Se não me falha a memória já lá vão quase dois anos desde que estreou em Portugal um grande filme iraniano: a família sob o bisturi de Asghar Farhadi em Le passé (O Passado, 2013). Entretanto, já este ano, o Indie pôs em competição o equívoco hitchcockiano Melbourne (2014) de Nima Javidi e Jafar Pahani andou de Taxi a mostrar e a reencenar a clausura criativa que vive no seu país. Se Pahani ainda faz filmes sobre a impossibilidade de os fazer como quer no Irão, já o conterrâneo Moshsen, líder do clã Makhmalbaf, há 10 anos que saiu do país e há 10 anos que faz filmes em países distintos. Filmado na Georgia, este seu último filme dificilmente poderá ser qualificado como cinema iraniano. Contudo, tem ainda com o filme de Pahani outra semelhança. Falo da tentação do filme-bandeira, aquele que procura falar ao mundo das suas angústias e mensagens antes de decidir o que contar e em que parte colocar a câmara e seus actores. Dito isto, fica claro que em The President (O Presidente, 2014) – que Makhmalbaf escreveu juntamente com a mulher (é tentador partir daqui para justificar uma certa familiaridade mole de todo o filme) – tem como omnipresente cenoura à frente do cavalo (que é o argumento) a moralidade da fábula: quão humanos podem ser os ditadores?; quão desumanas podem ser as vítimas desses mesmos ditadores?
Talvez valha a pena ainda insistir nesta questão de que pais-países nasce o filme (os países creditados são, além da referida Geórgia, a França, o Reino Unido e a Alemanha). Este parentesco europeu permite a Makhmalbaf generalizar o diagnóstico – a história passa-se “in an unknown country” – e pôr em movimento a ilustração do que seria a queda de uma ditadura na sequência, por exemplo, da Primavera Àrabe e a tortuosa transição para a democracia. Mas o cineasta está menos interessado num filme social ou histórico e mais no trabalhar da redenção humana a partir de uma metáfora de luminosidade. O ditador do país surge na primeira sequência do filme com o seu neto ao colo, e, como manifestação de poder, mostra-lhe como consegue, através de um simples telefonema, mandar apagar todas as luzes da cidade. As luzes não se voltam a acender, é a revolução e a partir daqui começa a fuga do líder deposto e do seu neto (o resto da família parte para o exílio), fuga na qual vão ver o que até então estava na obscuridade: o rastro de sofrimento e a miséria em que a sua ditadura deixou o país.
Nesta travessia o ditador vai devir um andrajoso músico de rua e a sua figura, entre um cristo redimido e um barbudo Saddam Hussein em véspera de captura, espelha bem as duas opções morais que Makhmalbaf quer contrapor. De um lado, o olho por olho, dente por dente (ou a sua versão mais recente, drone por drone) que levaria à captura e morte horrível do ditador que tantos fez sofrer. Outra hipótese, a do cineasta, é a religiosa outra face, a interrupção do ciclo de vingança e violência. Outros sinais da humanidade do ditador e da travessia religiosa acumulam-se desde a prostituta Maria, o estábulo como novo palácio, até à “cruz” que o ex-líder tem de carregar às costas (um refugiado ferido). Independentemente da escolha a fazer, a da dança pela democracia ou a do enforcamento de inocentes, The President, vê-se sempre incapaz de fugir deste duplo programa.
Talvez nos tenhamos tornado demasiado cépticos para este tipo de abordagem paternal da humanidade. Demasiado desconfiados de uma câmara à mão que tenta simular uma imprevisibilidade violenta que o filme está longe de ter, apreensivos quanto à capacidade do futuro ditadorzinho aprender a limpar o seu próprio cu, ou mesmo da presença da própria criança no filme de Makhmalbaf ser menos uns olhos novos que anunciam um futuro alternativo e mais uma porta de entrada num “cinema paraíso” da desconstrução da figura do ditador que descobre que errou. Embora Makhmalbaf tenha como poucos uma noção dos detalhes que devoram toda uma cena – o olhar do povo que testemunha a violação de uma noiva, a navalha do barbeiro a tremer na garganta do ditador, uma amiga do menino que este julga ver e logo desaparece levada do plano pelo fumo de uma pedreira – quase sempre estes estão embutidos num sistema de certezas vagas, sem país específico, onde surge como obsessão paralelista a oposição entre o antes (o passado, da opulência e da irresponsabilidade) e o agora (o presente, da sobrevivência e do arrependimento).
Do conjunto, os momentos musicais, vários ao longo do filme, talvez sejam aqueles que melhor resistem a uma imposição dramática e programática. Com isso, tornam-se menos familiares ao espectador e mais capazes de experimentar a estranheza num filme que mostra como a família, no sentido de se estar a gosto, pode produzir uma certa estagnação cinematográfica.