Wes Craven traça um percurso na sua carreira, no mínimo, interessante. Começa com o terror bruto, ou melhor, “em bruto”, de The Last House on the Left (1972), quando ainda faltavam dois anos para Tobe Hooper lançar a sua magnum opus do terror mais bárbaro, The Texas Chain Saw Massacre (Massacre no Texas, 1974), depois atinge os píncaros da insanidade com The Hills Have Eyes (Os Olhos da Montanha, 1977), onde aprende a importância de dar um rosto – e um corpo – ao horror, na pessoa de Michael Berryman. Ataca o coração da cultura popular com a sua criação mais genial, Freddy Krueger/Robert Englund, em A Nightmare on Elm Street (O Pesadelo em Elm Street, 1984) e, a partir daqui, torna-se menos agreste, trabalhando mais abertamente um muito particular sentido de (auto-)ironia. Craven não se limitava a entrar na iconografia dos anos 80, ele intrometia-se nela como Krueger nos pesadelos das suas vítimas.
Depois de libertadas as visões mais horríficas na infância da sua carreira, um mais adulto e estabelecido Craven começa a jogar com o seu próprio estatuto de “lenda” do género do horror, integrando nos seus filmes uma certa marca paródica kruegeriana que o vai conduzir à pergunta sacramental daquela que é, quanto a mim, a mais prodigiosa reviravolta na sua carreira, a saga Scream: “What’s your favorite scary movie?”. A pergunta traz “água no bico”, porque, no universo do filme, parece estar contida a possibilidade da resposta. E se a resposta for A Nightmare on Elm Street? Melhor: e se Scream (Gritos, 1996), perdão, Stabs, for a resposta? Craven (re)inventa a cultura cinéfila do horror, torna-a mainstream, mas, logo a seguir ou ao mesmo tempo, fá-la reflectir-se num espelho de Medusa. New Nightmare (O Novo Pesadelo de Freddy Krueger, 1994), o último e brilhante capítulo da saga Nightmare on Elm Street, que sai da série como o Novo Banco sai do BES, tinha lançado o mote para Craven revisitar Craven com um sorriso sádico nos lábios. Agora é tempo de atacar a cultura no seu sistema, social, mediático e até político. Não é que Craven se tenha enamorado pelos jogos, muitas vezes vãos, da pós-modernidade. Não temos aqui a chico-espertice de Drew Goddard/Joss Whedon [The Cabin in the Woods (A Casa na Floresta, 2012)] ou Eli Roth [Cabin Fever (A Cabana do Medo, 2002)] em querer tornar o campo do terror num somatório de clichés implodidos.
Craven nunca abdicou de criar personagens, uma certa mitologia, onde o terror como sistema, cultural, mediático ou industrial, não fica excluído. Também ou por isso mesmo, não renuncia à crítica ao país onde vive, desde logo, à sua vida comunitária, suburbana, patologicamente alienante. Recorde-se para onde vai “todo o dinheiro do gueto” em The People Under the Stairs (Os Prisioneiros da Cave, 1991). Scream pega no modelo clássico whodunnit para dar múltiplas facadas a uma sociedade, composta sobretudo por jovens estudantes, onde já não se discute “quem anda com quem”, mas “quem matou quem”. Não querendo ir muito mais longe, também neste modelo psicopático do american way of life já se sente o cheiro das tragédias liceais que iriam dominar o debate na sociedade americana, sensivelmente desde o massacre de Columbine.
Nenhum Dr. Frankenstein criticou e amou tanto os seus filhotes. Dava-lhes mimos enquanto os transformava em pura semiótica.
Craven é um cineasta da inteligência, não uma inteligência exuberante, mas uma inteligência que faísca aqui e ali, sobretudo quando vai beber aos vícios e “pecados” inconfessados de uma sociedade que vive o seu “sonho húmido” capitalista. Não é frontalmente político como Romero ou Carpenter, mas também não sucumbe a jogos de estilo vácuos de um Eli Roth ou Drew Goddard/Joss Whedon. E, contudo, Craven gosta de fazer do gesto político, ou cultural, um exercício de estilo e vice-versa. Nos últimos anos deixou-nos, pelo menos, dois títulos memoráveis: Red Eye (2005) e Scream 4 (2011). O primeiro, indo beber à fobia, exponenciada desde 2001, por viagens de avião, assimila com mestria as melhores lições do suspense hitchcockiano. Sequestra-nos do primeiro ao último minuto. O segundo extrema, até ao delírio – basta rever os brilhantes minutos inicias, em modo matrioscas -, o prazer de Craven pela auto-reflexividade. “What’s your favorite scary movie?”. A resposta podia ser: “This one, if this is the one”. Há sempre um “se” que nos vai pondo dentro ou fora do filme – até apetece escrever “dentro ou fora de jogo”. O mais interessante aqui não são as rasteiras pregadas ao espectador, mas o facto de Craven nunca deixar de levar a sério a história de uma luta pela sobrevivência. A luta pela sobrevivência, por exemplo, microscopicamente, de Neve Campbell ao seu papel de Sidney e, macroscopicamente, do franchise Scream ao seu próprio cinismo – cinismo como sinónimo de “cultura” como sinónimo de “negócio”.
Craven não age por chico-espertismo, bem pelo contrário, ele faz terror por amor às suas criações. O grande twist é este: a reflexão crítica aparece, às vezes, como um pretexto para poder continuar as histórias – leia-se, a existência – das personagens que se perpetuam de filme para filme. Nenhum Dr. Frankenstein simultaneamente criticou e amou tanto os seus filhotes. Dava-lhes mimos enquanto os transformava em pura semiótica. Ele era um dos bons – entenda-se o adjectivo na sua dimensão estética e também moral – realizadores modernos do terror. Graças a essa inalienável generosidade pró-fílmica, Craven nunca se deixou apunhalar pela sua muito afiada inteligência crítica. Era, por tudo isto, um dos nossos favoritos.