No jornal mensal da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema começa-se por confessar a dívida da instituição para com o cinema de animação. Como primeiro passo para saldar essa dívida o programa Realizador Convidado no mês de Outubro foi dedicado a Abi Feijó, tendo começado no passado dia 5 e terminará no próximo dia 20. Abi Feijó é um dos nomes mais importantes do cinema de animação em Portugal e nesta carta branca mostrou a sua obra como realizador, vários dos trabalhos a que esteve ligado como produtor e conselheiro artístico (pelas várias casas que tem encabeçado: Filmógrafo, Casa da Animação, Ciclope Filmes) e outros tantos que seleccionou de modo a construir um panorama sobre o cinema português de animação (os pioneiros, a afirmação e a diáspora), assim como sobre o que de mais relevante se fez e faz pelo mundo entre longas e curtas metragens. A este propósito decidi entrevistar o realizador e produtor que de certo modo formou alguns dos mais importantes autores da animação portugueses – durante esse filme-escola de nome Os Salteadores (1993) – como Pedro Serrazina, José Miguel Ribeiro ou Regina Pessoa – sua companheira e de quem produziu a sua trilogia da infância, na qual se inclui o mais premiado filme português, História Trágica com Final Feliz (2005) – e cuja importância na história do cinema português é tantas vezes esquecida. Entre o cinema político e o arquivo, entre o gosto pela experimentação e a unidade do traço, entre a questão da visibilidade e a formação de novos públicos, esta é uma conversa transversal sobre o cinema de animação (em Portugal).
Começando pela pergunta inevitável: ontem, dia 5 de Outubro, no dia depois das eleições, quando estamos todos à espera do que o Cavaco vai fazer, estava a assistir à sessão de todos os seus trabalhos de animação, e reencontrei no Fado Lusitano (1995) a figura do Cavaco Silva de olhos vendados na máquina de pinball a caminho do game over da CEE. Tinha a ideia de que este filme era quase um presságio do que viriam a ser os resultados da entrada de Portugal na União Europeia?
Esse filme tem vinte anos… Eu há vinte anos não esperava que ele continuasse actual tanto tempo depois. Mas, de facto, os filmes de animação, de uma forma geral, têm uma longevidade assinalável, não passam tanto com a moda como o cinema de imagem real – a maneira como uma pessoa se veste, se penteia, os hábitos das pessoas acabam por mudar imenso, algo que na animação não é tão patente. Estou-me lembrar, por exemplo, do How a Mosquito Operates (1912) do Winsor McCay, que continua a ser um filme actual. Eu vejo-o hoje com um enorme prazer e não é por ser um filme de animação de 1912, é um filme actual hoje, ponto.
Há, no entanto, nos filmes do Abi Feijó, uma componente política muito marcada. Se o A Noite Saiu à Rua (1987) começou por ser uma encomenda do MDP/CDE – Movimento Democrático Português / Comissão Democrática Eleitoral, outros filmes como Os Salteadores e O Clandestino (2000) são também, de certo modo, filmes políticos.
Sim, são… São preocupações minhas e é consciente. Venho de uma família com antecedentes na resistência ao fascismo, o meu pai esteve na Assembleia Constituinte, o meu irmão também teve envolvimento político, ainda que eu nunca tenha tido filiação partidária. Preocupo-me com as questões políticas e creio que a animação não é neutra e cada um tem que assumir as suas responsabilidades.
Há quem faça uma divisão nos seus filmes mais importantes, os escuros – Os Salteadores e O Clandestino – e os claros – A Noite Saiu à Rua e Fado Lusitano que são também os mais políticos. E de filme para filme as técnicas variam muito, desenho, areia, recortes… É a história que se adequa à técnica ou é a técnica que se adequa à história?
Geralmente é a técnica que se adequa à história. No caso das duas adaptações de contos preexistentes (Os Salteadores do Jorge de Sena e O Clandestino do José Rodrigues Miguéis), em particular no do Sena, a adaptação foi bastante próxima, adaptei o conto quase todo com apenas umas alterações cirúrgicas aqui e ali, já que a escrita do Jorge de Sena é bastante visual – ele chegou a escrever sobre cinema e era algo de que gostava e que a sua escrita reflectia. Para o Miguéis, que tem uma escrita muito diferente, a adaptação que fiz limitou-se a um bocadinho do conto, aquilo que achei que era o essencial. Mas, por exemplo, no conto do Migueis ele refere a certa altura um cargueiro ferrugento e essa expressão levou-me à animação em areia que dá um bocado esse ar de ferrugem, e também por isso é que o filme tem aquela cor.
Há uma série de técnicas usadas, animação de volumes, marionetas nos pequenos filmes feitos para a Rua Sésamo e para o Jardim da Celeste [Cão Pão Mão (1991) e Dado Dedo (1996)], ou agora a Nossa Senhora da Apresentação (2015) que é completamente diferente… Sente a necessidade de estar sempre a experimentar técnicas novas?
Sim, há. Por um lado, a produção de um filme demora sempre muito tempo – os Salteadores desde que eu comecei até que acabei foram 7 anos, o Fado Lusitano foram 5, O Clandestino foram 2 ou 3 -, cada filme importante tem uma gestação longa e, por isso, quando se chega ao fim já se está com a cabeça cheia. Por outro lado, quando uma pessoa começa um projecto, não sabe como resolver muitas coisas, é também isso que é interessante quando uma pessoa se lança num projecto: ter um desafio e problemas para resolver. Se não houver nada disso a produção torna-se uma coisa pesada, é preciso ter algo que nos deixa irrequietos, inquietos, que nos ponha a pensar “como é que eu vou fazer isto, será que vou conseguir, tenho que arranjar soluções“. Por exemplo, o tal final do Fado Lusitano, eu já tinha a ideia da máquina de flippers, mas aquele fim só o descobri mesmo quando já o estava a filmar – originalmente os números do computador indicavam as datas mais importantes da história de Portugal, mas não fazia grande sentido… só depois é que me lembrei de colocar lá os vários programas da Comunidade Europeia.

Sente-se atraído pelo digital, a animação em 3D?
Pela animação em 3D cada vez menos, mas quanto ao digital e todas as potencialidades que o digital oferece cada vez mais se vai integrando nos processos dos filmes. Ainda que eu continue a gostar muito da animação de baixo da câmara, estar de baixo da máquina a mexer nas coisas, nos recortes, na areia, nas marionetes, com objecto, com pessoas… Mas depois o tratamento é todo digital, cada vez mais. O Clandestino foi todo filmado em 35mm, todas as imagens que vemos correspondem àquilo que estava em cima da mesa, mas o pequeno genérico que fiz para o SICAF, que também era com areia, já foi todo feito de maneira diferente. Eu fiz também as animações em areia, mas cada uma em separado e montei tudo digitalmente.
Eu li numa entrevista sua que aquando d’Os Salteadores cada animador estava encarregado de animar um personagem diferente para que o traço de cada um não destoasse ao longo do filme. De que forma se garante que um filme de animação preserva um traço próprio quando envolve tantas mãos a desenhar?
Há aí várias questões. Quando cada animador ficou com uma personagem diferente também foi para que ficassem com a noção da personalidade do personagem. Nesse sentido dividiu-se os personagens principais por diferentes animadores, os secundários não fazia tanta diferença… Mas a questão era outra e prendia-se com as várias pessoas que iam pintar os desenhos, que eram muitas. Aí não foi feito um personagem por pessoa, foi feito um plano por pessoa e de facto existe uma grande variedade de expressões e estilos no filme e a unidade foi criada justamente na diversidade, já que cada plano é diferente. Isso deveu-se também ao facto de na altura não haver ainda formação e muitos dos animadores foram formados dentro da produção, e esses eram constrangimentos que eu não tinha como ultrapassar. Hoje em dia já há muito mais formação de base específica. A Regina Pessoa já começou a trabalhar com algumas pessoas, mesmo nos grafismos, e consegue ter uma unidade gráfica espantosa, mas é também porque ela tem um trabalho enorme de preparação, ela faz um desenho de meio em meio segundo, deixando os outros aos assistentes e isso dá-lhe uma trabalho louco [durante a produção do Kali, O Pequeno Vampiro (2012), ela trabalhava em média 16 horas por dia…], tudo para que os assistentes não desvirtuem a visão dela, mas sai-lhe do pêlo. Eu, n’Os Salteadores fiz um desenho de cada plano e aconteceu que quando eu desenhei um personagem que tinha metade da cara na sombra, depois quando se animou o personagem vira a cara e a sombra continua a cobrir-lhe aquela metade… [risos]
Corrija-me se estou errado, mas nos estúdios de animação americanos os animadores especializam-se imenso, um só pinta nuvens, outro só faz os brilhos da água, há uma industrialização do processo…
Sim, essa sempre foi a tendência da animação comercial, havia um animador que só animava a mão do rato Mickey…
Outra questão que me interrogo várias vezes é de que forma se controla o tempo e os ritmos num filme de animação, em que não se tem noção imediata da duração de um movimento, ao contrário do que acontece com um actor frente a uma câmara?
Eu diria exactamente o contrário, como é que se consegue controlar o ritmo e o tempo de um actor? Na animação controla-se imagem a imagem, são 12 ou 20 imagens, não são 19, nem 21… Um actor não consegue fazer um movimento que dure exactamente 20 imagens. Aliás, eu há uns anos tive uma experiência com uma proposta para uma série que começava com imagem real, passava para animação e depois terminava de novo com imagem real e quando acompanhei a rodagem ia dando em louco, eu senti que não controlava coisíssima nenhuma. Na prática usa-se um cronómetro e mede-se quanto dura cada movimento, caso haja diálogos há ainda outra referência.

No entanto, há técnicas que se baseiam em imagens reais, como a rotoscopia onde se desenha sobre essas imagens. É algo que lhe interessa?
Há bons e maus exemplos em todas as técnicas. A rotoscopia já vem dos anos 1920, com os irmãos Fleischer, com o Koko the Clown. Muitas vezes o problema dessa técnicas é o da passagem automática, o de, por exemplo, fazer um desenho a cada dois fotogramas e, por vezes, se não se tiver cuidado, erra-se no fotograma que se escolhe. Se se tiver o cuidado de pensar o movimento quando se está a fazer uma rotoscopia, tem-se muito melhores resultados do que se esse processo for mecânico. Por outro lado, eu acho que o que é interessante na animação é quando ela não é realista. A função da animação não é reproduzir a realidade, é representá-la.
Sinto que aquilo que vemos no Oh que Calma e no recente Nossa Senhora da Apresentação está muito longe da narração e mais próximo do trabalho sobre as formas, poemas animados.
De facto, desses dois exemplos um é baseado numa música e outro num poema… [risos] Ajuda. Mas a poética do movimento está ligada essencialmente à expressão, quando um bailarino dança uma coreografia não se trata apenas do movimento, é também a expressividade própria do artista, é aí que está a beleza dos movimentos, a sua poética. Acho que a animação é tanto mais rica quanto mais poéticos forem os movimentos.
É talvez por isso que gosta menos de longas metragens de animação, que dão mais importância à narração que ao movimento?
Sim, possivelmente. Também há um outro factor, na literatura há o romance e o conto, são duas formas de contar histórias e não quer dizer que uma seja melhor que a outra. Os romances normalmente são longos e os contos curtos, os romances normalmente dão origem a longas metragens, ao passo que os contos dão muitas vezes origem a curtas metragens. E eu prefiro contos a romances. Além disso, a animação não está a reproduzir a realidade, está a criar imagens dessa realidade, imagem iconográfica dessa realidade, simbólica. Um filme também é apenas um símbolo da realidade, logo um filme de animação é um símbolo de um símbolo, um símbolo ao quadrado. Por isso, a animação é capaz de ser mais eficaz em pouco tempo por ter uma carga de comunicação muito concentrada e logo a duração estar mais concentrada parece-me ser algo que funciona melhor – numa longa metragem, ou é uma overdose de símbolos, ou a narrativa ganha preponderância e certas coisas perdem-se.
Mas um dos grandes problemas da animação é o da visibilidade. Não existe praticamente mercado de distribuição para curtas metragens e raramente na animação se chega à longa. De que forma se pode aumentar a visibilidade e a vida de uma curta de animação?
O mercado para as curtas metragens é simbólico, ninguém que faça curtas ficará na ribalta do jet set, mas esse nunca foi o meu interesse… No filme da Regina, História Trágica com Final Feliz, tentámos uma série de estratégias para prolongar o percurso do filme junto do público, nomeadamente criando uma exposição itinerante que fomos apresentado em vários locais, 17 ao todos em 7 países diferentes e sempre em momentos diferentes dos festivais. Fizemos também um livro ilustrado com o DVD e procurámos sempre formas de voltar ao filme, e hoje, por exemplo, o filme faz parte do plano nacional de cinema e continua a poder ser visto e continuará a ser visto. Como os nossos últimos filmes são também co-produções com vários países, nesse caso, com a Alemanha e com o Canadá, temos o acesso aos mercados dos nossos co-produtores e naturalmente temos versões nas várias línguas, o que também ajuda na distribuição. E no mercado da curta metragem tudo o que vem à rede é peixe, como se costuma dizer.

Parece-me, no entanto, que as sessões de curtas metragens nos festivais nacionais têm algum público fiel, mas que fora desses eventos não têm facilmente acesso a filmes desses.
Eu acho que as pessoas gostam de curtas metragens. Quando se proporciona mostrar um projecto as pessoas aderem. Os meios de exibição e distribuição é que não estão abertos a desenvolver iniciativas desse género. Por exemplo, o programa do Vasco Granja era um dos programas de que toda a gente falava, e porquê? Porque era semanal, em prime time e não havia 20 canais, apenas havia dois. Chegou a ser líder de audiências e as pessoas viam com agrado. Hoje em dia há a tendência de se estar muito preso às audiências e programas como o Onda Curta são relegados para as duas da manhã. E ninguém se apercebeu do seu fim, quando passou das dez para as duas da manhã já estava morto. Mas convenhamos que não há muitos canais europeus a exibir curtas metragens, além da RTP… É o Arte, o Canal+, o Télévision Suisse Romande… e não há muito mais opções.
Encontrei uma informação recente que indicava que nas exportações portuguesas de audiovisual a animação era de longe o sector que mais pesava. Tem algum comentário?
Isso não faço a mínima ideia. Mas, no que diz respeito às presenças em festivais, a Agência da Curta Metragem, que é quem trata da promoção de muitas curtas metragens em Portugal, quando fez, salvo erro, 15 anos, fez o Top 10 dos filmes com mais presenças em festivais e mais prémios e mais público e por aí… No Top 10 havia 7 filmes de animação e o primeiro que não era de animação vinha em 6.º ou 7.º lugar… [risos] Há aqui duas questões: por um lado, a animação tem mais hipóteses em termos de festivais, já que há vários festivais de animação que não aceitam filmes de imagem real, mas há vários dos generalistas que aceitam animação – ao menos aí temos alguma vantagem… -; por outro lado, em Portugal temos uma meia dúzia de autores de animação de mérito internacional e que são reconhecidos por isso. Meia dúzia com boa vontade, mas existem e são bons.
Já mais do que uma vez o Abi Feijó disse que hoje em dia conseguir um apoio do ICA para uma curta metragem de animação não é algo de extremamente complicado, o problema está no facto de que esse apoio não corresponde nem a um quinto do orçamento total de uma curta de animação… É muito caro animar?
Há aí várias questões. Em termos mundiais os apoios do ICA são substanciais e não ficamos a dever nada a ninguém nesse aspecto. Mas há filmes e filmes… Depende da qualidade, e não é só o dinheiro que faz a qualidade, é a minúcia, o cuidado, as coisas que demoram muito tempo a fazer, e quanto mais tempo se demora mais caro fica. E quando os filmes são feitos desta forma nota-se. No nosso caso [na Ciclope Filmes] temos tido a sorte de conseguir co-produções internacionais, mas isso é algo que torna ainda mais caro os projectos, passa a haver dois produtores e logo é a multiplicar e fica mais caro. Por outro lado, os salários no estrangeiro são mais caros, mas como não sou eu que pago esses salários, são os meu co-produtores, acabamos por partilhar as tarefas e cada um assume as responsabilidade do que se compromete a fazer, permitindo-nos concentrar nas nossas coisas. E depois há o intercâmbio, aprendemos muito. Vemos como eles trabalham, aprendemos, mas também ganhamos confiança, percebemos que fazemos as coisas tão bem ou melhor que eles. Tudo isto aumenta o valor final do projecto, mas permite-nos fazer coisas muito mais detalhadas, muito mais complexas. Mas note-se que os apoios do ICA não são de se deitar fora. Até há pouco tempo o valor de referência deles era 10 mil euros por minuto, dos quais eles pagavam cerca de 8 mil – valores médios. Aqui ao lado, em Espanha, quando eles têm 20 mil euros para uma curta completa já estão muito contentes. No entanto, aqui não conseguimos montar uma produção industrial para uma longa metragem ou uma série, ao passo que em Espanha isso é muito mais fácil. Na Galiza, onde não havia qualquer tradição de fazer animação, de um momento para o outro, fizeram 4 longas metragens em dez anos, muito mais do que em Portugal inteiro. Nós em Portugal funcionamos bem com o artesanato, mas não com a indústria. E um dos principais motivos para esta dificuldade de montar uma produção industrial é o facto de as televisões estarem completamente fora da produção, não há sequer uma pessoa com quem falar nos canais de televisão. Não há um responsável.

Há ainda um outro aspecto que está relacionado com a formação de públicos, que é o trabalho que o Abi Feijó vem fazendo com crianças no sentido de lhes dar consciência do trabalho que dá fazer o cartoon que passa ao fim-de-semana de manhã.
Eu creio que fui das primeiras pessoas a fazer trabalhos de animação com crianças. Primeiro no Arbusto, o parque infantil da cooperativa Árvore no Porto, em 1985, no mesmo ano que fiz Oh que Calma, quando vim do Canadá. Desde aí tenho trabalhado em vários sítios, no Arbusto, depois na Filmógrafo, na Casa da Animação, depois na Ciclope e agora na Casa Museu de Vilar e também lá fora quando me convidam. Fazer animação com crianças, que nascem em frente à televisão e nunca pensam sobre o que vêem na escola – aprendemos a ler, a escrever, a desenhar, se tivermos sorte a música, mas aprender a ver um filme… -, permite-lhes pensar sobre o que está do outro lado da câmara. Além disso, um filme é uma actividade multidisciplinar, é um projecto que tem uma história que pode ser escrita nas aulas de português, de história…, depois há o visual que pode ser feito nas aulas de expressão plástica, há ainda a música nas escolas que a têm, o teatro na expressão das vozes, até a matemática, uma pessoa está sempre a fazer contas com o número de imagens por segundo… Aqui há uns anos eu fiz parte do júri do Cinanima onde tínhamos que ver os produções portuguesas e já nessa altura, há uns 7 anos, tínhamos uma sessão de duas horas de filmes de workshop com crianças. É uma actividade que se tem desenvolvido muito. Comecei eu, depois o Fernando Saraiva no CLIA – Centro Lúdico da Imagem Animada, que tem feito um trabalho excepcional. É o melhor, mas há muitos mais.
A propósito da criação do Museu Casa de Vilar, que é um museu dedicado à animação, corrija-me se estiver enganado, mas se o cinema de acção real das primeiras décadas do cinema português se perdeu, o cinema de animação sofreu muito mais e praticamente nada se conserva dos anos 1920 e 1930. Qual é o panorama da conservação do cinema de animação português?
Obviamente que os filmes dos primórdios desapareceram, porque ninguém lhes dava importância. Além disso, eram filmes em nitrato, que ardia de uma forma impressionante. Uma vez o Serge Bromberg fez uma demonstração e pegou num pedaço de nitrato, passou-lhe um fósforo e antes de chegar ao chão já tinha ardido tudo. Em Portugal, o primeiro filme de animação de que existe uma cópia da época é de 1939, de uma publicidade às bananas da madeira [A Extraordinária Aventura do Zéca (1938)], que passará no programa Animação Portuguesa – Pioneiros [Dia 13, 18:30, Sala Luís de Pina]. No entanto, há um caso interessante. Aqui há uns anos fez-se uma reconstituição daquilo que talvez tenha sido o filme do Joaquim Guerreiro Pesadelo de António Maria (1923). No Porto, o Ricon Peres, num alfarrabista, encontrou um maço de desenhos, achou-os interessantes e comprou-os. Quando chegou a casa percebeu que os desenhos eram sempre muito parecidos e percebeu que aquilo devia ser um filme de animação. Levou-o ao António Gaio, que morreu recentemente, o director do Cinanima. Ele começou a estudar aquela história e percebeu que eles eram, de facto, desenhos do Joaquim Guerreiro e desse filme em particular de 1923. Pediu então ao Paulo Cambraia para tentar refazer o possível, mas os desenhos não estavam numerados, nem se sabia se estavam todos…
Perguntava isto porque há vários títulos de animação dessa altura dos quais restam algumas imagens, fotografias, várias referências. Por exemplo, o A Lenda de Miragaia (1931) que também está desaparecido. É a animação uma arte que se dá mais facilmente a este género de reconstruções?
Eu desse filme conheço apenas algumas fotografias, um ou outro desenho. Quanto às reconstruções… se encontrares os desenhos podes sempre refilmá-los. Mas, por exemplo, quando se usam acetatos, que eram muito caros, havia a prática de os reutilizar. Mudava a produção, lavavam-se os acetatos e voltava-se a desenhar por cima. Portanto, se os desenhos existirem dá para refilmar, se houver folhas de exposição melhor ainda. Não conheço muitos casos de reconstrução de animações a partir dos desenhos originais. Nem no caso das resmasterizações da Disney, é sempre a partir das cópias. Por vezes até se vendiam os desenhos, ofereciam-nos.
E quanto ao filmes recentes que já não são passados a película? Como é que a ciclope tem feito? O Kali existe em película?
Sim, o Kali existe em película, e provavelmente será o último, porque a Regina não gostou da experiência de exibir o filme em película. Hoje em dia o DCP (Digital Cinema Package) tem uma qualidade de imagem e de som muito considerável, e as projecções em película eram por vezes muito más quando comparadas com o DCP, e além disso os custos são muito menores… Cabe às cinematecas tratarem da conservação, antes entregávamos os masters em película no ANIM, agora…