Do cinema de terror ao romantismo nórdico, do experimentalismo à antiga ao experimentalismo digital, dos engates furtivos à amputação de mamilos, dos homens de negócios com cabeça de cavalo aos nyan cats de passagem, das faldas às fraldas, do crusing ao cursing, das lentas rapidinhas às longas hiperbólicas, dos manifestos às manifestações (espirituais): de tudo isto foram feitos os dias do meio na minha cobertura do Queer Lisboa 19 (cujos textos anteriores constam aqui).
Quarto dia: misandria furtiva e objectividade romântica
Segunda-feira foi o dia das propostas de género (e das suas inversões) como já tinha antecipado no primeiro texto desta cobertura, isto é, Me quedo contigo (2015) de Artemio e Amor Eterno (2014) de Marçal Forés são filmes que têm feito a sua carreira entre festivais de terror e fantasia e festivais de temática LGBT; o primeiro, um filme paredes meias com o explotation em que o típico home-invasion-rape-film vê os géneros e as forças de poder entre homens e mulheres invertidas, o segundo também um filme sobre a inversão entre dominador e dominado entretecido pela atmosfera de teen-horror-movie e o filme (erótico) de vampiros. É curioso emparelhar os dois já que de facto ambos lidam com o mesmo tema subterrâneo, a saber, a pujança violenta daquele que é tido como estranho, fraco ou menor. Se para Artemio essa figura é a mulher de classe média que por uma vez deixa de dar importância à roupa que leva para a discoteca e à maquilhagem que coloca no rosto (e aos papos e demais coisas flácidas) e liberta toda a raiva acumulada sobre o primeiro arquétipo que encontra do machão de bigode e revolver no bolso, chapéu de vaqueiro e camisa aberta, o filme de Forés trata do enfezado adolescente de poucas palavras e muita timidez que se revela mortal perante o professor e amante mais velho – sedutor e seduzido são papeis que se confundem e o twink é que dá tau-tau no daddy. Além desse aspecto são ambos filmes que exibem orgulhosamente os seus mecanismos, por exemplo, ambos se iniciam com o ditame “acção!” e ambos trabalham o filme dentro do filme, ou melhor, o filme que já viu muitos filmes, que sabe que percorre caminhos já explorados e ainda assim atreve-se (com sucesso nos dois casos) a insuflar algo de novo no(s) género(s).
Mas deixem-me demorar um pouco mais sobre cada um. Me quedo contigo é o trabalho de um artista plástico mexicano criador de várias vídeo-instalações que pela primeira vez se dedica ao cinema com um filme de parco orçamento financiado com apoios de um colectivo de outros artistas, como tal Artemio publicou um pequeno manifesto (à la dogma) onde explica que “quiero establecer mis propias reglas para después romperlas”. Assim sendo as regras incluem: a equipa de filmagem será tão pequena quanto possível, não existirá director de arte nem de guarda-roupa, o filme será montado à medida que seja filmado e o montador será também o anotador, não se produzirá música original e toda a música terá que estar incluída na acção, os actores não sairão nunca de personagem, a rodagem seguirá um ordem cronológica, NÃO SE FILMARÃO PLANOS SUBJECTIVOS – assim, com maiúsculas e tudo. Por este motivo Artemio tende a filmar os personagens de corpo inteiro (salvo erro há apenas um grande plano em todo o filme), e quando filme um conjunto deles todos tendem a estar presentes no quadro (de onde podem ou não sair) – a este respeito a estratégia utilizada para resolver os diálogos entre vários personagens que falam em simultâneo a uma distância que reduz a percepção das suas falas é o preenchimento do ecrã com múltiplas legendas cada uma com sua cor para identificar cada um dos personagens (a que se acrescentam as legendas em inglês sobrepostas e a legendagem digital em português, um festival de texto delirante). Deste modo, e especialmente com a última regra, desconfia-se de que modo se pode então criar um filme de terror, violento e incómodo – ainda para mais com momentos de videoclip, um plano ao ralenti, presenças surrealistas de Artemio como homem de negócios com cabeça de cavalo, e lutas de leoas à beira da piscina. A questão está exactamente no facto de este não ser um filme de terror (onde a violência é infligida no espectador através de processos de identificação com os personagens), mas um filme sobre a violência tout court – objectivamente pois claro. Portanto, se a premissa é em tudo semelhante a Death Game (1977) – que curiosamente “regressa” em breve às salas como Knock Knock (2015, Knock Knock – Tentações Perigosas) de Eli Roth, leia-se a cobertura do MOTELx por Luís Mendonça -, forma e intenção são em tudo distintas.
Quanto a Amor Eterno, também poderíamos dizer sem esforço que pede emprestado muito do que é o “tema” do recente L’inconnu du lac (O Desconhecido do Lago, 2013) de Alain Guiraudie, já que também gira em torno de um local de crusing – entre arbustos, punhetas e papeis espalhados pelo chão – e onde o desejo de caçar a presa torna o predador em refeição. O realizador Marçal Forés prontamente se quis distanciar desse filme afirmando que o seu trabalho está “lejos del esteticismo paradisíaco de la peli de Guiraudie, nosotros nos adentramos más en las tinieblas del amor adolescente”, e tem razão. Amor Eterno é um filme escuro, denso, cheio de elipses, não falados, encontros furtivos, como se entre a tela e o espectador também se estabelecesse um engate de olhares rápidos – aliás, o realizador já fora autor de uma série fotográfica premiada em 2012 sobre espaços de crusing gay que já demonstrava essa subjectivação da câmara no jogo do engate. É portanto uma longa metragem bastante curta (68 minutos, mais um minuto e seria curioso o número…) como uma rapidinha e tudo no filme parece reproduzir (entre o símbolo e a literalidade) a própria ideia de engate e dos encontros no bosque, traduzindo carnivoramente a possessão inevitável do amante pelo amado – como sempre aconteceu com o conde Drácula e camaradas. Um dia feito de filmes que se afastam e complementam.
Quinto dia: Queer dilatado e o desenlace da indumentária
Este ano o Queer Lisboa parece desejoso de estabelecer um novo critério de programação onde a ideia de cinema queer se esbate e alarga a filmes que não representam de forma alguma personagens (reais ou fictícias) lésbicas, gays, bissexuais, transgénero. Daí que filmes como o já referido Me quedo contigo (2015) e Videofilia (y otros síndromes virales) (2015) de Juan Daniel F. Molero – de que falarei no próximo dia – não são definitivamente enquadráveis numa temática LGBT mas encontram facilmente o seu espaço num festival queer. Esta noção de queer cinema como um espaço onde a subversão passa não necessariamente pelas políticas de visibilidade de pessoas LGBT mas por uma subversão formal e estética que nada tem que ver com representação foi uma das ideias propostas e defendidas no workshop menistrado por Marc Siegel – e sobre o qual me demorarei mais em altura própria. De qualquer forma há outro título a que não posso fugir e que nem por acaso encaixa perfeitamente nesta categoria queer mais abrangente, a saber, uma pequena curta metragem experimental de seis minutos de nome Callas Reloaded (2014) de Fred Morin – que pode ser vista na página do artista no Vimeo – onde o artista trabalha sobre o material de arquivo que conserva o espectáculo dado pela cantora lírica em 1964 no Covent Garden mas de onde tudo o que é musical foi expurgado restando por isso apenas os momentos de silêncio, os gestos, os sorrisos, as mãos que se entrelaçam ou ajeitam o vestido. A tudo isto se acrescenta um trabalho com o som onde os aplausos do público são como que estendidos à duração total do filme, renovando-se a cada um desses trejeitos de mãos, olhos e boca. Há pois duas belas intenções neste filme, por um lado a construção do mito de Diva (palavra cara ao queer cinema) através deste delírio colectivo em que pelo simples sorrir toda uma plateia se levanta em júbilo, ou num abrir de olhos se rebentam aplausos como nunca se ouviu. Uma mulher que pelo simples facto de existir é motivo de frenética alegria, como se já não existisse de facto mulher apenas um ícone a adorar, uma representação de ideias, ideais, posturas e composturas cristalizadas no corpo e na pessoa quimérica de Maria Callas. Por outro lado, e paradoxalmente, há no exercício uma espécie de devolução pelo cinema daquele que é o maior agradecimento para qualquer artista de palco, as palmas. Assim, pela edição de vídeo que alarga os aplausos ao limite Fred Morin executa um gesto de profunda ternura e consideração: ao estender as imagens está a permitir que um momento feliz e tão simbólico como aquele, se estenda também, e num processo de edição de vídeo cria-se a possibilidade de estender indefinidamente os minutos de alegria como se, em teoria na mesa de montagem, se pudesse evitar a chegada do tempo, da decadência e da morte.
Quanto à longa deste dia, La Visita (2014) de Mauricio López Fernández também se baseou numa curta metragem, do próprio, de 2010 que agora – como tantas vezes acontece com as estreias nos filmes longos – vira filme de hora e meia. O trabalho de alargar uma curta implica quase sempre o acrescentar de acção ou personagens, neste caso o segundo. O regresso a casa de uma mulher transgénero a propósito do funeral do pai passa do encontro quase silencioso entre filha e mãe na curta para o encontro entre mulher e família. A casa vira casarão onde a mãe trabalha como caseira e assim entre patrões e seus filhos e amigos, colegas de trabalho da mãe e mais umas quantas personagens o filme enche-se de figuras meio à deriva nos dias entre a morte e o enterro do pai. O mais belo neste filme Chileno é como tudo é deixado por dizer no que refere à conversão de Elena, mas onde tudo parece não se esquecer dessa mudança. O realizador uma e outra vez filma-a através de janelas, cortinas, vidros, objectos translúcidos como se ela estivesse constantemente a ser olhada, pelos outros mas também pela casa – há uma componente de estranheza e medo no espaço veiculado pela figura mais cativante do filme, um menino de tenra idade, piolhos no coro cabeludo e um desejo amedrontado de explorar os quartos e corredores daquele edifício – por outro lado a forma como trabalha narrativamente a “disputa” entre identidade de género e a sua expressão na escolha da indumentária de Elena é particularmente inteligente, aliás, esse motivo transforma-se na chave dramática do filme e permite o desenlace (feliz).
Sexto dia: fábrica de açúcar e Furby psicótico
Aproveito a tarde livre e recorro à videoteca do festival para recuperar um filme da competição de longas metragens de ficção que deixei passar no fim-de-semana, Limbo (2014) de Anna Sofie Hartmann. Faço-o por dois motivos: primeiro, foi-me aconselhado por alguém cujo gosto aprecio e confio, segundo, descubro que foi nomeado no início desta semana para os prémios europeus de melhor longa metragem de estreia [juntamente com Ich seh Ich seh (Goodnight Mommy, 2014) exibido no último IndieLisboa, Mustang (2015) a ser exibido na próxima Festa do Cinema Francês – ambos candidatos pela Austria e pela França ao Oscar de melhor filme estrangeiro, respectivamente – e o já estreado nas salas portuguesas Slow West (2015)]. Limbo é um filme que faz jus ao nome que carrega, segundo o dicionário Priberam a significação informal de limbo é “lugar onde se lançam coisas de que não se faz caso, estado de indefinição ou incerteza”, nada podia ser mais certo nesta história de amores lançados à indiferença, de desejos que se cruzam tarde de mais, de caminhos que tomam direcções divergentes; uma história de não-amores entre uma aluna e uma professora de expressão dramática que não passa de uma confissão, um conversa ríspida e uma série de olhares lançados no limbo. Assim Amor Eterno e Limbo abordam personagens e circunstâncias próximas mas não se podia estar mais longe de uma proximidade em todos os outros campos: onde o primeiro é um filme do amor físico e da carnalidade do sexo, o segundo trabalho no universo do amor romântico altamente teorizado e frio (longas discussões sobre o valor artístico da pornografia, sobre as questões de género, uma encenação tosca de Antígona – tudo muito cerebral, muito contido, anti-emocional quase). A surpresa de Limbo passa necessariamente pela forma como paralelamente (ou transversalmente – este será o termo que sumariza o filme, as relações transversais, os encontros diagonais, pessoas que se podiam amar e acabam por nunca se voltar a ver…) nos vai sendo introduzido o complexo fabril da produção de açúcar, os processos industriais que convertem as batatas entregues às toneladas em xaropes mais ou menos densos. Uma componente documental inesperada que (quase) não tem valor narrativo em sentido estrito mas que de certo modo traduz essa maquinação do amor pela industrialização do doce: um filme feito de romantismos ultra-pasteurizados – love is sweet.
Mas a verdadeira surpresa não pode deixar de ser o filme de Juan Daniel F. Molero, Videofilia (y otros síndromes virales). Há neste filme uma força multi-tentacular que necessariamente nos agarra em todas as direcções, força que o realizador, programador, curador e crítico de 27 anos parece partilhar. Essa força passa então pela sensação de estarmos a ver um filme que quer ser do seu tempo sem por outro lado estar agarrado aos dias de hoje, isto é, um filme que partilha as preocupações da geração dos millennials somatizando essas preocupações nas opções formais e narrativas do filme: somos introduzidos apenas a uma narrativa minimal de uma casal que se conhece numa dessas roletas de sexo online e que passa esse encontro para a fisicalidade do real (sem que tal encontro não se faça também através de ecrãs e barreiras tecnológicas, em particular uns óculos com câmara incorporada que servirão para a produção de um porno caseiro – sonho profissional e fantasia sexual dele, tornar-se produtor de pornografia gonzo vidrada pelas possibilidades das pequeníssimas câmaras ocultas digitais). Se esse parece ser o frágil veio narrativo que podemos seguir (a que se junta um retrato de uma geração na pós-moderna Lima) o que realmente me espanta é a intromissão das glitchs e dos bugs do digital na própria imagem do filme, não só porque grande parte das filmagens se faz com recurso a telemóveis, ecrãs de computador, câmaras amadoras manuseadas pelos protagonistas, vídeos porno caseiros e demais utensílios digitais, a própria imagem do filme sofre perturbações que mimetizam os efeitos de um streaming com pouca fraca ligação à rede, ou uma placa gráfica inadequada à qualidade do ficheiro (ou ainda um torrent interrompido/coito corrompido). Essas imagens que se transam (do verbo transir mas também podia ser do brasileiro transar, isto é, que se repassam e interpenetram) em efeitos hipnóticos numa estética trash a que se acrescentam vídeos do youtube, gifs animados, felpudos Furbys de olhos vermelhos e poderes psíquicos, referência sucessivas a mangas e animes japoneses, teorias da conspiração, exorcismos com porquinhos da Índia estripados e selfies homicidas, como dizia, todas estas imagens formam um filme-colagem (demasiado old-school) ou um filme-ensaio que mais do que pensar o presente o absorve e processa como se o próprio acto de pensar o presente só fosse possível através de um mergulho de cabeça na sua fragmentação: Videophilia é pois o resultado desse mergulho, onde o afogamento leva ao intumescimento post-mortem e desse priapismo brota uma mórbida criação sem pai, um aborto experimental no qual todos nos identificamos.