É raro, senão mesmo inédito, ver o mesmo filme exibido duas vezes no mesmo espaço com um intervalo de uma semana em dois festivais de cinema distintos: o MOTELx e o Queer Lisboa. Esse filme chama-se Me Quedo Contigo (2015) de Artemio e passou na secção Serviço de Quarto do festival de cinema de terror de Lisboa e passará de novo no próximo dia 21 às 19:30 no São Jorge na secção Queer Art no festival internacional de cinema queer de Lisboa. Um cruzamento de filmes que infelizmente raramente se traduz num cruzamento de públicos – que, segundo as palavras do director João Ferreira [ler entrevista mais a baixo], interessa à programação do festival pelo seu lado “anarco-feminista”, enquanto para o festival de horror terão sido certamente os elementos de gore e o lado explotation a chamar a atenção. Aproveito pois a deixa e organizo um passeio carnal e por vezes sanguinário pela beira da programação do festival lisboeta, que agora se inicia, pelos seus filmes de género (não necessariamente sobre – identidade de – género…): revenge flic, vampiros, contos de fada, sci-fi, neo-noir, thriller, filme de super-heróis, futuros pós-apocalípticos, magia tradicional, terror cibernético… Um mundo de perversões e inversões dos géneros cinematográficos naquele que é talvez o mais subversivo dos festivais nacionais.
Antes de me lançar então aos destaques quero apenas deixar aqui uma nota sobre o cinema queer de género: quando, a pouco e pouco, se vão universalizando os temas e intentos das demandas LGBT (menos dos I) no cinema mainstream, o cinema queer que sempre viveu na subversão (assim como a própria “comunidade” homossexual – Mário Cesariny queixava-se que depois da revolução já não tinha a mesma piada visitar as casas de banho públicas) procura cada vez mais esse espaço de acção dentro do cinema de género (o cinema de terror e a comédia extravagante, ou claro, o cinema paredes meias com a pornografia). Nesse sentido o trabalho de Bruce LaBruce (que o festival sempre tem acompanhado) sempre se deliciou com o choque dos temas e das formas – Otto, or, Up With Dead People (2008) e L.A. Zombie (2010) brincam com as conotações sexuais/necrófilas dos zombies assim como a sua sempre necessária força política (para Romero era o consumismo, mas desde então os mortos-vivos vêm sendo apropriados por todos os tipos de causas) -, mas também Gregg Araki em tempos recentes se vem interessando pela comédia de ficção científica [Kaboom (2010)] e pelo filme de vampiros [White Bird in a Blizzard (2014)] – como acrescenta João Ferreira, “há muito que existe a representação dessa ‘diferença’ do ser-se gay, associada a uma ideia de ‘monstro'”.
Assim, quando se antecipa uma cerimónia dos Oscars de 2016 repleta de títulos de temática gay, lésbica e trans, não posso deixar de olhar com desconfiança e apreensão a apropriação popular e, acima de tudo, a apropriação capitalista de um cinema que sempre se quis diferente e se honrou dessa diferença (temática, mas também estilística – coisa que não acontece no cinema do papá de muitos estúdios americanos, os filmes de qualidade certinhos e limpinhos). Assim About Ray (2015) e The Danish Girl (2015) sobre as questões da transexualidade soam a tiro certeiro aos galardões para actor principal, assim como Boulevard (2014) no último papel dramático de Robin Williams – para não falar de Stonewall (2015) de Roland Emmerich que já anda causando polémica (pela aparente apropriação económica da história por de trás dos motins de Stonewall – e quem diz económica diz masculina, branca, e normativa). Por outro lado Carol (2015) de Todd Haynes, vencedor do Queer Palm, parece ser também um título a caminhar para a carpete vermelha, mas aí creio que a somatização dos meios de produção não se manifestará de forma tão notória na elegante mão do realizador.
Então começo as dicas de quem não viu mas está confiante nas suas escolhas: vindo de Sitges, o festival de cinema fantástico da Catalunha, temos Amor Eterno (2014) de Marçal Forés que segundo dizem tem ares de Gus Van Sant e Larry Clark mas também de David Lynch, tudo misturado com vampiros [passa dia 21 às 22:00 e dia 23 às 17:15]; também na competição de longas-metragens encontra-se outro título, Black Stone (2015) de Gyeong-Tae Roh vindo da Coreia do Sul, parece mesclar o filme de guerra, o drama do VIH/SIDA entrando no universo de curandeiros, mitologias e pedras voadoras [é exibido uma única vez no dia 25 às 19:30]; e o terceiro destaque desta competição passa por Das Zimmermädchen Lyn (2014) de Ingo Haeb, um drama e um thriller sobre uma empregada de quartos num hotel que consome a vida dos clientes vasculhando os seus pertences e escondendo-se debaixo das suas camas “e o filme de género troca de género” [pode ver-se no último dia do festival, 26, às 17:15].
Mas este ano a secção mais interessante, e que se tornou pela primeira vez competitiva, é o Queer Art. Lá encontram-se Batguano (2014) de Tavinho Teixeira onde num futuro distópico Batman e Robin vivem como casal no Nordeste brasileiro sobrevivendo da sua antiga fama e evitando uma praga provocada pelas fezes dos morcegos que “suspendeu o ocidente” [25 às 23:00], Cancelled Faces (2015) de Lior Shamriz um neo-noir com um homme fatal e um amour fou na Seul dos nossos dias [26 às 19:15], Pauline S’Arrache (2015) de Émilie Brisavoine é um conto de fadas com um rei de saltos altos e princesas rebeldes com interlúdios animados e vídeos de família [20 às 19:30] e Sueñan los Androides (2014) de Ion de Sosa que como o nome indica é um filme se ficção científica, uma adaptação kitsch de O Caçador de Androids de Philip K. Dick passado no ano de 2052 em Benidorm por entre bairros abandonados onde já não vive ninguém (ou onde nunca chegou a viver ninguém… foi a bolha imobiliária em Espanha) [é exibido no dia 20 às 21:30 e no dia 21 às 17:00].
Destaque ainda para os filmes da internet e da forma como esta altera e influi no mundo da relações e do sexo: vindo do festival de Roterdão (assim como alguns dos títulos já citados) temos Videofilia (Y Otros Síndromes Virales) (2015) de Juan Daniel F. Molero que é a minha grande aposta do festival onde um rapaz conhece um traficante de porno amador e entre drogas psicadélicas, sexo cibernético e trips delirantes se confunde o virtual e o real tratando-se a imagem na sua deformação digital: glitches e datamoshing [22 às 21:30 e 23 às 17:00]. Mas outro dos motivos para as quantidades abundantes de saliva é No Place For Fools (2014) de Oleg Mavromatti também vindo de Roterdão, onde o realizador compila uma série de vídeos que um estranho rapaz obeso, homossexual e homofóbico, cristão ortodoxo aguerrido e activista nacionalista pro-Putin, vem publicando no seu blog dando espaço à figura contraditória fora do mundo dos assédios virtuais das caixas de comentário [sessão única no dia 19 às 17:00]. Ainda na relação entre sexo e o mundo digital atenção para Spunk (2015), um dos novos filmes de António da Silva [apresentados no dia 19 às 00:00], um documentário onde se retratam as várias formas de sexo cibernético, entre telemóveis e webcams numa colagem sexual surrealista – o ano passado entrevistei o “perverso” realizador.
Fora deste périplo pessoal pelo cinema das margens, peço atenção para: Baby I Will Make You Sweat (1994) de Birgit Hein o filme que mais me agarra na programação do Queer Focus dedicado à comercialização do sexo e às sexeconomics [25 às 21:30], para o filme de encerramento dedicado à estadia mexicana do gigante realizador russo, Eisenstein in Guanajuato (2015) de Peter Greenaway (ainda que o cineasta inglês me costume causar alguma náusea…) [26 às 22:00], mas também para o crowdpleaser vindo de Sundance, Lilting (2014) de Hong Khaou, que certamente inundará a sala Manoel de Oliveira de lágrimas [nos dias 20 às 22:00 e 22 às 17:15] e por fim 7 Kinds of Wrath (2014) de Christos Voupouras a retratar a crise grega (com arqueólogo, imigrante árabe, banqueiro gay, imigrantes albaneses, polícia e música clássica – very topical) [23 Às 19:30].
Nas curtas e de forma curta posso garantir a sinceridade tocante de Printemps (2014), a segurança dramática de San Cristóbal (2015) e a ousadia hipnótico-sexual de Please Reax Now (2014).
Mas não querendo mais monopolizar este espaço de diálogo e porque me pareceu necessário acrescentar a estes meus pensamentos um outro olhar, lancei electronicamente algumas perguntas ao director do festival João Ferreira sobre estas minhas dúvidas e devaneios sobre o cinema de género e a apropriação mainstream do cinema queer. E ele simpaticamente respondeu, ora leiam.
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Como encara a existência de um filme comum (Me Quedo Contigo de Artemio) entre o Queer Lisboa 2015 e o MOTELx 2015?
João Ferreira – Como qualquer festival, nós procuramos que a nossa programação seja feita quase exclusivamente de estreias nacionais. Mas já temos aberto exceções no passado, com filmes coincidentes com a programação do Curtas de Vila do Conde ou do IndieLisboa, por exemplo. No caso do Me Quedo Contigo, seleccionámos esse título em Roterdão e na altura ficou claro para nós que este seria um filme importante para definir a linha de programação da nova competição do Queer Art. Não desistimos de o programar mesmo sabendo da sua seleção para o MOTELx até porque no caso deste filme parece-me interessante as duas perspetivas que os dois diferentes festivais podem oferecer sobre ele. A nós interessa-nos sobretudo o lado anarco-feminista, de girl power e a sua subversão de estereótipos de género. E acredito também que haverá um público muito diferente dos dois festivais para o filme.
Crê que a acentuada presença de filmes de género (vampiros, sci-fi, super-heróis, magia tradicional, thriller…) na edição do festival deste ano se deve a um desvio de produção dos cineastas queer para o cinema das margens?
J.F. – As estéticas e as narrativas mais interessantes do Cinema Queer nasceram das margens. Se olharmos a história do cinema, o elemento queer está presente nos filmes de género. Basta pensar no Bride of Frankenstein (A Noiva de Frankenstein, 1935) de James Whale, The Rope (A Corda, 1948) de Alfred Hitchcock ou Red River (Rio Vermelho, 1948) de Howard Hawks. Isto, ao passo em que paralelamente o Cinema Queer foi desenvolvendo uma linguagem muito própria, com filmes como Fireworks (1947) de Kenneth Anger ou Flaming Creatures (1963) de Jack Smith. Claro que quando olhamos as décadas recentes do Cinema Queer, particularmente as produções comerciais e politizadas da passagem da década de oitenta a noventa (pré-New Queer Cinema) ou às representações de narrativas queer no cinema mainstream, tendemos a esquecer este legado importante. Assim, voltando à pergunta, vejo esse interesse pelo filme de género como uma evolução natural, iniciada pelo movimento do New Queer Cinema, nesse cruzamento de uma estética e de uma política queer, com a própria história do cinema. É também, por outro lado, a consequência normal de uma tendência do Cinema Queer, em termos temáticos, a não se restringir às problemáticas específicas dos indivíduos e comunidades queer, mas a pensar esses indivíduos e comunidades na sua relação com o mundo. E a exploração das diferentes potencialidades imagéticas, narrativas e simbólicas do filme de género é um veículo perfeito para tal.
O que acha que motiva que vários realizadores tenham optado por fazer cinema queer “fantástico” em tempos recentes (LaBruce, Araki…)?
J.F. – Há muito que existe a representação dessa “diferença” do ser-se gay, associada a uma ideia de “monstro”, de um ser que não é daqui. Embora isso tenha sido muito explorado no passado de forma a denegrir personagens LGBT, representando-as negativamente, o que realizadores como LaBruce ou Araki fizeram foi de certa forma apropriarem-se do potencial simbólico e “mais que humano” do fantástico, oferecendo novas leituras sobre as suas histórias e personagens. O New Queer Cinema, se virmos bem, assenta todo ele numa premissa de reapropriação do que foi politicamente lido nos anos oitenta, como representações erradas e lesivas de gays e lésbicas, não apenas no cinema, mas nas outras artes e na própria cultura popular. A subversão inerente ao trabalho de realizadores como Araki ou LaBruce, aos quais podemos acrescentar os primeiros Todd Haynes ou Van Sant, foi o de não ter negado esse legado, antes celebrando-o e procurando representações alternativas às mesmas.
Cada vez se encontram mais filmes mainstream de temática LGBT. Que consequências lhe parece que tal tendência possa ter na figuração de pessoas LGBT no cinema? E nas forma do cinema queer?
J.F. – Embora o cinema mainstream tenha tendência para uma caracterização muito plana ou até estereotipada de personagens LGBT e das histórias que conta, não acho de forma nenhuma negativa a projeção que esses filmes têm. Nem que seja por um fator mais político e social, de dar a conhecer realidades que muitas pessoas desconhecem. Não me parece que esse cinema mainstream tenha grandes consequências, quer na imagem que passa de pessoas LGBT, e menos ainda no Cinema Queer. Com a larga circulação que o Cinema Queer tem hoje – mesmo as suas expressões mais marginais -, não apenas em sala, mas nos muitos outros suportes audiovisuais, acrescentando-se a isto a facilidade de circulação de informação, o cinema perdeu em muito essa capacidade de oferecer uma leitura unívoca sobre uma determinada realidade. Qualquer pessoa tem hoje acesso, não apenas à realidade (mais ou menos filtrada) como às mais diversas leituras e representações de realidades queer. Por outro lado, o Cinema Queer tem hoje um percurso e alicerces sólidos que lhe permitem de certo modo seguir o seu rumo, independentemente das contingências (económicas, narrativas), do cinema comercial.
É inevitável aqui pensar num filme como Brokeback Mountain (O Segredo de Brokeback Mountain, 2005), de Ang Lee. Acho que esse filme foi importante para quebrar preconceitos e barreiras a uma larga escala, mas se o analisarmos de forma mais fria, ele repete todos os códigos de censura externa e interna das produções da idade de ouro de Hollywood. De uma perspetiva queer, o Ice Storm (Tempestade de Gelo, 1997), também do Ang Lee, apesar de não ter nenhuma história de amor LGBT, é um filme muito mais interessante e subversivo, no modo como aborda a sexualidade.
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