “happily married”? Qual o grau de vulnerabilidade do exemplar – monstruosamente exemplar – pai de família no seio do seu impecável ninho familiar? Apesar das questões ambiciosas, Roth cede, vezes de mais, a um certo esquematismo dramático, ou até retórico, que o impede de aprofundar o material que tem em mãos. Ainda assim, vale a pena esperar pelo desenlace: Keanu Reeves, o protagonista e também produtor executivo do filme, a (quase) perder a cabeça diante da exposição no Facebook da sua (mui hipócrita?) fraqueza moral. Quando procurava fazer “delete”, acaba a fazer “gosto”. Foi um pouco assim comigo no filme: quando pensava que Roth já não tinha nada de novo a dizer, e pouco disse até então para lá da premissa que sacou ao original Death Game (1977), acontece essa sequência que dá vontade de “gostar” desta tentativa do realizador de fazer não propriamente o torture porn que lhe deu tanta fama, mas um filme de tortura onde a violência, fundamentalmente moral, se compraz pouco consigo mesma, isto é, tem uma qualquer finalidade discursiva que vai além do efeito-choque puramente gráfico. Uma finalidade que entala o espectador, devolvendo a este as dúvidas que o filme, lamentavelmente, apenas sabe enfrentar pela rama.

Outra sessão deste MOTELx, que transforma a perdição numa forma de tortura – esta mais plástica do que moral -, foi o double bill programado pelo crítico de cinema francês Stéphane du Mesnildot, que veio a Lisboa no âmbito de uma iniciativa do colectivo White Noise. Também aqui houve um belo aperitivo que antecedeu o prato principal. Uma pequena descoberta chamada Nôtre-Dames des Hormones (A Nossa Senhora das Hormonas, 2015), conto bizarro, de cores estonteantes, sobre um triângulo amoroso composto por duas actrizes e um organismo quistoso com uma espécie de antena em forma de falo. Este filme do francês Bertrand Mandico resulta numa fábula multicolorida sobre os fantasmas, criadores e recreadores, que sequestram o desejo feminino. Esta ideia de se ser sequestrado pelos desejos mais secretos surge de novo no filme que se seguiu a esta curta: Eugenie (1970), do prolífico cineasta espanhol Jess Franco. O mais interessante neste elogio à prosa de Sade é o trabalho de composição de Franco, que permite que todo o sensualismo passe essencialmente pelo discurso formal antes de se banalizar nas cenas de sexo. Foi como uma cereja no topo do bolo ver este filme após a conferência que Stéphane du Mesnildot proferiu um dia antes, e que propunha encontrar nas opções de carreira do mítico Christopher Lee uma metanarrativa que caminhava no sentido da exaltação dionisíaca dos corpos. Do drácula sedutor de Fisher ao profeta libertino de The Wicker Man (O Sacrifício, 1970). No filme de Franco, nem de propósito, Lee incarna o líder de um grupo de autodenominados discípulos do Marquês de Sade. Um desses discípulos é significativamente interpretado pelo próprio Franco, uma participação que parece comentar os moldes dessa “política da carne” que governava o seu cinema. Mas, como digo, pior – e, portanto, mais poderosa – que Franco é a presença de Lee, que em Eugenie refina perversamente esse “convite à perdição” inscrito na sua carreira desde os seus primórdios fisherianos.
Mas o MOTELx 2015 não se esgotou no tema do sexo, pelo menos, nessa abordagem mais pomposamente plástica (de Franco) ou moralmente traiçoeira (de Roth). Se houve qualquer coisa de diferente nesta minha experiência do festival por comparação às edições anteriores foi a quantidade de sessões em que ouvi mais risos do que gritos vindos das plateias do São Jorge. Nesta mistura entre comédia e terror houve um pouco de tudo. O filme de abertura do festival, o muito antecipado The Visit (A Visita, 2015), assume abertamente dois riscos: reciclar o found footage nas barbas de um cinema que sempre fora, por essência, pela precisão dos planos; e jogar na fronteira entre a comédia e o terror até ao ponto em que o riso se torna inextricável do grito. O mais distintivo do toque de Shyamalan é a criação de um regime de empatia com as personagens que torna depois possível a exploração das sensações mais epidérmicas de horror. O problema maior aqui é que o acesso tanto ao terror como à comédia – acesso, enfim, ao drama – acaba tolhido pelo found footage, dispositivo que torna sempre a câmara no primeiro – e muitas vezes único – protagonista de qualquer filme. Shyamalan mitiga esta questão quando coloca “a sua câmara” nas mãos de duas crianças prodigiosas, uma delas, precisamente a realizadora no filme, não se inibe de ostentar as suas fortes convicções estéticas. A outra, o miúdo rapper de inteligência burlesca, deixa escapar em tom de paródia a expressão, tradicionalmente, sob ameaça do found footage: “mise en scène”. Apesar destas atenuantes, há sempre um falso “olhar de registo”, demasiado auto-consciente, que torna tudo “simulação” de qualquer coisa e que, no fim, impede a imersão total. Ainda assim, Shyamalan ensaia aqui uma visão impressiva sobre o envelhecimento mediada pelo olhar de duas crianças. Tudo o que é estranho – aparentemente “paranormal” – é justificado pela idade avançada dos dois avós no filme, pelo menos, até ao ponto do já muito falado twist. Paradoxalmente, e por muito hábil que possa ser, o volte-face acaba por afastar Shyamalan desse projecto inicial de colar o terror ao rosto do vovô ou da vovó, de qualquer vovô ou qualquer vovó ou, pior ainda, do nosso futuro “eu” envelhecido.

No MOTELx houve mais visitas familiares que não correram bem. Roar (Homens e Feras, 1981) já tinha sido antecipado por mim como uma das principais curiosidades desta edição do festival. Era uma curiosidade grande por ser realizado por Noel Marshall, produtor do The Exorcist (O Exorcista, 1973), e protagonizado pela sua bela família, onde se destaca a sua mulher, Tippie Hedren, e a sua filha, Melanie Griffith. Mas era uma curiosidade maior ainda pela sua reputação de ter sido a produção mais irresponsável da história do cinema. Ainda estamos aqui no domínio das curiosidades, as que serviam de estímulo suficiente para se ver Roar. Contudo, desde os primeiros minutos o filme faz questão de estar à altura da sua fama, na realidade, este é mesmo um daqueles casos em que é preciso ver para crer. A presença de Tippi Hedren assinala bem a intenção por trás do filme: transformar o por si protagonizado The Birds (Os Pássaros, 1963) numa brincadeira de crianças. Em vez de pássaros, temos leões, chitas, leopardos e nada amigáveis elefantes numa reserva situada algures em África – o filme foi, no entanto, rodado na Califórnia. A história do filme é finíssima, quase invisível, e, apetece dizer, ainda bem que assim é, porque o que alimenta toda a experiência do filme é a loucura de toda a gente que fez parte da sua produção – por alguma razão, nos créditos lemos que o filme foi realizado por “Noel Marshall and friends”, como quem diz “Noel Marshall e os seus cúmplices”. Assistimos a Marshall e depois à sua família a viveram e conviveram com toda essa temível fauna sem usarem qualquer tipo de protecção a não ser a sua confiança desmesurada, que ainda assim foi insuficiente para que cada um saísse desta aventura ileso.
Estava a ver o filme, sempre de queixo caído, e a pensar que aqui estaria posta em prática uma versão hardcore da lei da montagem interdita de André Bazin, que Serge Daney interpretou como sendo uma verdadeira “história de feras”. Bazin pegava no exemplo de Chaplin em The Circus (O Circo, 1928), em que a certa altura vemos dentro de uma jaula, e no mesmo plano, o vagabundo a poucos metros de distância de um leão. A interdição do corte, ou do uso habitual do campo-contra-campo, entre homem e fera, potenciava o realismo da sequência, logo, viabilizava o cumprimento pleno da vocação do cinematógrafo para capturar o real do modo mais integral possível. Daney escrevia: “É preciso merecer, até mesmo à morte, as imagens”. Marshall e a sua família, que lhe fez essa muito marcante visita, não fizeram outra coisa, tornando Roar não só numa produção irresponsável como, mais importante, num filme onde se sente um risco de morte a cada instante e, por isso, a certa altura, já só sabemos rir. E muito se riu, mesmo que nervosamente, na sala 3 do São Jorge à pala dos Marshall.
Se Roar é um pouco mais do que apenas uma curiosidade fílmica, não se pode dizer o mesmo do raro exploitation português A Caçada do Malhadeiro (1969), de Quirino Simões. Este filme de vingança, entre o western spaghetti e os westerns fronteiriços de Sam Peckinpah, foi exibido numa cópia novinha em folha na sala 3 e aí se propôs que se desse uma nova vida a este título que não era mostrado em público há cerca de 50 anos. A descoberta, aqui, não vai além da curiosidade, dada a debilidade do filme, que é exploitation só na medida do que no Portugal de então um filme assim podia ser. Um pequeno pormenor no filme torna-se num dos principais empecilhos a que possamos entrar na sua história: a guitarra clássica que ocupa quase ininterruptamente a banda de som, “entrando e saindo de cena” de modo mais ou menos aleatório e, muitas vezes, secando a tensão, que é como quem diz: exponenciando o ridículo.
Falei já de The Visit. Mas houve outro peso-pesado a (procurar) provocar gargalhadas, e menos, muito menos calafrios. Foi Joe Dante, com o seu mais recente filme, Burying the Ex (2014). Todas as minhas reservas no texto de antecipação confirmaram-se. Este espécime de rawmantic comedy é desinspirado, frouxo, quase telefilmeiro. Toda a inteligência e argúcia que reconhecemos no melhor Dante está completamente ausente aqui, nesta historieta molengona de um amor que resiste além-túmulo. As referências geek à história do cinema de terror e o apontamento anti-ecologista – talvez a única pitada da agudeza dantesca, mas muito inepta aqui – são os ingredientes principais num universo de personagens chochas e estereotípicas – a própria moral de que o geek só pode estar bem com uma geek como ele está ao nível da linguagem mais básica das telenovelas.

Ao mesmo tempo que passava este decepcionante regresso de Dante, exibia-se na sala 3 o documentário Lost Soul: The Doomed Journey of Richard Stanley’s Island of Dr. Moreau (2014). Quem o foi ver ficou melhor servido. Lost Soul é uma espécie de Hearts of Darkness (Corações das Treveas, 1991) de um dos piores filmes dos anos 90, aquele que afundou a reputação do então promissor Richard Stanley, que esteve presente neste MOTELx para mostrar algumas curtas-metragens e as suas duas longas mais celebradas, Hardware (M.A.R.K. 13, 1990) e Dust Devil (1992). O que se conta aqui é a ultra-rocambolesca história da produção de mais uma adaptação do clássico de H.G. Wells, The Island of Dr. Moreau. Nada correu como devia. Uma tempestade levou consigo os cenários construídos numa remota ilha na Oceânia, que não oferecia condições mínimas para a realização de um filme. Marlon Brando, que na época procurava superar o suicídio recente da filha, chegou mais de uma semana atrasado ao set, sendo que durante a rodagem não parou de acrescentar elementos à caracterização da sua personagem, alguns deles completamente alheios ao guião. Val Kilmer, outra personalidade no mínimo complicada, fez de tudo para sabotar a produção, começando desde logo por assediar um já física e mentalmente exausto Richard Stanley, que acabaria despedido e substituído por um mal-humorado John Frankenheimer. A equipa de figurantes, que esperava horas e às vezes dias para filmar, envolvia-se em orgias com muita droga à mistura. O resultado… foi o que se viu. No documentário, um dos produtores confessa que foi uma sorte que o filme tenha sido concluído, com princípio, meio e fim. Apesar de pouco imaginativo do ponto de vista formal, Lost Soul vale pelo material que lhe dá origem, aliás, diria até que daria uma óptima fonte para um futuro filme de ficção, inevitavelmente, cómico.
As duas mais esgrouviadas comédias que passaram pelo programa do MOTELx vieram do Japão. Tag (2015) de Shion Sono e Yakuza Apocalypse (2015) de Takashi Miike. Os dois disputaram o prémio para o maior “fritanço” deste MOTELx. A incongruência é a massa de que são feitos. O filme de Sono é um fluxo de episódios incongruentemente ligados entre si, um mundo onde, como diz a certa altura uma das personagens, tudo é “surreal”. Prefiro o Sono mais clássico, menos delirante ou enjoativo. Em Miike, o what the fuckism atinge novas alturas. Uma história de yakuzas vampiros não é suficiente para saciar o gosto de Miike pela extravagância e o não-óbvio. Pois então, acrescentou uma boa dose de pancadaria à la The Raid (2011) – o filme conta mesmo com a participação do actor indonésio Yayan Ruhian – e uma mão cheia de personagens supranaturais que parecem sair de uma série infantil diabólica. O filme prende por obedecer a esta lógica sem lógica, onde só vale a ideia mais abstrusa. Quando termina, fica a sensação de que a única coisa minimamente palpável é o efeito de liberdade e de loucura que um cineasta como Miike consegue imprimir em produções de alguma dimensão. Sem sair do Japão, resta-me deixar uma nota sobre o último trabalho de Hideo Nakata. Ghost Theater (2015) vem só confirmar uma ideia, que talvez seja muito minha, de que Nakata é um dos cineastas de terror mais sobrevalorizados. Esta história de mistério passada nos bastidores de uma peça de teatro, e que envolve uma boneca “assombrada”, é tão desinteressante quanto a sua premissa dá a entender. Construção narrativa com flashbacks à CSI, investigações intermináveis para dar uma razão qualquer aos imponderáveis mistérios da vida e da morte, pequenas intrigas que anseiam por uma qualquer tensão que nunca mais chega. Tudo isto me faz lembrar de como Nakata é um daqueles cineastas que confundem suspense com adiamento. Falta-lhe brilho, explosão, punch horrífico, sendo hoje pouco mais que um somatório de lugares-comuns.