1942. A Warner está radiante com o sucesso de Casablanca (1942) e logo se lança à árdua tarefa merceeira de espremer até à última gotinha os dollars que ainda podiam ter ficado pendentes. Chama de novo o seu tarefeiro de serviço, o competente Michael Curtiz, e a estrela da casa Bogart para um reencontro agora com Michele Morgan em vez de Ingrid Bergman (juntamente com quase todos os secundários; Claude Rains, Sydney Greenstreet e Peter Lorre) em Passage to Marseille (1944) – com uma cena no aeródromo e tudo. E como se isso não bastasse ainda inventam um terceiro derivado, The Conspirators (1944), já sem Curtiz nem Bogie – apenas com Paul Henreid, Greenstreet e Lorre – protagonizado por Hedy Lamarr e que ocorre numa Lisboa de estúdio com fados abrasileirados por Carmen Miranda como que continuando o enredo do original onde a nossa capital era tida como ponto de encontro futuro. Já nos anos noventa, e por isso já acetinado pela lixa da cinefilia de Eduardo Geada, aparece por cá um policial a quatro línguas de nome Passagem por Lisboa (1995) – aquilo que se convencionou mais tarde chamar um euro-pudim bem confeccionado -, onde a cidade, mais uma vez nos anos 1940, se enche de espiões, aristocratas fugidos, actrizes famosas (Pola Negri), cineastas (Lopes Ribeiro) e onde tudo termina com a chegada a terras lusas do casal de Casablanca que se afasta em contraluz por entre os aviões – não é por acaso que o filme é dedicado à memória de Luís de Pina e Félix Ribeiro.
1942. Vargas é um polícia, chefe da Pide. Dois refugiados são apanhados com documentação falsa e estão presos aguardando interrogação nos calabouços da polícia política do regime. Ela faz lembrar a Ingrid, ele nem por isso. Vargas pergunta à bela francesa onde arranjou os passaportes de contrafacção, ela responde que vieram de Casablanca. Aqui estão dadas as três primeiras deixas para o paralelo entre o filme de Curtiz e A Uma Hora Incerta (2015) de Carlos Saboga: o mesmo ano, a mesma mulher, o mesmo destino. Mais tarde a filha de Vargas põe-se à janela ouvindo os sons do cinema vizinho que enchem o casarão desocupado. Ao longe escuta-se La Marseillaise. O filme, todos nós sabemos, só pode ser um.
A maior força do filme acaba por ser também a sua maior falência, já que num espaço só tudo se sublima e evidencia.
No entanto, A Uma Hora Incerta nada tem de filme de espiões, aristocratas ou actrizes famosas cirandando pela Lisboa de cartão (ou de postal) com microfilmes e segredos de Estado. É um filme recluso do espaço de um hotel abandonado, onde poucos são os que por lá passam. Corredores vazios, quartos esquecidos, lençóis sobre a mobília. Saboga olha o ano de 1942 e tenta secar-lhe todo o encanto do filme de época e todo o esplendor dos plots convulsos dos filmes do período da Segunda Guerra Mundial, fica então o retrato de um país sem que se mostre o país que se retrata, isto é, o hotel abandonando funciona como reflexo do país: fechado sobre si, tudo coberto de paninhos (quentes), pejado de refugiados indesejados, tudo silencioso e sombrio – entre intrigas, leituras de Bíblia ao deitar, leituras do Avante às escondidas, refugiados evitando serem vistos e “romances” secretos entre polícias e desordeiros, subalternos e sopeira.
A esse respeito, Saboga, pela mão do seu director de fotografia e colega de vários trabalhos Mário Barroso – que o terá aprendido com o mestre Oliveira -, filma várias vezes os seus personagens por entre portas, cortinados, entre móveis, vidros e janelas entreabertas, como se tudo funcionasse no sentido de acentuar esse estado de coisas onde o pouco que se via e se fazia era pela metade; e mais que isso, onde nada escapava sem ser ouvido ou visto por alguém. E aqui a referência já não pode ser a claridade romântica de Curtiz, mas a desolação wellesiana em Xanadu e a força destrutiva e decadente do outro “policial” onde também havia um Vargas e um seu colega que (n)os encaminhava para o fundo do poço.
A maior força do filme acaba por ser também a sua maior falência, já que num espaço só tudo se sublima e evidencia (daí as pequenas pistas cinéfilas tomarem tanto a minha atenção) e com isso também as pequenas claudicâncias vindas de um certo excesso televisivo dos actores (e um total miscast de Joana Ribeira que, apesar das trancinhas e do blush, dificilmente passará por uma menina adolescente, uma Ana Padrão literalmente desaproveitada e uma Joana de Verona com uma cena e duas linhas de diálogo) ou um lado decorativo da direcção de arte e do guarda roupa que a todo o momento parecem enunciar-se, castrando a força dramática do filme e do seu enredo.
P.S.: Note-se o raccord entre a cena das tripas do peru neste A Uma Hora Incerta com a cena das codornizes decapitadas da estreia de Saboga na realização, Photo (2012) – “prefiro as histórias do antigo testamento… têm mais sangue”, ouve-se a certa altura neste último, e eu oiço “prefiro as histórias do Estado Novo… têm mais intriga”, da mão de Saboga.