O cinema gosta deles. Quem vê muito cinema, mais cedo ou mais tarde, acaba a usá-los. E mesmo quando não são precisos, lá aparece o último grito em 3D. Imaginem a explosiva combinação das duas situações: óculos sobre óculos. Acontece isto com os cinéfilos míopes que musculam o cérebro com imagens, mas à custa do frágil órgão que transforma a alta-definição do mundo numa sucessão de borrões de cor e luz. Se o olho fosse um músculo, só havia Misters e Misses Universo nesta casa. Como não é, tem o leitor de aturar os humores de um bom grupo de “caixas d’óculos”.
São marcas como estas que fazem os filmes de género constituírem-se nisso mesmo – em géneros. No caso, referimo-nos à circunstância de determinados objetos, aparentemente insignificante ou inofensivos, poderem ser essenciais, reveladores, determinantes para o desenrolar da narrativa nos thrillers, nos filmes de suspense, enfim, nos filmes de terror, nessa (aparente) insignificância acabando por reverberar, afinal, o registo MacGuffin hitchockiano que já tivemos, aliás, oportunidade de abordar numa outra Sopa de Planos. Em Strangers on a Train (Desconhecido do Norte-Expresso, 1951), o objecto principal que ilustra esse “tique de género” é o isqueiro que permitirá a resolução da trama. Mas há outros – e os óculos deste plano são, justamente, um desses exemplos, na medida em que funcionam como elemento confirmador daquilo que as aparências indiciavam, ou seja, o perfil psicopata de Bruno. Depois da voltinha de barco pelo “Tunnel of love” (com outro espantoso plano das figuras literalmente cavernais do casalinho e de Bruno e o seu chapéu no seu encalço) e do primeiro grito-comic relief da rapariga, Bruno, já em terra (desta feita na… “Magic Isle”), encontra-a e puxa do tal isqueiro, não para lhe acender um cigarro, mas apenas para identificar o alvo. “Is your name Miriam?” – “Oh yes…”, estas as últimas sorridentes palavras de Miriam (a primeira parcela da equação do perfect murder acertado no comboio), cujo lento estrangulamento nos é dado a ver pelos seus óculos “fundo de garrafa”, espécie de “janela indiscreta” avant la lettre (óculos que Bruno fará questão de “devolver” a Guy). E a culpa por esse voyeurismo é atirada para cima de nós, perdão, Miriam é “atirada” para cima de nós. Toda esta deliciosa sequência é conferível aqui.
Francisco Noronha
O que permitem ver os óculos escuros de Nada, interpretado pelo recentemente falecido Roddy Piper? Permitem ver uma espécie de lado negativo do mundo, uma imagem pobre que está antes: uma conspiração alienígena é denunciada nos rostos e nas mensagens da publicidade e dos media. O paradoxo fundamental é que estes óculos escuros, ao invés de enfraquecerem a percepção do real, pelo contrário, levam Nada a ver para lá da realidade postiça que, pelos olhos, se lhe impõe. Ver menos para poder ver mais além. Os óculos são o filtro da verdade terrível que nós, cidadãos na ignorância, desconhecemos. A ignorância é um lugar confortável onde tudo se oferece numa falsa luminosidade que ofusca mais do que aclara. Como escreveu Luís Miguel Oliveira na folha de sala da Cinemateca Portuguesa, “poucos filmes americanos serão assim tão ‘terroristas’…”. O que Nada, e Carpenter atrás dele, faz é pôr os óculos no espectador e, com isso, começar a treiná-lo perceptivamente para as investidas de uma sociedade do consumo – e do controlo – no seio da qual todo o pensamento se quer domesticável. “Let TV Teach You”, lê-se na revista Golf devidamente escondida no plano que aqui trago. O (contra-)ataque de Carpenter/Nada inclui, portanto, o tecido de mentiras de que também era feito o cinema, sobretudo o cinema americano daqueles “anos Reagan”. Infelizmente, e com o passar do tempo, os óculos entraram (ou voltaram a entrar) nas salas de cinema, mas não para nos porem a ver para lá das evidências hiper-definidas; pelo contrário, apenas para nos oferecerem espectáculos 3D hiperrealistas, que pretendem inebriar – e extenuar – os sentidos, leia-se, inviabilizar o pensamento. Ver mais nem sempre é o mesmo que ver melhor.
Luís Mendonça
Trocar a pala preta pelos óculos escuros. A instituição pela liberdade. O organismo colectivo pelo individualismo. É a escolha (solução) de Nick Fury no final de Captain America: Winter Soldier (Capitão América: O Soldado de Inverno, 2014), em que muitos quiseram encontrar uma recuperação do cinema político norte-americano dos anos 70 (com alguma razão). É uma imagem poderosa, embora se possa defender que a pala se ajusta mais bem à personagem zarolha de Samuel L. Jackson. Aliás, a ela (à pala) voltará nos filmes subsequentes do universo Marvel. No entanto, por momentos, estes óculos escuros cumprem a mesma função dos de They Live (Eles Vivem, 1988) do Luís (e de Carpenter): permitem descobrir uma grande conspiração que põe a humanidade em perigo (em mais do que um sentido), até aí invisível. Não estou no site certo para maldizer as palas, mas já diz a voz do povo que quem não quer ver “usa palas nos olhos”. E, quem quer ver bem, quem quer ver tudo, põe os óculos escuros.
João Lameira
É batota com certeza inverter os óculos da sopa e passá-los a por um plano subjectivo (mais ou menos o mesmo que substituir a batata por xuxú), mas a verdade é que Demme percebeu que o elemento fundamental do cinema de terror (e derivados) é essa coisa da câmara subjectiva; portanto construiu todo um filme em redor dessa coisa que é o olho e esse filme é The Silence of the Lambs (O Silêncio dos Incocentes, 1991). Os campos contra-campos de 180º são-no assim para que vejamos os actores nos olhos, mas mais que isso, para que vejamos pelos seus olhos. É assim que surge o terror, sentir-mo-nos na pele do monstro (e não há cá dimensões de humanidade) e sabermos que somos impotentes nas suas (e logo nossas) atrocidades. Daí que a cena culminante de pavor é aquela em que estando apagadas as luzes passamos a ver Foster pelos óculos de visão nocturna do killer em série, mas mais pavor se acrescenta pelo facto de (por estar escuro) ela não ver o papão (ou seja nós). Nós é que pusemos os óculos, nós é que preferimos ser o Clark Kent ao Super-Homem, ou noutros termos, nós é que preferimos ser o Lloyd em vez do Fairbanks… Nós quisemos ver, nós envergámos o mal.
Ricardo Vieira Lisboa