Leio uma notícia curiosa, um adolescente na Carolina do Norte nos EUA foi criminalizado por produção e posse de pornografia de menores, sendo que o retratado era ele próprio e a posse dessas imagens encontrava-se no seu próprio telemóvel. Confusos? Pois bem, no referido estado a maioridade atinge-se aos 16 anos por isso o rapaz era já considerado adulto, por outro lado, uma emenda constitucional criminaliza as imagens pornográficas de menores de 18 anos. Assim o jovem era simultaneamente o adulto predador e a vítima de assédio. Sirvo-me deste caso estapafúrdio para dar a entender que a organização social pela qual nos regemos não se adaptou ainda à miscigenação entre tecnologia e, por exemplo, sexualidade – e mais que isso, certas ideologias conservadoras olham a entrada da tecnologia no espaço do sexo e das relações como um movimento a inverter. A presença de um aparelho nos nossos bolsos que pode a cada instante captar uma imagem e partilhá-la com uma comunidade é uma revolução na forma de encarar o mundo, e de nos encararmos, portanto também de nos representarmos e de nos apresentarmos aos outros. Os melhores filmes destes três primeiros dias de Queer Lisboa 19 foram precisamente aqueles que souberam lidar e encarar de frente estas questões, a saber, No Place For Fools (2014) do artista russo Oleg Mavromatti na construção de uma personagem a partir dos fragmentos dispersos de um alucinado e psicadélico video-blog pessoal e Spunk (2015) do realizador português António da Silva sobre os fetiches em redor (à frente e atrás) da câmara.
Primeiro dia: carta a um irmão distante
Mas comecemos pelo filme de abertura, tipicamente um objecto mais inocente e mais contido na representação do sexo. Este ano coube a Praia do Futuro (2014) de Karim Aïnouz a abertura do festival, antecipando a sua estreia nas salas portuguesas, e convenhamos que contenção é coisa que não lhe falta, aliás, sobeja-lhe. Aïnouz filma quase sempre com uma distância higiénica todo o drama que põe em cena como que lhe sorvendo os contornos mais comoventes que uma história de irmãos separados, amores turbulentos, imigração forçada e aculturação difícil tipicamente teriam. Essa distância que o leva a sistematicamente filmar a acção de muito longe (os primeiros planos acompanham um par de motociclistas nas dunas filmados como se de formigas se tratassem, ou uma discussão num parque que enquadra o banco de jardim e os protagonistas numa escala semelhante) ou a demorar-se pelos silêncios, pelas sequências sem diálogos, pelas tarefas mudas de limpar um aquário, andar de elevador, viajar de mota, olhar a paisagem. Tudo isto parece deliberadamente um movimento contrário ao cinema-de-favela que durante a década passada pareceu dominar a produção cinematográfica brasileira – movimento esse que se sente por todo o cinema brasileiro recente, um cinema mais próximo de uma classe média instruída, mais lento, menos alegre e menos cartão postal, mais formalista e menos formular. De qualquer forma Karim Aïnouz não é certamente o melhor exemplo dessa “vaga nova” de cineastas brasileiros estando o seu cinema muito mais próximo de um cinema europeu à medida dos festivais, meio oco e ultra atmosférico (não é por acaso que esta é uma co-produção com a Alemanha). Ainda assim ficou comigo uma certa sinceridade no retrato das relações, no desenvolvimento das personagens e na ideia do estrangeiro (certo personagem vindo do Brasil fala de Belim como o “Polo Norte” – e o contraste de cores entre a primeira parte do filme cheia de azuis, amarelos e vermelhos, e as outras duas cinzentas e verdes).
Há a este respeito dois planos que me parecem memoráveis na forma como jogam entre si sentidos e que distam quase a totalidade do filme: o primeiro é aquele que pela primeira vez junta os três personagens principais do filme (irmão mais velho, o seu amante e o irmão mais novo), o segundo dista cronologicamente uma década do primeiro e volta a colocar os três homens no mesmo quadro. O que distingue um do outro é a forma como os três se reorganizam de um para o outro revelando a subtil dramaturgia de Aïnouz. No primeiro temos em extremos opostos o casal e no centro, mas recuado, fica o irmão ainda imberbe montado numa motorizada, no segundo no centro e atrás fica o ex-amante alemão e nos extremos os irmãos que se reencontram e reconstroem seus laços. Ora, no primeiro a presença em segundo plano do irmão estabelece o problema dramático do herói ao evidenciar que a relação dele com um estrangeiro levará ao afastamento da família em particular do benjamim que o olha como figura paternal (ou seja, a mise en scène explicita que entre os elementos do casal há um obstáculo familiar), no segundo, opera-se exactamente o oposto, sendo que é a figura em segundo plano, o ex-amante, que funciona como elo de ligação entre o “fantasma que fala alemão” e “o homem partido ao meio” (como que reparando o corte que a sua presença provocara). São alguns destes momentos de extrema delicadeza que abrem caminho por entre o nevoeiro mastigado da Praia do Futuro.
Segundo dia: dignidade e onanismo sagrado
No Place For Fools é uma pedrada no charco, um falso filme de montagem construído a partir de um vídeo-blog de uma figura (da actual Russia) contraditória: um rapaz obeso, epiléptico, homossexual, fervoroso cristão ortodoxo, activista nacionalista pro-Putin, homofóbico, obcecado por listas, comida, falos e piscadelas de olho, deprimido, solitário, beijoqueiro, utente das alas psiquiátricas do hospital local, filho de mãe alcoólica, consumidor empenhado de centros comerciais e programas das manhãs e tardes televisivas. Oleg Mavromatti baseia-se numa figura real da internet e através do trabalho de “improvisação orientada” com um actor recria assim o personagem e os seus vídeos caseiros onde nos conta a sua vida, as suas crenças, amores, vontades, anseios, receios e tristezas. Este exercício começa por nos interpelar pelo seu lado voyeurista, mas acaba por nos conquistar pela forma como torna redondo o personagem (no pun intended) e mais tarde, ao mostrar-se, qual twist de um filme de terror, que tudo não passou de uma reconstrução revela-se ainda mais marcante na sua afirmação política. Isto é, Mavromatti podia muito bem ter caído na paródia de uma figura ridícula, pelo contrário o que ele faz é o inverso disso e partindo da figura tal qual ela é (com todas as suas contradições, todos os seus extremismos religiosos e ideológicos) organiza os seus testemunhos mais ou menos incoerentes num retrato de personagem do qual é impossível parodiar, dando-nos a ver uma figura dramática, sofrida e desejante de ser olhada sem desdém. O que Mavromatti faz é algo que se é contrário à própria natureza da Internet de onde parte todo o projecto, a saber: dar espaço à dignidade, dar tempo ao olhar, aceitar as diferenças, perceber os outros apesar das suas contradições. Assim a sala de cinema deixa de ser apenas um templo escuro onde nos podemos esconder do mundo, passa a ser um templo onde o ecrã é capaz de acolher os refugiados das redes sociais, os párias dos “don’t like”, dos comentários injuriosos e dos insultos online. O ecrã como espaço para o diferente, isto é, para o queer.
Sobre a mesma questão mas em sentido diferente está o cinema de António da Silva, especialmente aquele que lida com o sexo intermediado pela tecnologia (Internet, apps, roletas, cam&cum shows), nomeadamente Mates (2011) – o seu primeiro filme, Pix (2014) – sobre o qual já tive oportunidade de aqui escrever – e agora Spunk. Este último é de longe o mais extenso dos trabalhos do realizador, com mais de meia hora, assumindo um formato de documentário experimental entre o típico talking head entrecortado por janelas de chat e chamadas de skype, na primeira parte, a que se segue uma segunda parte já tipicamente “DaSilviana” onde vários homens desfrutam dos seus corpos e dos corpos de outros, só de que desta vez tudo é filtrado por uma trip de efeitos digitais com bafos de fogo, raios a saírem dos olhos, espaços construídos digitalmente e esperma reluzente. Há neste filme de António da Silva duas forças muito distintas, uma que se relaciona com a questão da câmara e do que se faz diante dela, a segunda (e verdadeiramente nova) sobre aquilo que se faz com as imagens uma vez captadas assim que estas entram o universo do digital e se permitem distúrbios e adulterações. Como refere a certo momento do filme um dos participantes, “uma pessoa pode esconder-se à frente da câmara”, e como tal a câmara funciona com um mecanismo de distanciamento (abolindo-se assim relações, intimidade, perigos) e ao mesmo tempo de aproximação, já que permite a comunicação e o sexo online com o outro, distante e desconhecido. Por outro lado, a câmara serve também para mostrar ao outros, mas mais intensamente como espelho (a frase de Sarris cinema is a mirror and a window nunca foi tão literal), outro dos participantes explica-nos que ver o seu próprio pénis de uma perspectiva frontal estimula-o mais do que ver os de outros, assim a webcam exibe-se como utensílio de narcissimo sexual e onanismo em rede – e António da Silva parece extremamente consciente de tudo isto. O outro aspecto, trata da digitalização das imagens, imagens de corpos, portanto da digitalização dos corpos, do seu manuseio digital (pun intended) tudo numa ode quasi-religiosa ao sémen como já acontecia em Gingers (2013). Na articulação destes dois aspectos está portanto o epílogo do filme, quando já depois do festival de esporra luminescente os homens começam a espalhar sobre o seu corpo a meita que os cobre e nesse gesto apagam-se do ecrã; o acto de auto-objectificaçao defronte da câmara traduz-se literalmente num “apagamento” digital.
Terceiro dia: as lágrimas e baza skinhead
Se no final de Spunk no dia anterior a sala Manoel de Oliveira se libertava de uma audiência composta exclusivamente de homens, muitos deles abanando-se com leques e papeis (e não era apenas o deficiente condicionamento do ar…), no passado domingo, no final da sessão de Lilting (2014) de Hong Khaou uma audiência já mais equilibrada fungava em conjunto limpando os olhos abrilhantados pela “lágrima furtiva”. O filme esse muito se esforçou por fazer cair essa(s) lágrima(s) com freeframes românticos, monólogos emocionantes, balanço sábio entre humor e drama… Ou seja, aquilo que Aïnouz evitava no seu Praia do Futuro é aqui levado ao ponto de caramelo. Um namorado perdido, um filho perdido, uma perda conjunta, uma barreira linguística e cultural, quatro personagens (uma delas morta) e dois décors. Tudo muito simples, elegante, educado. Mas aqui sente-se a escrita do guião a cada diálogo, sente-se que Khaou procura a emoção do espectador a cada curva, sente-se a caricatura do romance na velhice e a pureza cristalina do amor perdido para acentuar ainda mais o sofrimento dos vivos. Tudo extremado e ao mesmo tempo, tudo controlado; resultado: não ata nem desata. Quanto a Pauline s’arrache (2014) de Emilie Brisavoine também estamos nos extremos, desta feita também um retrato de uma família em modo documental em que a realizadora filmou a sua meia-irmã durante cinco anos com uma (ou várias) câmara(s) de vídeo acompanhando a adolescência de Pauline. Dizia extremos porque já se conhece o carrossel emotivo que é a vida dos adolescentes, assim temos direito a assistir a discussões familiares com insultos, corações partidos, choros, cartas de amor desesperadas, texting e sexting, facebooks e tartes de maçã. Antes do filme a realizadora explicava que talvez para muita gente este filme pudesse estar na fronteira da intimidade familiar mas que para a sua família nada daquilo ultrapassava essa fronteira. Aí se encontra a verdadeira questão, este não é um filme para nós espectadores, é para eles família, um objecto terapêutico para que se observem de fora (como o outro e a sua pila) que nos deixa também quase sempre de fora, porque se lhe sentimos a sinceridade do trato também sentimos que life imitates bad television – e para isso prefiro o Goucha.
Assim pode pensar o caro leitor que o domingo foi um dia de tristes momentos, a verdade é que o foi não tanto pelos filmes mas pelo que aconteceu entre eles. Acabado Pauline e nos três quartos de hora que faltavam para Lilting desejei um gelado. Dirigi-me para o McDonalds mais próximo para provar o novo “Sunday” de pêssego (da Cova da Beira), desci então a Avenida e entrei na sucursal da referida marca da restauração na praça dos Restauradores junto ao Teatro Nacional Dona Maria II. Saio com o meu copo de pasta branca luzidia pintalgada de ranho engrumado cor de laranja e passo, com a colher na boca, por um agregado de pessoas, sem abrigo que se acumulam nas escadas do teatro comendo uma refeição quente que um grupo de voluntários distribui àquela hora. Sinto-me ridículo de ver filmes a tarde toda e comer gelados ultra-processados, humedece-me a vista e continuo, subo a rua comendo a sobremesa, chego-me ao cinema, sento-me na primeira fila como de costume e volto a esquecer-me do mundo naquela história de amores trocados no escuro do cinema. Mas os filmes só têm hora e meia… Não deixo de pensar na futilidade disto tudo, mas, de volta a casa começo a ler o livro que levava na sacola e comprara há dias, Images In Spite of All, a tradução para inglês do longo ensaio de Georges Didi-Huberman sobre as quatro fotografias sacadas ao inferno de Auschwitz e emociono-me. Emociono-me muito mais do que o romantismo repuxado de Hong Khaou e a honestidade televisiva de Emilie Brisavoine, emociono-me ao tomar consciência do horror do Sonderkommando e fica-me na cabeça uma citação de Primo Levi que diz qualquer coisa como “Toda a violência sobre o homem é também uma violência sobre a linguagem” e Huberman explica-me de seguida que a palavra Sonder faz parte da tarefa de alienação que os nazis também trabalharam sobre a própria nomenclatura dos campos (além de obrigarem os detidos ao alemão…) já que significa especial, singular, separado mas também estranho e bizarro – a “comunidade” LGBT sempre soube apropriar-se destes nomes em seu proveito, assumi-los e exibi-los, daí o queer que também significa estranho ou bizarro, mas como se apropriar da própria obliteração? Penso que talvez sirva para alguma coisa ler uns livros, ver uns filmes e escrever. Escrever contra o horror, contra as palavras horríveis, e a favor das ideias novas e quentes. Mas chego ao computador e ao deparar-me com a notícia de que horas antes, no exacto sítio do “Sunday” de pêssego e da sopa dos pobres, houve uma agressão de um sindicalista e mais uns quantos transeuntes por uns cabeças-rapadas que se manifestavam contra os refugiados, não posso deixar de me perguntar o que posso eu escrever contra isso. Nada, não posso escrever nada. Sinto as mãos violadas.