Strangers on a Train (O Desconhecido do Norte-Expresso, 1951) começa com uma proposta irrecusável, quer para o espectador, quer para o par de personagens centrais do filme. E se um estranho lhe dissesse que tinha descoberto o crime perfeito, uma forma de cometer um homicídio sem algo que o incriminasse, como reagiria? O crime consistiria numa troca entre duas pessoas, em que cada uma definia uma pessoa a eliminar, e depois assassinava a vítima escolhida pelo outro – dada a ausência de motivo, cada um escaparia assim ileso às consequências do delito. Se esta intrigante premissa ameaça tornar o filme demasiado dependente das viragens e reviravoltas do argumento, a forma como Alfred Hitchcock decide abordar visualmente esta história acaba por tornar-se no maior ponto de interesse.
No fundo, é como se o estilo fosse aqui mais interessante que as próprias linhas turvas do argumento, e as escolhas de Hitchcock materializam o filtro de interesses próprios que este aplica à história. Sugerindo para o espectador que o próprio Hitchcock é uma personagem autónoma dentro do filme, este intromete-se entre a visão do espectador e a acção do filme – o habitual cameo de Hitchcock, logo no início, ganha assim maior significância simbólica. Repare-se desde logo na forma como a primeira sequência revela-nos o contacto inicial entre as duas personagens envolvidas no crime em potência. Entre partidas e chegadas numa estação de comboio, a câmara acompanha de perto dois pares de sapatos em separado, exuberantemente antagónicos, que vão movimentando-se até se encontrarem, quando os seus donos se sentam em frente um do outro e os seus pés tocam-se acidentalmente. É só nesta altura que Hitchcock revela os actores – uma provocação habitual em adiar a revelação – e já antes de falarem, metade das apresentações estão feitas.
Esta é a representação simbólica encontrada por Hitchcock para sublinhar o carácter fortuito deste encontro, entre dois estranhos que cruzam caminhos, e que terá ramificações imprevistas
Esta é a representação simbólica encontrada por Hitchcock para sublinhar o carácter fortuito deste encontro, entre dois estranhos que cruzam caminhos, e que terá ramificações imprevistas. De um lado Guy, um jovem elegante, discreto e entregue ao seu livro, e do outro Bruno, identificado pelo nome na gravata, um jovem de roupas (e sapatos) vistosas, falador extrovertido. A celebridade de Guy, reconhecido como um famoso jogador de ténis, é logo desmascarada por Buno, e desde logo colocado em inferioridade perante a aproximação deste, que afirma-se como seu fã, e conhecedor de detalhes da sua vida íntima publicados em jornais. Bruno insinua que Guy ficaria melhor se a sua mulher, que demora a conceder-lhe um divórcio, desaparecesse, e revela que ele próprio gostaria que o seu pai tivesse destino igual. A proposta de Bruno fica marcada pela tensão homoerótica deste encontro casual entre dois estranhos, e será a rejeição por parte de Guy desta aproximação que irá motivar Bruno no decorrer do filme.
Bruno é um dos melhores vilões de Hitchcock, um familiar distante de Norman Bates de Psycho (Psico, 1960), mas com melhores capacidades sociais, dissimuladamente afável, mas que encontra no homicídio a manifestação para uma sexualidade reprimida – não é por acaso que vive (também) com uma mãe protectora. Se Bruno é um diletante da alta sociedade que vê no seu pai um obstáculo à sua afirmação individual, Guy é alguém admirado pelos seus pares, mas que não consegue resolver a sua vida amorosa. Numa das cenas iniciais Guy desloca-se ao local de trabalho da sua esposa, Miriam, de quem está separado, para assinarem os papéis de divórcio. Quanda esta recusa-se, Guy reage mal, ameaçando-a à frente de várias testemunhas, na única vez que se deixa controlar pelas suas emoções. Enquanto que vemos um Bruno calculador a manipular encontros sociais para aproximar-se de Guy, numa manifestação de inveja masculina, Guy revela-se como um homem normal (a começar pelo nome), genérico, colocado numa situação invulgar, e portanto, alvo de identificação para o espectador.
Compare-se a velocidade destas cenas de exposição da história, com o tempo dedicado à cena do homicídio, peça central do filme, que se desenrola a um ritmo lento, quase em tempo real, que alonga a tensão da cena. Sem diálogos a acompanhar, Bruno segue Miriam numa visita a uma feira popular com dois amigos. Observando-a a uma distância que se vai rapidamente encurtando, Bruno cola-se a Miriam como um stalker que não tem consciência que foi descoberto – mas Miriam devolve os olhares, intrigada, numa sequência mirabolante. Numa diversidade de artifícios, como jogos de sombras e alternâncias no campo de profundidade, que potenciam o suspense, Hitchcock transforma o material – uma sequência quase inacreditável – através da manipulação das expectativas e empatias do espectador, criando uma cena fantasmagórica. Quando finalmente Bruno aplica o golpe fatal, Hitchcock aplica o seu próprio golpe, ao filmar o assassinato através do reflexo dos óculos de Miriam, caídos no chão.
Na famosa conversa de Truffaut com Hitchcock, o francês apresenta Strangers on a Train como um exemplo do cinema de autor. Truffaut afirma que esta história filmada por outro realizador seria apenas um filme banal, que este filme nas mãos de outro cederia ao argumento errático, e que é nas opções de Hitchcock, na sua “marca” visual, que o filme ganha interesse – esta cena do homicídio é um exemplo perfeito disso, mas existem outras que se destacam. Depois de Bruno perceber que Guy não vai cumprir com a sua parte do acordo – que existe apenas na cabeça de Bruno – este ameaça regressar ao local do crime para deixar um isqueiro com as iniciais de Guy, o macguffin do filme, para o incriminar. Guy, que já se tornara suspeito do homicídio de Miriam, terá que iludir a vigilância da polícia, de modo a interceptar Bruno. Só que para não levantar suspeitas, Guy terá que terminar um jogo de ténis, que é filmado de forma vertiginosa, onde os planos se sucedem a um ritmo frenético, num crescente de planos dos rostos dos jogadores, onde cada ponto ganha contornos de situação de vida ou morte. Nesta sequência há um plano inesquecível, quando Hitchcock filma os espectadores do jogo, um mar de pessoas que seguem a bola virando a cabeça ora para um lado, ora para o outro, excepto um espectador, que no centro do enquadramento, olha fixamente para Guy – é Bruno, e o efeito é inquietante. Quando Bruno abandona o jogo para regressar ao local do crime, Hitchcock alterna entre as suas atribulações e as dificuldades de Guy em terminar o jogo e iludir a polícia, como se tratasse de uma corrida a contra-relógio entre os dois: o espectador acaba perversamente a torcer ao mesmo tempo pelo sucesso de ambos.
É uma manipulação também do tempo, que resulta num confronto final inevitável entre os dois protagonistas, como se tratasse de um comboio em rota de colisão, onde as linhas de cada um voltam a cruzar-se, como no início. O culminar da perseguição num carrossel é um espelho apropriado do comportamento psicótico de Bruno, uma imagem do seu descontrolo mental, imitado também pelo exagero estilístico do próprio filme. O interessante aqui é que Hitchcock acha o vilão mais interessante, e acaba por influenciar o espectador, para pelo menos durante uma parte do tempo, simpatizar com este, ao mesmo tempo que dilui a fronteira moral entre os dois antagonistas – sempre com a promessa de uma resolução eticamente aceitável no fundo. Afinal, este jogo entre as duas personagens é também um jogo entre o espectador e Hitchcock.
Strangers on a Train de Alfred Hitchcock será exibido dia 18 de Setembro, pelas 21h45, no Auditório do Museu Municipal de Caminha, numa sessão promovida pelo Cineclube Locus Cinemae