Os senhores editores que me desculpem mas encontrei um bom motivo para fazer um interregno no reinado dos corações partidos que governa este espaço. Estava eu a ver o Trafic (Trafic – Sim, Sr. Hulot, Jacques Tati, 1971) no Nimas (do qual acabei por comprar o belíssimo cartaz do André Letria) quando aparece nos créditos o nome de Bert Haanstra, realizador holandês de quem eu nunca tinha visto um filme até ao momento em que decidi ver (segundo a lógica Lili Caneças e tendo ignorado por completo o facto de a Cinemateca já ter passado, pelo menos em duas ocasiões, vários filmes dele). Andava há imenso tempo com a pulga atrás da orelha por causa de uma curta metragem intitulada Zoo (1962), da qual me tinham falado muito e muito bem. Coisa estúpida, andar para aí a dizer que não se tem tempo para ver um filme de onze minutos, apercebo-me agora, tendo procrastinado esta magnífica descoberta. Aliás, aproveito para aconselhar que, se nunca viram Zoo, o vejam agora, não adiem mais um gesto que poderá roubar onze minutos das vossas vidas mas trará infinita felicidade.
Posso arriscar a blasfémia (que para deixar de o ser carece de investigação mais cuidada) de afirmar que Haanstra é o Tati do documentário, particularmente no que respeita à comicidade e parca dependência das palavras. Facto comprovável nos onze minutos de Zoo, inteiramente filmado com câmaras ocultas estrategicamente colocadas no Jardim Zoológico de Amesterdão. Encontramos nele um pouco da magia de Tati – sem a coreografia habilmente encenada mas com uma montagem criteriosamente ritmada pela música. O efeito cómico é simples (e não simplista), baseado num jogo acelerado de campo/contra-campo. Chimpanzés e humanos que bocejam, zebras e mulheres de casacos às riscas, catatuas e homens de cabelo espetado, marradas de cabras e turras de bebés. Claro que observar humanos é infinitamente mais interessante do que observar animais e Haanstra parte daqui para uma construção intencionalmente cómica mas despojada de cinismo. O que vemos são apenas humanos a serem humanos (o que significa que muitas vezes são autênticos douchebags para os animais, mandando-lhes fumo dos cigarros ou assustando-os de propósito). A sensação que permanece, embora saibamos que não é verdade, é a ideia de que humanos e animais se divertem igualmente a observar-se uns aos outros (gosto particularmente da câmara que mostra a perspectiva dos humanos atrás das grades, uma pequena vingança). O zoo volta, assim, a ser um local alegre. Façamos as pazes com ele.
“We are 12 million individualists” ouve-se em Alleman (The Human Dutch, 1963), a voz que nos elucida sobre os holandeses. Uma vez mais filmado maioritariamente com recurso a câmaras ocultas e com uma montagem alucinante, Alleman pretende dar uma perspectiva geral de um povo e dos seus costumes. O filme foi extremamente bem recebido na Holanda, como todos os seus documentários (ao contrário das ficções que realizou e que foram grosso modo ignoradas pelo público), e também internacionalmente, tendo sido distinguido com o Urso de Ouro na Berlinale. Alleman é uma invulgar sucessão de hábitos da sociedade holandesa – que se mostra já refeita dos traumas da guerra – quase uma comédia observacional super completa, que inclui um levantamento de comportamentos e hobbies inacreditável. Libertemos pois o voyeur que vive em todos nós, para o alimentar com a curiosidade de Haanstra e o dia-a-dia deste povo feliz.
Com Haanstra aprendemos também que humanos e animais têm igual potencial cómico e que as vacas não andam, levitam
Haanstra teve uma longa carreira, que inclui um atarefado percurso institucional: realizou diversos filmes para o governo holandês, para a Shell, a UNICEF e a National Geographic, entre outras encomendas, tentando não abandonar a autenticidade da sua voz – frenética, impaciente. Não espanta que Haanstra e Tati tenham construído uma amizade, é relativamente fácil identificar as razões pelas quais um admirava o universo do outro. Tati terá convidado Haanstra a colaborar em Trafic mas, segundo li, um navio não pode comportar dois comandantes. O que pude ver foram as imagens de Trafic imediatamente reconhecíveis como vindas das mãos de Haanstra que, tal como em Zoo, colocam mais uma vez o comportamento humano em cheque. Aqui os primatas encontram-se enfastiados no trânsito, pelo que agem como tal: fumam languidamente, apitam, tiram macacos do nariz (até aos vinte e poucos anos pensava que tirar macacos do nariz em engarrafamentos, escorregar em cascas de banana e bombeiros que salvam gatinhos de árvores eram mitos urbanos ou produtos de ficções animadas mas agora sei que não), olham para o horizonte com o semblante de alguém a quem foi feita uma lobotomia rápida numa qualquer cave escura e húmida sem os bisturis e serrotes devidamente esterilizados. Penso que a colaboração de Haanstra e Tati terá ficado por aqui, dadas as idiossincrasias de cada um se anularem quando em contacto (um filme realizado pelos dois provavelmente implicaria o apocalipse para todos nós), mas os dois terão mantido a amizade e admiração mútua, tendo Tati pedido que Trafic fosse sempre exibido em sessão conjunta com Zoo, por crer que os dois se completavam. Totalmente de acordo.
Com Haanstra aprendemos também que humanos e animais têm igual potencial cómico e que as vacas não andam, levitam. Veja-se um dos primeiros planos de Fanfare (1958), o segundo filme holandês mais visto de sempre, que só perdeu o lugar para Turkish Delight (Delícias Turcas, 1973) de Paul Verhoeven. Haanstra manifestou também, nesta primeira ficção, traços de projecção do comportamento humano no comportamento animal. No primeiro ensaio da fanfarra da aldeia (motivo de orgulho para todos e elemento agregador da esperança comum) explode o conflito entre duas das personagens principais – uma nota errada gera tumulto e eis que a cena é cortada para um bando de patos à bulha por um bocado de pão. Os patos, quais Statler e Waldorf, parecem julgar o disparate, lançando gargalhadas às más ideias que os humanos vão protagonizando ao longo de todo o filme. Haanstra talvez esteja mais em casa no documentário – por muito que os limites desta etiqueta sejam discutíveis aqui – do que na ficção. Pelo menos parece ter encontrado uma linguagem mais original quando concentrado numa perspectiva narrativa construída em torno da observação e da montagem e não de um guião.
No poético Spiegel Van Holland (Mirror of Holland, 1950) Haanstra já tinha demonstrado os seus peculiares métodos para filmar o país reflectido nas águas. Um filme de uma beleza melancólica que conquistou tudo e todos na sua estreia, inclusive a Palma de Ouro em Cannes. Imagino que a mesma melancolia habite Rembrandt, schilder van de mens (Rembrandt, Painter Of Man, 1957), que muito gostaria de ver, e que é inteiramente constituído por imagens de quadros do pintor, auto-retratos que se fundem, emulando a passagem do tempo e da vida.
Encontrei ainda a preciosidade Glas (Glass, 1958) no youtube, outra viagem de dez minutos que irá satisfazer todos os que, como eu, vivem encantados com o processo de fabrico de vidro (obrigada à professora que na primária me levou a ver uma espécie de Glas ao vivo).