Olhando The Man from U.N.C.L.E. (O Agente da U.N.C.L.E., 2015), além do acumulação de músicas pop, do desfile de roupas e acessórios Primavera-Verão e das investidas quase abstractas em sequências de acção em múltiplos splitscreens sem aparente reflexo (nem reflexão) narrativo há um aspecto sobre o qual convém ponderar: pode o cinema contemporâneo viver nos enleios perversos do código Hays, quando este já não existe, sem cair no pastiche oco? Ponho a pergunta porque a actualização da série homónima que correu as ondas hertzianas durante quatro anos da década de 1960 que Guy Ritchie agora opera preserva o tempo e a tensão EUA/URSS num filme de época, optando por actualizar, isso sim, e em tom jocoso, as contracurvas que realizadores e argumentistas davam nos seus filmes para insinuar a (homos)sexualidade dos seus protagonistas. Hoje, quando não há códigos desses, pergunto-me se fará sentido a insinuação constante – sempre tão evidente e sempre tão chica-esperta – por oposição a uma saída do armário efectiva dos protagonistas. O código de produção passou a código do mercado…
Se se tomar atenção às estreia dos filmes comerciais dos últimos meses não é difícil encontrar uma série de perfeitas e até mesmo extravagantes formulações deliciosamente complexas e perdidas/escondidas entre os convulsões dos argumentos: Furious 7 (Velocidade Furiosa 7, 2015) onde se torna matéria narrativa a fúria capitalista que nega o fim das coisas e da própria vida, através da sua eterna substituição num mundo digital onde tudo é passível de ser copy e paste; Terminator Genisys (Exterminador: Genisys, 2015), o sonho molhado de qualquer cinéfilo-psicanalista onde avó mata neto a fim de eliminar o fruto impuro da sua filha adoptiva e assim aceitar o genro e pai-a-ser tornando legítima a relação dos dois (tudo com viagens no tempo à mistura, claro); Mission: Impossible – Rogue Nation (Missão Impossível: Nação Secreta, 2015) que trabalha a dois níveis: por um lado uma brilhante parábola sobre a terceira via das crises financeiras (portanto nem o IMF – que no filme passa por Impossible Missions Force mas que na verdade pretende ser o nosso querido Fundo Monetário Internacional – nem o governo que, de um lado e do outro, entalam o pobre do Tom-Mexilhão-Cruise); por outro, uma ode ao cinema clássico americano dos anos 1940 pela presença de uma sósia de Ingrid Bergman (Rebecca Ferguson), uma visita a Casablanca e uma série de pequena e subtis insinuações sexuais sobre a inversão de papéis entre Ferguson e Cruise.
Em The Man from U.N.C.L.E. toda a sabotagem ideológica é de pechisbeque e toda a subversão não passa de fancaria rasca com a mania que é pedra valiosa
Isto para dizer que nos filmes mais populares e mais comerciais que se têm estreado na nossas salas, os subtextos, os não ditos e os torneados sobre o Novo Código são uma presença inegável. Isto é, a necessidade de enveredar pelas ditas contracurvas do argumento clássico mantém-se quando o desejo é romper com a “narrativa” dominante – especialmente quando se embarca proactivamente nessa mesma “narrativa” – como é o caso dos títulos referidos, todos a custarem largos milhões (e portanto mais evidentes ainda são os seus desvios).
The Man from U.N.C.L.E. não faz nada disso, toda a sabotagem ideológica é de pechisbeque, toda a subversão não passa de fancaria rasca com a mania que é pedra valiosa. Assim os jogos de palavras que põem Armie Hammer on top e Henry Cavill on bottom, ou os vários encontros em casas de banho onde o chefe lhes vais dar algo que será difícil de engolir (e a que se seque uma luta que rebenta todo os glory holes do sítio), ou ainda o take it like a pussy que não é a Russian way, tudo isso tem graça mas peca por ser engraçadinho, por as piadas estarem todas escarrapachadas, por tudo ser liminar, sem subs à vista. Pensar o que teria sido se o projecto tivesse ido para a frente com Steven Soderbergh e protagonizado por Channing Tatum e Michael Fassbender (como chegou a estar definido) é um exercício desaconselhável para corações frágeis [que ainda recordam a poesia seca de Haywire (Uma Traição Fatal, 2011)].
Há no entanto um desses momentos de desvio que me perece menos mastigado: já mais para o fim Hammer é encarregado de recuperar um disco de memória que contém informações vitais para um mais fácil enriquecimento de urânio, que está na posse de Cavill; o encontro dá-se quando o duo já salvou a vida um do outro em diferentes ocasiões e onde o bonding está já rijo; assim a cena acontece quando os dois se juntam para um copo de celebração onde um se serve de uma bebida enquanto o outro prepara a mala de viagem, a conversa dá-se toda neste moldes, um de pé sacando a arma com que pretende matar o outro e o outro dobrado para a frente e de costas para o primeiro recolhendo a sua arma da dita mala (ou seja, e para os mais desatentos, a cena constrói-se como uma foda à canzana – onde a câmara nunca se coíbe de dar grandes planos do volume traseiro de Cavill – o Super-Homem dos nossos dias). Este momento, além de ser já coisa recorrente e com conotações bastantes exploradas [penso em Once Upon a Honeymoon (Lua Sem Mel, 1942) de Leo McCarey e em Search for Beauty (Campeões Olímpicos, 1934) de Erle C. Kenton] não deixa de deixar as devidas reverberações já que em The Man from U.N.C.L.E. os melhores momentos são de facto à canzana, que em termos cinematográficos se traduz por profundidade de campo; vários são os gags que (re)correm desse modo: um homem que frita na cadeira eléctrica enquanto em primeiro plano se discute o que fazer dele, um moça que dança enquanto se joga xadrez, uma perseguição de barco que acontece enquanto o comparsa se delicia com um bom vinho e uma boa sandes caprese. Mas sinceramente, entre o bum-bum do James Stewart e o de Henry Cavill, eu prefiro o primeiro.