O mês de Agosto deu para descansar, mas também contribuiu para avolumar o stock de ideias para a crónica que se seguia. Por isso, esta Civic TV vai-se fazer em três pontos. Uma viagem às imagens, e aos pensamentos por trás delas, de Gérard Castello Lopes, num exemplar “produto” do serviço público de televisão. É desse serviço que vem, ainda fresco, o segundo tema desta crónica: a estreia de um novo espaço de cinema, aos sábados, na RTP2, que tem como título Já Vi Este Filme e que faz regressar a boa e saudosa tradição das apresentações em estúdio dos filmes a serem mostrados. Por fim, sou violado pelo casal Liz-Burton na sequência de uma parceria que o À pala de Walsh inicia este mês, e neste preciso espaço, com os canais TVCine.
(1) Quero escrever sobre o documentário de Fernando Lopes Gérard Fotógrafo (1998) e fico surpreendido pela negativa com a pouca informação disponível sobre o seu principal assunto: simplesmente, Gérard Castello Lopes, um dos nomes maiores da fotografia nacional no século XX. Esperava encontrar, se não uma fundação com o seu nome, um site oficial, que trabalhasse o variado património que Gérard deixou, não só enquanto fotógrafo, mas também na qualidade de escritor, crítico e distribuidor de cinema. O documento de Fernando Lopes, que atesta o que melhor se pode fazer em matéria de serviço público de televisão, é um testemunho de enorme relevância face ao pouco que se tem dado a ler e a ver sobre a obra deste homem excepcional. Desde logo, Gérard era um intelectual “à antiga”, alguém que não se limitava a fazer coisas, ele sabia enquadrá-las com uma reflexão profunda, que se desenvolvia, palavra a palavra, como uma tese eloquente sobre a ontologia do próprio acto criador. O filme de Fernando Lopes é, por isso, sem estranhar, um filme da palavra mais até que da imagem. O lugar da elegância natural em Lopes está no “saber dar a ouvir” este intelectual que cria, este criador que pensa. Apanhar este documentário de apenas 40 minutos na RTP Memória é como se subitamente alguém se tivesse enganado e no nosso pequeno ecrã tivesse sido aberta uma janela que deixasse passar o ar que faz respirar cultura.
A “elevação” de uma programação de serviço público passa exactamente por isto: pôr-nos a nós, espectadores, em contacto com cabeças excepcionais, pessoas que sabem transformar a densidade dos seus pensamentos num discurso límpido, leve e, a espaços, verdadeiramente magnético. Não espanta que o protagonista desta história seja a fotografia que Gérard mais acarinha: o famoso “pedregulho” que fotografou em 1987. Esta imagem não é só o retrato do Mundo e da sua natureza paradoxal, ela é, quanto a mim, um auto-retrato lapidar. O que Gérard diz sobre a sua pedra serve bem de crítica ao que sentimos quando o ouvimos: “apanhei na fotografia daquele rochedo o paradoxo na sua existência perfeita: por um lado, aquela pedra pesa dezenas de toneladas, por outro lado, parece suspensa no ar. (…) A ideia de paradoxo como vector analítico do real aparece-me como perfeitamente conseguido: aquilo pesa e não pesa”.
Gérard é denso, pomposo, quase barroco, no discurso, mas a sua generosidade e ginástica mental (ou conceptual) tornam-no leve como uma pena. Fernando Lopes sabe quem tem em mãos e tem a noção de que o seu documentário é para ser visto na televisão. O dispositivo formal de Gérard Fotógrafo é simples, quase simplório por vezes, como algumas soluções de montagem que exploram a transição das fotografias para os planos da entrevista a Gérard na sala de revelação ou a algo desconexa, mas nem por isso completamente falhada, entrada em cena de Maria João Seixas, que vem testemunhar a visão do pedregulho. Apesar disso, Lopes espreme como deve a laranja sumarenta que tem à frente da câmara. Gérard foi fotógrafo, também foi distribuidor e crítico de cinema, mas antes disso, ou depois disso – fica a questão quanto à ordem: é a criação que faz o criador ou o contrário? -, Gérard foi um homem, um pensador e, revelação de Lopes, um comunicador nato. Sai-se deste documentário com vontade de a ele regressar ou de beber mais um pouco da sabedoria de Gérard Castello Lopes, tanto nas palavras como nas imagens.
Não queremos lampejos de serviço público, queremos serviço público continuado, sustentado e substancial.
(2) Maria João Seixas e Fernando Lopes. Dois nomes que nos fazem regressar a um tempo, não tão distante quanto isso, em que o serviço público de televisão consubstanciava um amor aos assuntos ao invés de um frio, desonesto e estupidificador cálculo das audiências. A nova grelha da RTP2 premeia o espectador cinéfilo com o regresso de uma tradição que começava a deixar saudades e que terá como referência máxima o programa, já nestas crónicas recordado, No Meu Cinema, realizado por Margarida Gil e com João Bénard da Costa no papel de grande cicerone da história do cinema. Já Vi Este Filme estreou no pequeno ecrã no dia 5 deste mês, às 22h55, com o filme que melhor pode simbolizar a abertura de um novo capítulo na programação de cinema da RTP2. Um capítulo que gostaria que tivesse não só pernas para andar como uma visão de longo prazo. Não vale a pena retomarmos modelos certos do passado do segundo canal para depois os afundarmos, implacavelmente, decorridos uns meses ou até semanas. Foi isso que a anterior direcção do canal fez com o regressado 5 Noites 5 Filmes. Não queremos lampejos de serviço público, queremos serviço público continuado, sustentado e substancial. Tem-se falado em confiança. Ela não assombra apenas os mercados, os tribunais, a classe política ou até o futebol. Para que a RTP2 cumpra com a sua missão tem de tornar a cultura numa programação não direi apenas “horizontal”, mas “horizontalíssima”.
Já Vi Este Filme começou com Roma città aperta (Roma, Cidade Aberta, 1945) – entretanto já passou Paisà (Libertação, 1946) e no próximo sábado será a vez de Stromboli (1950). Calha bem que se abra esta rubrica com o primeiro tomo da trilogia da guerra de Rossellini, filme sempre-actual sobre e de resistência à barbárie. Para falar dele em estúdio esteve Lauro António, no começo, e Susana Nobre, no pós-filme. A apresentação de Lauro António foi igual à pessoa que é: atenta, informada, isto é, fundamentalmente correcta. Depois passou o filme numa cópia restaurada, mas num formato 16:9 que basicamente estragou todo o trabalho de restauro, o que só prova que não se “abrem cidades” de um dia para o outro. Ainda falta à RTP2 gente que tenha amor pelos assuntos – referi Lopes, referi Bénard… A seguir ao filme, Susana Nobre falou do modo como Rossellini filma a morte, como esta se imiscui nas cenas do quotidiano de uma cidade devastada pela guerra e como este cineasta italiano via nas ruínas de um passado, então muito recente, em destroços uma possibilidade para encarar o futuro. Um discurso mais elaborado, rico, profundo que o da apresentação, mas que sai valorizado pela ordem em que aparece. Em primeiro lugar, o enquadramento mais factual ou historiográfico garantido por Lauro António. Em segundo lugar, após o filme, a oportunidade de pensar as implicações estéticas, filosóficas e políticas daquilo que o espectador acabou de assistir. Se calhar, só peca esta última parte por escassa em termos de duração, mas, de novo porque Roma e Pavia não se fizeram num dia, também não se pode exigir já mais reflexão do que informação a um canal que aparentemente só agora começa a conseguir fazer do seu ruinoso passado recente um motivo para encarar o futuro. Por isso, só me resta dizer: vá, parabéns, RTP2! Mas, vê lá, nem penses em desistir!
(3) Volvidos que estão três anos de Civic TV, não será preciso perder muito tempo a justificar uma tentativa da minha parte de bater à porta de uma qualquer casa onde o grande cinema seja bem-vindo. Não sendo este um site comercial, será fácil de depreender o que subjaz a parceria entre a Civic TV e os canais TVCine: a oportunidade de ver e levar a ver mais e melhores filmes. A liberdade será a mesma de sempre, igual, por exemplo, à que já me fez escrever, num regime mais pontual de parceria, sobre os canais em apreço neste mesmo espaço (crónicas disponíveis aqui e aqui). Para celebrar esta empresa, não preciso de ir mais a fundo que o primeiro zapping que fiz pelos canais. Graças a ele, dou de caras com a obra de estreia de Mike Nichols, realizador muito estimável, que faleceu vai fazer em Novembro um ano. Falo do clássico Who’s Afraid of Virginia Woolf? (Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, 1966), com Elizabeth Taylor e Richard Burton. O Tiago Ribeiro escrevia há dias, na sua crónica Ecstasy of Gold, sobre uma prodigiosa primeira longa-metragem, de um realizador, Maurice Pialat, que decerto não terá sido indiferente ao jogo de massacres de George (Burton) e Martha (Liz). Num filme sobre os grandes temas da condição humana, o amor, o ódio, a loucura, a ambição, etc., tudo gira ininterruptamente, as palavras embriagam o espírito mais rápido que o brandy que se bebe aos litros. “Cling, cling, cling”. Os cubos de gelo no copo cheio de brandy são como o som insuportável que fazem os nossos pensamentos a chocarem contra as paredes do cérebro.
George e Martha envelhecem e vão envelhecer juntos – o falso ending apaziguador diz-nos isso, também. O jovem casal que recebem, os “pombinhos” que ficam por nomear, são os catalisadores da acção, puras presenças mediais, que transformam uma noite de discussão ácida entre homem e mulher numa roleta russa que dispara “chapéus-de-chuva” no lugar de balas – menor seria o (nosso) sofrimento se fossem balas! Who’s Afraid of Virginia Woolf? é uma obra-prima dramatúrgica – ia escreve demiúrgica, talvez uma palavra mais exacta – como se Mike Nichols e o casal lobotomizado Liz e Burton quisessem fazer do filme uma espécie de síntese perfeita, e diabólica, de Joseph L. Mankiewicz com Joseph Losey. Sob a direcção deste último haveria o casal de estender a sua “terapia matrimonial”, via o pouco lembrado, e igualmente concentrado e massacrante, Boom (Choque, 1968). Com Who’s Afraid…, Mike Nichols irrompe pelo cinema adentro munido de um balde gelado, cheio de nervos, neuras, álcool e vomitado – iria usar o que restava dele na obra-prima, não menos enlouquecedora, Catch-22 (Artigo 22, 1970). É um filme gore tal o poder da sua violência e a expressão das múltiplas hemorragias da psique – a TVCine 2, que o passou, deixou ficar a bolinha vermelha e fez muito bem, porque, de facto, esta tempestade não é para todos. Mas, quanto a mim, não podia ter havido melhor começo.