…e a meio da 667ª noite o mítico contador Ricardo Vieira Lisboa iniciou o relato de…
“[O] cinema de Godard passou a ser exclusivo de um bando de acólitos que, a partir de algumas das premissas legadas pelo neo-formalismo dos Cahiers du Cinéma e das próprias afirmações do cineasta, convergiram numa leitura que sublinha a atitude ou o gesto político mas que, quase sempre, evita lidar directamente com as componentes específicas – cinematográficas – dos filmes”. A frase escreveu-a o próprio Miguel Gomes há uns 25 anos a propósito de Nouvelle vague (Nova Vaga, 1990) – nunca a harmonia contraditória de Godard foi tão delicada – para o catálogo da Cinemateca Portuguesa dedicado ao cineasta suíço Jean-Luc Godard 1985-1999. Em boa verdade a mesma frase poderia ser aplicada, sem grandes alterações, à forma como se vem lendo politicamente (leitura do realizador e dos seus amantes e detractores) a trindade d’As Mil e Uma Noites. Mas como a outra trindade, este filme é um que é três mas é inevitavelmente também três, aliás, quando conversámos com o realizador aqui há uns meses disse-nos que “cada filme não é uma variação do anterior, cada um tem uma identidade e põe-se em conflito com o anterior”. Atentando a esta última consideração, percebe-se pois que As Mil e Uma Noites: Volume 3, O Encantado (2015) por ser o terceiro põe em causa os anteriores e fá-lo de tal modo que se torna o mais árido dos três volumes, deixando para trás o humor brejeiro, a figuração do cineasta com dúvidas, o drama de subúrbio, o western mágico, o activismo de beira-mar ou o surrealismo judicial ficando-se por isso com dois capítulos compostos já apenas de formas (e) narrativas abstractas, elevando a falência de uma narração colorida ao osso carbonizado de um travessão e um ponto final.
A estranheza deste final para a trilogia revela-se de certo modo quando o nome inicial para o último volume era para ser Da Memória – “por tratar da memória de um mundo que nunca existiu como tal (Bagdad) e o mundo da Musgueira que está escondido da maioria das pessoas” – ao invés de O Encantado. Poderia dizer que o título provisório parece confirmar a referida oposição entre os volumes, já que [O] Desolado é aquilo ou aquele que não se vê ocupado, que é deixado só, inabitado, por oposição a memória é o espaço por excelência da ocupação, o arquivo dos acontecimentos que quanto mais avança mais se enche. Assim, os volumes contrariam-se, já que o que se encontra vazio difere daquele que conserva. Por outro lado estou em crer que o arquivo é a antítese da narração por ser esta última a ferramenta que sempre usamos para preencher as falhas desse tal arquivo, assim uma memória perfeita escusa uma narração e logo o volume que pretende guardar consigo uma memória é tendencialmente aquele que acaba desolado da arte da narração – por esta lhe ser desnecessária, inútil até. Mas Gomes decidiu-se por O Encantado coisa rara quando associamos o adjectivo à fascinação, à magia, à tentação irresistível, ao bruxedo que seduz, e mais rara ainda quando sabemos que grande parte do filme se passa o antigo bairro da lata da Musgueira em formato aparentemente documental. Mas é daí que surge a força (quase maníaca) deste último volume e da última das suas história, encontrar o encantamento onde ele menos se espera, forçá-lo a mostrar-se, extraí-lo qual pepita suja.
Mas regressando a Godard e ao texto de Gomes, “[E]ntre outros efeitos terapêuticos, Nouvelle Vague desobrigou-me de encarar o(s) significado(s) como absoluto(s)”. E essa ideia de uma leitura das formas e dos signos mais plural às suas possíveis significações é o que permite que “O Inebriante Canto dos Tentilhões” passe de um documento sobre os passarinheiros da Musgueira para o mais surreal dos episódios da trilogia – “tive a sensação que entrava num conto de Borges cheio de regras e ritos próprios e secretos”. Isto é, o virtuosismo narrativo de Gomes é posto de lado pelas imagens, que o recusam, e pelas pessoas que ele filma, que se bastam como narrativas – contar pode ser só fazer retratos, e assim Gomes limita-se a introduzir homens que passam os seus tempos livres a caçar passarinhos, a tentar ensinar-lhes certos cantos e a levá-los a violentíssimos concursos de trinado,“Oh venturoso Rei, fui sabedora que em antigos bairros de lata de Lisboa, existia uma comunidade de homens enfeitiçados que, com rigor e paixão, se dedicava a ensinar pássaros a cantar…”. A narrativa frutada de Xerazade está portanto apenas no contexto em que são introduzidos estes homens e no olhar de quem os filma e de quem os vê projectados na tela – e também, e sempre, nas palavras que enchem o ecrã uma e outra vez. A vida de subúrbio mostra-se espaço do improvável, do mágico, do belo – “a beleza está nas histórias que as personagens trazem consigo e como elas se podem extrair” -, da ficção (no sentido godardiano) já sem ser necessário o recurso às figuras catalizadoras do excesso dramático como acontecia em “Os Donos de Dixie”.
Mas como dizia, a puissance da palavra é uma presença singular no último capítulo por se sentir que já todas as costuras que antes haviam cerzido os eventos que ocorreram em Portugal no intervalo de 2013-2014, de forma mais ou menos dissimulada, se mostram orgulhosamente na sua manipulação, mais que isso, parecem ser as palavras que conduzem os homens da Musgueira, antecipando cada uma das suas acções, “as personagens de Nouvelle Vague são espectros vampirizados pelas palavras” e os passarinheiros e os seus tentilhões também o parecem ser – está por fazer o paralelo evidente entre a obra de Gomes e a de Godard; mas não é da mesma natureza a energia destrutiva, paródica e escabrosa que enche o episódio d’”Os Homens de Pau-feito” ou o d’”As Lágrimas da Juíza” e Vladimir et Rosa (1971)?
“Não esconder a estrutura e atirá-la à cara do espectador” disse Miguel Gomes e de facto tudo em As Mil e uma Noites é estrutura, cada história tem histórias dentro de si, Xerezade vai contando, mas quem a faz contar é Gomes à beira da morte e quem o põe nessa situação é o Gomes realizador, e dentro de cada história que Xerezade conta há quem conte outras histórias e tudo se organiza, como o descreveu o João Lameira, qual boneca russa onde se pretende “enfiar as bonecas maiores dentro das mais pequenas e em acrescentar outras que não encaixam em lugar algum“. Esta figura cubista de formas estranhas que enverga com orgulho as suas deformidades é aquilo que faz de As Mil e uma Noites um exemplo da extraordinária ousadia do seu realizador que parece ter poucas barreiras entre a ideia e a sua execução (o que para muitos pode passar por auto-indulgência), quero posso e faço – e o que nos aparece é um objecto livre e surpreendente, mais ainda neste último volume que começa nem mais nem menos com um interlúdio musical de meia hora que é o elogio das formas puras [não será por acaso que dentro da obra de Gomes o filme que mais pontos partilha com esta trindade seja Cântico das Criaturas (2006) mais não fosse pelo recorrente lado franciscano, mas porque igualmente começa com um realizador à deriva, passa apara um momento de teatro puro – o galo, a juíza – e termina numa musical apropriação de imagens documentais construída exclusivamente pela montagem].
A pergunta que naturalmente me coloco (e na verdade coloco-a várias vezes sobre outros filmes…) é, como é que se pára isto? Um mecanismo oleado como o que Gomes construíu para As Mil e uma Noites está próximo de um motor eterno que se auto-sustenta e se propulsiona indefinidamente com as histórias que vão enchendo o país. A solução que Gomes parece ter encontrado é o término pela exaustão, daí a aridez de “O Inebriante Canto dos Tentilhões”, acabando o filme com um homem preso nas hiperligações das histórias, das personagens, da estrutura, enfim, preso na rede da narrativa – como o pôs Luís Mendonça – e portanto, ironia das ironias, o mais livre dos episódios é também aquele que trata da domação, o surrealismo ácido do documental é aquele que acalma e amansa a pulsão narrativa, prendendo-a na sua própria rede dramática. Assim, o filme acaba porque tropeça na sua ousadia e se emaranha na sua empresa – haveria melhor forma de cair? Mas como o diz Godard e Miéville em Ici et ailleurs (1976) – filme do voltar a olhar e do refazer sobre as ruínas da ideologia -, pode ser que n’As Mil e uma Noites a Xerezade o contasse doutra forma. Alguém quer tentar?