A propósito de After Earth (Depois da Terra, 2013), o último filme de M. Night Shyamalan escrevi que o aspecto mais fascinante desse exercício era a forma como este colocava no centro da sua narrativa as comunicações à distância e a “descorporização” das relações pelo digital, isto é, que uma imagem não é uma presença e que o efeito de realidade de tal comunicação multimédia é apenas um efeito, um passe de mágica que nos engana, uma trampa. Não por acaso The Visit (A Visita, 2015) trata exactamente da mesma temática e todo o mistério do filme se constrói por uma falsa presença da mãe via Skype. Terror, mistério e motor narrativo desenvolvem-se sobre as dificuldades da comunicação à distância num mundo em que a comunicação é a chave para todos os males e para todos os bens da humanidade. O horror acontece quando essa dádiva não funciona normalmente; a tragédia é não ter rede.
Não é certamente inocente que Shyamalan coloque a protagonista do filme a realizar um documentário sobre a visita à casa dos avós que ela e o seu irmão nunca conheceram e com os quais a mãe não fala há quase duas décadas, desde que saíra de casa. Esse documentário e essa documentarista tem a presunção de filmar o real como ele é e por isso interessa-se pelas cabeças falantes da mãe, dos avós, do irmão e até dela mesma. A opção formal pelo falso documentário permite ao realizador de The Signs (Sinais, 2002), que sempre foi dos mais clássicos cineastas a laborar nos estúdios americanos, reflectir sobre o seu dispositivo e nesse constante exercício de (auto-)reflexologia brincar com aquilo que é a construção da tensão pelos enquadramentos, ou, por outro lado, brincar com as típicas opções dos filmes found footage e a ética dessas mesmas opções.
A força simbólica de The Visit passa necessariamente pela questão do olhar e do ver.
A este respeito, e já depois de os acontecimentos estranhos terem atingido proporções alarmantes, o irmão propõe que se deixe uma câmara escondida a filmar as loucuras nocturnas da avó para que assim atestem da sua segurança. A irmã riposta que não é ético um realizador utilizar imagens obtidas sem a sua presença e sem que os protagonista tenham conhecimento da presença da câmara. Ela acaba por ceder, mas mal se inicia o relato dessa câmara oculta logo esta deixa de o ser no único jump scare do filme, passando de objectiva a subjectiva e de novo a objectiva sem qualquer esforço (um dos grandes talentos do realizador e uma das suas marcas autorais mais fortes). Ou seja, Shyamalan coloca-se do lado do cinema por oposição ao método candid camera dos apanhados televisivos que é, simultaneamente, o método dos Paranormal Activity e afilhados e no processo cria um gag terrificamente irónico zombando do próprio dispositivo. Esta consciência da câmara mostra-se ainda igualmente perspicaz quando num desses momentos de entrevista o enquadramento é feito com um ponto de fuga paralelo às cabeças falantes tornando uma simples conversa expositiva num jogo de constante tensão pelo que poderá surgir desse ponto (acentuado pelo zoom num dos casos), de novo o dispositivo televisivo a ser invertido (ou pervertido) por simples desvios aparentemente inocentes.
Mas a força simbólica do filme passa necessariamente pela questão do olhar e do ver, isto é, pela necessidade da protagonista tomar consciência (e nós, espectadores, com ela) de que a sua câmara não revela a verdade, a verdade está nos seus olhos e na forma como estes são capazes de interpretar o real. Shyamalan torna esta premissa na chave simbólica e, ao mesmo tempo, literal do desenlace onde só quando a protagonista é capaz de se olhar no espelho consegue encontrar uma saída para o cerco, saída essa promovida pelo próprio olhar: o relfectido e o objectivo (da câmara). A pureza da metáfora é brilhante e mostra como um realizador clássico pode usar o dispositivo da moda a seu favor, infectando-o de consciência fílmica – a única vez que vi tal trabalho sobre o dispositivo foi com Diary of the Dead (Diário dos Mortos, 2007) de George A. Romero, onde no final, o protagonista, à beira de se converter em zombie, implora “shoot me” para a namorada que numa mão segura uma câmara e na outra uma arma, e sabe-se muito bem da força política no cinema Romero e da forma como se apropria dos géneros e formalismos cinematográficos em seu proveito. A redenção está na lente.
Por tudo isto The Visit é um regresso à boa forma do realizador, também porque é um regresso aos seus filmes-cerco [The Signs, The Village (A Vila, 2004) e Lady in the Water (A Senhora de Água, 2006)], deixando para trás os filmes-mapa [ The Happening (O Acontecimento, 2008), The Last Airbender (O Último Airbender, 2010) e After Earth]. Percebe-se assim, sem grande esforço, que Shyamalan é muito mais Hawksiano do que Walshiano. Que se fique por aquilo que melhor faz, e deixe as fugas e a distensão do espaço para o nosso padroeiro.