Há Festa do Cinema Chinês em Lisboa, de 10 a 30 de Setembro, na Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema e no Cinema Ideal. Serão 32 filmes, alguns deles obras-primas, estruturados em quatro ciclos – uma muito significativa mostra em Portugal, quase 30 anos após outro grande ciclo. O último de Jia Zhangke, Shanhe guren (Se as Montanhas se Afastam, 2015), abre hoje o programa.
Não falta ambição à Festa do Cinema Chinês em Lisboa, ao pretender abarcar, numa trintena de filmes, em vinte dias, vários períodos históricos, desde uma das primeiras obras-primas dos anos 1930 até filmes mais recentes de autores aclamados.
Nos últimos anos, mostras análogas foram organizadas em França (“De Pékin à Taipei, 1000 Visages de la Chine”, em 2013) e em Inglaterra (“A Century of Chinese Cinema”, em 2014) mas estenderam-se durante meses. A sua programação era, naturalmente, mais completa, atendendo a uma série de variações cronológicas e também regionais no cinema da dita “Grande China” (expressão que abarca a China continental, Hong Kong, Macau e Taiwan) que não é clara no ciclo em Lisboa.
Em todo o caso, tem havido diversas oportunidades para ver cinema chinês em Portugal. Estreias comerciais são raras mas relevantes. Destaque para as recentes de Tian zhu ding (China – Um Toque de Pecado, 2013), de Jia Zhangke ou Guilai (Regresso a Casa, 2014), de Zhang Yimou. Outros ciclos importantes incluíram as edições da Mostra de Cinema de Hong Kong entre 2009 e 2014 e retrospectivas dos cineastas de Taiwan Hou Hsiao-hsien e Edward Yang, na Culturgest (em 2007 e 2012, respectivamente). Importa salientar, acima de tudo, a presença regular de filmes chineses nos grandes festivais de cinema portugueses, como uma retrospectiva do “herói independente” Jia Zhangke no Indie Lisboa 2005 e um importante ciclo de documentários chineses no Doclisboa 2008. Não se podem ignorar, também, os prémios recebidos por cineastas como Wang Bing ou Zhao Liang . No entanto, uma mostra de cinema chinês com estas honras de Estado é inédita nos anos mais recentes. O presente ciclo – colaboração de entidades como a Cinemateca Chinesa, a Cinemateca Portuguesa, o Cinema Ideal ou o Xiaoxiang Film Group (com origem na província de Hunan) – oferece uma visão interessante sobre o cinema chinês. É, principalmente, uma oportunidade preciosa de apreciar algumas raridades e obras-primas do cinema chinês passado e presente.
É uma oportunidade preciosa de apreciar algumas raridades e obras-primas do cinema chinês passado e presente.
As primeiras exibições de cinema na China remontam ao final do século XIX, mas só no início do seguinte se começaram a produzir filmes na China. Nos anos 1930 inicia-se uma fase crucial cuja influência se consegue vislumbrar até ao cinema chinês actual. Tendo Xangai como centro produtor-chave, alguns argumentistas e realizadores conceberam obras que abordavam problemas sociais e políticos como nunca até então no cinema do país. Influenciados por Hollywood e pelo cinema soviético mas, acima de tudo, firmemente preocupados com a realidade chinesa, estes autores fizeram algumas das obras mais aclamadas de sempre. Cinema de produção local mas cujo olhar e propósito era nacional, os chamados “filmes de esquerda” dos anos 1930 viraram as câmaras para os invisíveis e, no seu silêncio, quiseram gritar ao mundo. No ciclo em Lisboa estão duas dessas obras, o obrigatório Shen nü (A Divina, 1934), de Wu Yonggang e Xiao wanyi (Os Pequenos Brinquedos, 1933), de Sun Yu, ambos com Ruan Lingyu.
Ruan Lingyu foi das maiores estrelas do cinema mudo chinês, um autêntico símbolo das complexidades da “mulher moderna” na primeira metade do século passado. O facto de ter posto fim à vida no auge da carreira, aos 24 anos, qual Marilyn chinesa avant la lettre, só aumentou o seu fascínio [aliás, bem explorado por Stanley Kwan em Ruan Lingyu (Center Stage, 1992)]. Em Shen nü, Ruan Lingyu tem um dos seus desempenhos mais emblemáticos no papel de uma mãe sozinha que se prostitui para sobreviver e dar uma educação ao filho.
Wu Yonggang alterna o mundo confinado da habitação da mulher com o exterior da noite de néon para onde sai. Relógios marcam o inevitável como uma condenação. É hora de trocar os qipao e sair. Sorrir só para o filho, só por ele. E o rosto de Ruan Lingyu transmuta-se de medo em riso, de gelo em quente, relembrando a quem a vê por que é que foi uma das actrizes incontornáveis do cinema chinês. Mas o drama de Shen nü não tem, porém, um final apaziguador. A sociedade hipócrita e cruel sai pior do filme que o malévolo proxeneta. Aqueles que insistem em negar a quem nada tem uma hipótese de redenção. Aqueles que, com falsos moralismos, acham que certas pessoas são um atentado à sua moral de fachada. É a essa sociedade – a nós espectadores – que o realizador quer comover e forçar a reflectir. E a mudar.
A mesma Ruan Lingyu brilha em Xiao wanyi, uma das obras máximas de Sun Yu, dos mais importantes realizadores do cinema chinês que fez parte da sua formação nos Estados Unidos da América. Xiao wanyi é a fatídica odisseia da senhora Ye, uma criadora de brinquedos que é forçada a deixar a sua terra-natal e o filho por conflitos internos, para depois perder a filha na chamada guerra de Xangai de 1932. Trata-se de um conflito entre chineses e japoneses na grande metrópole, quase um anúncio dos horrores que viriam posteriormente.
A complexidade histórica de Xiao wanyi não cabe nestas linhas, mas importa referir como retrata o espírito dos movimentos em defesa dos produtos nacionais que marcaram a primeira metade do século XX na China, ou a importância dada ao exercício físico (subtilmente disfarçado por um certo humor numa cena digna de Hollywood em que Sun Yu capitaliza a figura de Li Lili, outra das grandes actrizes do mudo chinês). Xiao wanyi consegue, com equilíbrio, articular cenas de romance, de comédia, de guerra e de melodrama (cada uma delas com excelência visual) num grande filme de mobilização nacional (mas não de propaganda). Esse tom de mobilização torna-se particularmente evidente durante toda a última parte do filme. Sem outra alternativa que não a de vender os seus brinquedos na rua, a senhora Ye reencontra o filho de quem se separara e que já não a reconhece. Num uniforme de escuteiro, ele, que quando crescer quer salvar o país, admira-lhe os brinquedos mas quer ter a certeza que são “feitos na China”. Quando se prepara para os pagar ela recusa aceitar e oferece-lhos pois quem luta pelo país merece receber soldados e aviões (as formas dos brinquedos escolhidos pelo menino). O apelo é claro, mas Sun Yu leva-o mais longe. Num crescendo de exaltação, a senhora Ye, agora sozinha, grita em desvario aos transeuntes que o inimigo está aí e nova guerra se aproxima. Eles assustam-se, depois riem, e finalmente aplaudem-na. Olhando directamente para a câmara, exorta à união e à resistência. O filme é mudo mas o que vemos são gritos. À luz actual, tal final é assustadoramente premonitório do conflito aberto que anos depois estalaria, e durante o qual apelos à mobilização nacional não seriam mais calados pela censura mas sim incentivados.
Para uma perspectiva sobre os horrores da Segunda Guerra Sino-Japonesa (1937-1945) há uma proposta entre os filmes mais recentes deste ciclo em Lisboa, a que nos referiremos mais adiante. Passemos, pois, do drama de Xiao wanyi para o de Xiaocheng zhi chun (Primavera numa Pequena Cidade, 1948) de Fei Mu. Filmado um ano antes da implantação da República Popular da China, Xiaocheng zhi chun pode ser visto como o cantar de cisne do cinema republicano na China continental. Exalando melancolia a cada plano, foi votado há uns anos como o melhor filme chinês de sempre pela sociedade de críticos de cinema de Hong Kong e é, sem dúvida, um dos imperdíveis da Festa do Cinema Chinês. Suspeitamos que Wong Kar-wai deve ter visto este filme algumas vezes.
Um casal volta à pequena cidade onde a sua casa jaz semidestruída pela guerra. Semidestruído está também o seu casamento, onde a doença e o isolamento dele se converteram numa cada vez maior distância entre ambos. A chegada inesperada de um colega do marido, antigo enamorado da mulher, vem alterar a monótona existência da família. Para o marido, o amigo traz uma réstia da alegria que esquecera. Para a mulher, a sua presença reacende o amor de outrora e a esperança de fuga à sua vida vazia. A voz-off dela confere ao filme um tom íntimo que Fei Mu constrói magnificamente com a atenção aos espaços (a desolação das ruínas, a prisão das muralhas, a vastidão das paisagens, a ambiguidades dos interiores de conforto burguês), aos rostos e aos gestos. Xiaocheng zhi chun é um dos raros filmes chineses da época que pouco ou nada tem de político. A preocupação é individual, os seus protagonistas de classe média, os seus dilemas são essencialmente sentimentais. Coisas não muito bem-vindas nas décadas da China de Mao e talvez por isso, durante anos, o filme foi de certa maneira proscrito na China continental. O próprio Fei Mu deixou a China em 1949 e viveu o resto da vida na então colónia britânica de Hong Kong, onde morreu com apenas 44 anos em 1951.
Após a implantação da República Popular da China, a produção e distribuição de filmes na China continental passaram a ser controladas pelo Estado. Sucessivas campanhas políticas marcariam profundamente cineastas e filmes. Houve restrições mas também inovações, nomeadamente a nível do cinema de animação. Danao tiangong (O Rei dos Macacos e o Palácio Celeste, 1964) de Wang Laiming e Tang Cheng foi particularmente importante na revelação da qualidade técnica que a animação chinesa podia atingir, e mereceu uma certa atenção internacional.
Xie Jin foi, provavelmente, o mais importante autor do cinema chinês a emergir nos anos Mao, e a Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema dedica-lhe um ciclo de retrospectiva. Começando a carreira em meados dos anos 1950, Xie filmou até aos anos 2000. Se a sua obra é bastante variável a nível temático tem também uma coerência extraordinária se pensarmos nas vicissitudes históricas dos períodos em que trabalhou. A Xie Jin interessou como a História pode moldar as vidas dos indivíduos e soube contá-la quase sempre em forma de melodrama, de que terá sido um expoente na China.
Começando com o bastante solar Nü lan wu hao (A Jogadora de Basquete nº5, 1957) – a que já nos referimos aqui – Xie Jin filmou algumas das obras mais emblemáticas do cinema chinês. Uma delas é Wutai jiemei (Irmãs de Palco, 1965). É mais um filme que se estrutura num contraste pré e pós 1949 mas que, salvaguardando as obrigatórias visões politizadas, constrói um convincente melodrama em que as personagens são mais do que estereótipos. Como observaram diferentes autores, Xie Jin consegue congregar no seu filme a herança do cinema de Xangai com o tom revolucionário politicamente correcto da época [sem ser panfletário como em Hongse niangzijun (The Red Detachment of Women, 1964), uma das suas obras essenciais que não passará na Festa] sem esquecer uma homenagem à tradição de ópera Yue que está bem no centro – visual e sonoro – do filme.
Porventura ainda mais extraordinário é Tianyun shan chuanqi (A Lenda da Montanha Tianyun, 1980), filme de reconciliação que critica os excessos das campanhas maoístas, em especial o período da Revolução Cultural, através da história de dois namorados por elas separados: um patriótico engenheiro caído em desgraça por acusações injustas formuladas 20 anos antes, e uma jovem promissora que sobe na carreira por se aceitar distanciar dele.
Embora contrapondo de novo duas mulheres e duas escolhas – a que subiu na hierarquia do partido à custa de ambição e casamento, e uma amiga que voluntariamente se subalternizou para acompanhar o visionário injustiçado na sua vida de agruras – o tom é menos óbvio do que possa parecer, antes tentando dar a ver os dilemas e complexidades de cada opção, procurando encontrar remédios para feridas abertas do passado recente sem ignorar o sofrimento causado. Melodrama de ficção, Tianyun shan chuanqi é, também, um peculiar objecto histórico do tempo em que foi produzido, na transição da China de Mao para a “Reforma e Abertura” iniciada poucos anos antes do filme.
De Xie Jin passarão na Cinemateca outros sete filmes, muitos deles de exibição rara e, por isso, recomendáveis, da sua evocação da famosa revolucionária chinesa Qiu Jin no filme homónimo de 1983 à adaptação de um conto de Pai Hsien-yung [Bai Xianyong], Zui hou de guizu (As Últimas Aristocratas, 1989), entre outros.
No início dos anos 1980 emergiu a chamada “Quinta Geração” de realizadores. Rompendo com as convenções do melodrama político que haviam predominado nas décadas anteriores, estes novos autores privilegiaram o visual em vez de narrativas bem delimitadas e estavam mais interessados em lançar interrogações que em impor respostas à audiência. Destacaram-se Zhang Yimou e Chen Kaige, ambos aclamados internacionalmente e ainda em plena actividade. Huang tudi (Terra Amarela, 1984) é considerado um dos filmes inaugurais. Ambienta-se nos anos 1930s e segue a chegada de um jovem membro do Partido Comunista a uma aldeia isolada na província de Shaanxi onde vai recolher canções populares. Alojado por uma família local, as suas descrições da base comunista de Yan’an e as adaptações das cantigas locais com novas letras mostram à jovem da família um mundo novo, onde as mulheres escolhem os seus parceiros e podem até ser soldados. À esperança imaginada Chen contrapõe intransponíveis obstáculos físicos e mentais, extensos como vasta é a paisagem filmada.
Nunca até então se filmara assim o peso da História. A busca por uma ideia de “China” a partir de gente isolada em lugares remotos, num tempo específico que era também imemorial. O lado mais horrível da opressão e a esperança mais pura emergiam de detalhados estudos paisagísticos e psicológicos com uma força visual admirável, herdeira de tradições pictóricas do país e criadoras de uma nova arte visual chinesa no ecrã.
Zhang Yimou foi o director de fotografia de Huang tudi e, poucos anos depois, estreou-se também na realização com Hong gaoliang (Milho Vermelho, 1987), que não será exibido na presente mostra. Os seus primeiros filmes contam todos com a presença de Gong Li, a extraordinária actriz chinesa. É também o caso de Ju Dou (1990), que se poderá ver na Cinemateca.
É significativo que grande parte dos filmes desta Festa do Cinema Chinês tenham protagonistas femininas fortíssimas. À semelhança de Huang tudi, Ju Dou é um filme que tem como ponto fulcral a condição feminina no meio rural. Gong Li encarna a personagem que dá título ao filme, a mulher comprada de um tintureiro violento e impotente, obcecado com a perpetuação da sua linhagem. Ju Dou procura numa relação extramatrimonial com um familiar do marido a liberdade que este lhe nega. Quando o marido fica incapacitado por um acidente, Ju Dou parece passar, momentaneamente, de oprimida a opressora. No entanto, a autonomia que pensa ter ganho depressa degenera em desgraça, quando os homens (entre eles o amante) perpetuadores de tradições que oprimem as mulheres lhe negam todas as saídas possíveis. Com um trabalho excepcional de cor, Ju Dou é um filme de olhares e de visões, a das personagens e a dos espectadores, num jogo de desejos e de transgressões que é, ao mesmo tempo, insuportavelmente violento e perturbadoramente belo. Uma combinação que Zhang Yimou continua a conseguir produzir até hoje, mesmo em filmes muito menos provocadores do que os seus primeiros.
A geração seguinte de cineastas, que emergiu nos anos 1990, mantém algumas das preocupações da precedente, mas está menos ligada a grandes temas como a História, as tradições e a terra e mais focada numa subjectividade individual, sobretudo nos jovens. Dá ainda mais importância a zonas e gentes relativamente esquecidas e marginalizadas, mas sobretudo em meios urbanos ou em vias de rápida urbanização. Pelo menos numa fase inicial, os realizadores da “Sexta Geração” trabalharam em produções mais independentes e sem grandes financiamentos, na periferia dos estúdios estatais. Em vários trabalhos nota-se também um certo hibridismo entre ficção e documentário. Isso é visível em dois dos autores cujas obras mais recentes se podem ver no ciclo de cinema contemporâneo, Jia Zhangke e Lou Ye.
Com grande reconhecimento internacional que nem sempre teve eco a nível oficial, tanto Jia Zhangke como Lou Ye têm sido responsáveis por alguns dos retratos mais poderosos e sem concessões da China contemporânea. Por exemplo, o penúltimo de Jia Zhangke, Tian zhu ding, é um trabalho de violência inesperada na sua obra, sobre alguns dos esquecidos do lado glamoroso da China-potência-económica. Não terá estreado comercialmente na China continental. Lou Ye, que merece ser reconhecido como um dos melhores cineastas actuais, foi proibido de filmar durante cinco anos depois do seu magnum opus, Yihe yuan (Palácio de Verão, 2006) sobre os protestos de Tiananmen em 1989 e o que se lhes seguiu.
Na Festa do Cinema Chinês passarão, no entanto, os seus filmes mais recentes. Shanhe guren marca o regresso de Jia à sua Fenyang natal para mostrar os efeitos de um país em rápida mudança (incluindo experiências de diáspora) num grupo de personagens de onde se destaca Zhao Tao, magnífica actriz com quem o realizador é casado. Shanhe guren é o filme de abertura da Festa.
De Lou Ye poderá ver-se o obrigatório Tui na (Massagem, 2014). Num filme em que todas as personagens centrais e quase todas as secundárias são invisuais, Lou Ye concebe uma experiência sensorial em que o visual tem tanta importância quanto o sonoro. Com um tom de ficção híbrida que já marcara outras obras suas, o autor mantém uma certa aura de thriller que predominara no seu filme anterior, Fusheng mi shi (Mystery, 2012). Continua, ao mesmo tempo, a explorar temas que lhe são caros, como o desejo e a exclusão.
À semelhança do que se passa em todos os países, nem todos os filmes chineses são da autoria de cineastas aclamados que passam em festivais internacionais. Há sucessos comerciais internos assinaláveis que são quase tão importantes para compreender o cinema chinês actual como as obras de autores como Jia Zhangke. Embora alguns, como Shilian 33 tian (Love is Not Blind, 2011) de Tang Huatao, não estejam programados para Lisboa, é possível ter uma amostra de produção local que visa sobretudo um público interno no ciclo do Xiaoxiang Film Group, que passará no Cinema Ideal.
Entre os seis filmes exibidos fazemos aqui referência a Diexue gucheng (Morte e Glória em Changde, 2010), de Shen Dong, exemplo de um tema que tem merecido grande atenção (também) na ficção cinematográfica chinesa nos últimos anos, a Segunda Guerra Sino-Japonesa. Embora realizadores mais famosos já se tenham dedicado ao tema – por exemplo, Zhang Yimou em Jinling shisan chai (As Flores da Guerra, 2011) ou Feng Xiaogang em Yi jiu si er (Back to 1942, 2013) – na Festa poderá ver-se um exemplo menos conhecido. Não sendo uma obra de qualidade particular, Diexue gucheng constitui, no entanto, um caso curioso de adaptação cinematográfica de um episódio da guerra (a defesa de Changde aquando da ocupação japonesa, em 1943) em que os heróis não são comunistas mas sim soldados nacionalistas. Tal torna o filme significativo para quem se interesse por representações da História no cinema chinês. Uma imagem positiva dos nacionalistas não é exclusiva deste filme mas é certamente um dos aspectos na mais recente produção cinematográfica chinesa de pendor histórico com laivos propagandísticos que evidencia diferenças consideráveis no discurso público face aos antigos inimigos (e constantes vilões de outros filmes).
Outro dos destaques do ciclo do Xiaoxiang Film Group é Xin long men kezhan (Hotel Novo Dragão, 1992) de Raymond Lee e produzido por Tsui Hark. Título conhecido entre os emblemáticos wuxia de Hong Kong, é um remake do clássico Long men kezhan (Dragon Inn, 1967) de King Hu mas que congrega elementos-chave de alguns dos maiores sucessos comerciais do cinema de Hong Kong dos anos 1980-1990: impressionantes coreografias e sequências de acção, humor escabroso e violência gráfica. Reúne também quatro das maiores superestrelas popularizadas pelo cinema da ex-colónia britânica: Maggie Cheung, Tony Leung Ka-fai, Donnie Yen e, claro, a magnífica (e infelizmente retirada) Brigitte Lin. As cenas finais no deserto são épicas de tão excessivas, mas até elas parecerão na medida certa perante o mais recente projecto de Tsui Hark. O mastodôntico Zhi qu wei hu shan (A Tomada da Montanha do Tigre, 2014) é um blockbuster que congrega uma história que não destoaria no cinema dos anos Mao (um grupo de soldados comunistas que fazem frente a um senhor da guerra no Nordeste da China que se apoderou de um arsenal deixado pelos japoneses) com a espectacularidade de um filme de acção de Hong Kong e imenso CGI à mistura. Entretenimento é a palavra de ordem.
Numa outra dimensão de grandiosidade está Huangjin shidai (A Idade do Ouro, 2014), de Ann Hui, veterana do cinema de Hong Kong. A contenção e a dimensão extremamente local do seu premiadíssimo filme transacto, Taojie (Uma Vida Simples, 2011) deu agora lugar à procura de lugares e figuras larger-than-life. É uma revisitação do percurso de Xiao Hong, importante escritora chinesa cuja vida atribulada acabaria precocemente aos 30 anos, em 1942. Nascida na Manchúria, Xiao Hong fugiu de um casamento arranjado e passou os anos seguintes enfrentando uma existência incerta de pobreza e guerra ao mesmo tempo que escrevia algumas obras essenciais da literatura chinesa moderna. O filme segue-a por Harbin, Qingdao, Xangai, Tóquio, Wuhan, Chongqing e Hong Kong. Coloca também outros ilustres que com ela privaram (como Lu Xun e Ding Ling, mas sobretudo o seu companheiro Xiao Jun) em busca dessa mulher maior que a vida e, parece sugerir Ann Hui, maior que o próprio filme. Alguém impossível de aprisionar numa biografia convencional. Depois de menções particulares a outras actrizes deste ciclo, importa frisar também aqui a interpretação da protagonista, Tang Wei, a actriz revelada em Se, jie (Sedução, Conspiração, 2007) de Ang Lee.
Além de autores associados sobretudo ao cinema de Hong Kong, na Festa será também exibido o novo trabalho de um dos mais importantes nomes do cinema de Taiwan, Nie yinniang (A Assassina, 2015) de Hou Hsiao-hsien. Movendo-se pela primeira vez em território de wuxia, Hou passa da Paris contemporânea da sua última estreia comercial (Le Voyage du Ballon Rouge, 2008) para a China da dinastia Tang e leva consigo o par da última longa que filmou em Taiwan: Shu Qi e Chang Chen. Depois de Zui hao de shiguan (Três Tempos, 2005), os dois actores reencontram-se numa outra história de amor, a de uma assassina com o primo que é chamada a matar. Vencedor do prémio de melhor realizador no último Festival de Cannes, Nie yinniang marca o regresso do mestre Hou ao universo de uma China passada (imaginada?) de grande esplendor visual, quase vinte anos depois de Hai shang hua (Flores de Xangai, 1998).
O cinema chinês acompanhou e reflectiu sobre as grandes discussões e convulsões do século XX na China e continua a fazê-lo no século XXI. Dos anos 1930 aos anos 2010, muitas das suas obras máximas colocaram no centro os esquecidos da sociedade, enfrentaram opressões e traumas e procuraram concretizações artísticas que não fossem dissociadas de propósito. A Festa do Cinema Chinês dá ao público português a oportunidade de descobrir e redescobrir não só um pouco da história do cinema chinês e da história da China, como algo da relação interessantíssima que ao longo das últimas oito décadas história e cinema tiveram um com o outro nesse grande e diverso país.
A Festa do Cinema Chinês, em Lisboa, tem hoje início e ocorrerá no Cinema Ideal e na Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema .