Banshun (Primavera Tardia, 1949) reuniu pela primeira vez Yasujiro Ozu com a actriz Setsuko Hara, uma das mais emblemáticas colaborações do cinema. Marcou também o início de uma fase de excelência na filmografia de Ozu que só culminaria na morte do cineasta. Feito durante o período de ocupação norte-americana (que durou do final de Segunda Guerra Mundial em 1945 até 1952), Banshun pode também ser visto na sua dimensão de “documento” (para os que aceitam que obras de ficção podem sê-lo), retratando de forma subtil alguns traços da sociedade japonesa da sua época. A Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema vai passá-lo no sábado, numa double bill com My Darling Clementine (A Paixão dos Fortes, 1946) de John Ford.
(Este texto contém spoilers)
Tal como outros dos, porventura, mais conhecidos filmes de Yasujiro Ozu, Banshun versa sobre relações familiares num meio de classe média no Japão do pós-guerra, nomeadamente laços entre pais e filhos (sobretudo filhas) em torno do casamento. Ozu filmou esta “história” várias vezes e, no entanto, a sua aparente simplicidade nunca parece uma repetição gasta. Pese embora as enormes semelhanças entre estas “histórias” de filhas relutantes em casar e abandonar os pais [de que Banshun e Akibiyori (O Fim do Outono, 1960) são talvez os exemplos máximos], cada uma delas é única e tem os seus momentos memoráveis.
Noriko (Setsuko Hara), que em Akibiyori dará vida à figura materna, é em Banshun a filha que não se quer casar. Tem 27 anos e vive apenas com o pai Somiya (Chishu Ryu), que não tenciona deixar. Ao longo do filme acompanhamos a missão paterna, com o auxílio de uma tia, de arranjar um casamento para Noriko. O primeiro pretendente óbvio é Hattori, colega de Somiya, de quem Noriko parece gostar. Isso é sugerido na muito solar cena de um passeio de bicicleta [homenageada por Hou Hsiao-hsien no seu Hao nan, hao nü (Good Men, Good Women, 1995)], embora este seja pautado por uma certa ambiguidade, sugerindo uma ideia de liberdade de Noriko a par da possibilidade de um compromisso romântico (que apenas se esboça). No entanto, a relação promissora não chega a concretizar-se pois Hattori está noivo de outra mulher. Noriko, que rege a sua vida por convenções morais rígidas (visíveis, por exemplo, quando critica o amigo do pai que se voltou a casar), não aceita levar avante qualquer mal-entendido e rejeita o convite de Hattori para ir com ele a um concerto. Aos sorrisos partilhados do passeio de bicicleta é depois contraposta a figura solitária de Noriko deambulando pela cidade, à noite, após a recusa em sair com Hattori. Ela parece segura de que a sua vida está bem como está. Casar nada acrescentaria à sua existência e ainda a privaria do centro da sua vida: o pai (Hattori é um assistente do pai e pode quase ser visto como a sua sombra). Somiya compreende que só conseguirá que a filha saia de casa se ele encontrar alguém para “cuidar dele” e simula uma aproximação a uma viúva, despertando os ciúmes de Noriko. Perante a escolha do pai, ela conforma-se à vontade familiar e aceita casar com um desconhecido num enlace arranjado pela tia.
Se uma sinopse de Banshun é relativamente fácil de fazer, há uma série de elementos que complicam a questão. Ozu é capaz de observar a complexidade de uma sociedade onde caminhos diferentes são possíveis, seja quando se desafia ou quando se aceita pressões exteriores. Assim, se Noriko acaba por se casar e sair de casa para ser uma “boa esposa”, Ozu dá-nos a ver a sua amiga, Aya, que trabalha como estenógrafa, se divorciou e é, até na roupa, a imagem de emancipação que contrasta com a submissa Noriko.
Há em Banshun, como, aliás, noutras obras emblemáticas de Ozu, uma espécie de poesia do momento que se desenrola a um ritmo controlado, cada cadência pensada, cada gesto ensaiado.
Mais interessante é, talvez, o retrato que Ozu aqui compõe de uma solidão particular que toca a todos, independentemente das opções de vida. Vemo-lo bem na cadeira vazia ao lado de Hattori quando Noriko rejeita o seu convite. Vemo-lo ainda melhor no final com Somiya ficando sozinho em casa após o casamento da filha. Como acontece com outras personagens dos filmes do autor, chegamos ao final e estas figuras deixam de ser apenas personagens-tipo para serem quase velhos conhecidos. Há uma familiaridade que deriva de uma partilha de intimidade e também de uma capacidade de identificação universal com algumas das situações do filme.
Banshun é um filme ideal – já lhe chamaram “o mais perfeito” – para apreciar o estilo de Ozu, com as suas cenas compostas meticulosamente, seja nos espaços interiores ou exteriores. Somos convidados a observar as personagens ao seu nível quando estão sentadas à maneira típica no Japão – por exemplo quando participam numa cerimónia de chá ou assistem a teatro Noh, para mencionar duas actividades em que Ozu filma os actores em Banshun.
Reencontramos aqui o retrato de Ozu do lar japonês (em contraste com o apartamento ocidentalizado da amiga de Noriko) e do restaurante, locais quotidianos que Ozu filmou vezes infinitas no seu cinema e que são os espaços ideais para captar a “normalidade” da vida das personagens a acontecer (uma espontaneidade, obviamente, ilusória). Nada está ali por acaso (o célebre vaso que surge numa cena já gerou uma multitude de interpretações) e, no entanto, talvez a importância maior não seja o porquê de as coisas estarem ali mas simplesmente a apreciação de as coisas estarem assim ali.
Significativas são também as cenas num comboio – outro dos elementos familiares ao cinema de Ozu – e do espectáculo de teatro Noh. Menos que um contraste entre “tradição” e “modernidade”, há aqui, sobretudo, uma coexistência que nem sempre é pacífica ou óbvia mas que simplesmente está lá. Aceita-se essa realidade como se aceita a passagem do tempo, mesmo que essa aceitação não seja isenta de críticas. Os anúncios em inglês da Coca-Cola são tão reais ou tão irreais como as máscaras de Noh. Noriko casa-se envergando um traje tradicional mas o pouco que sabemos do marido é que se parece com Gary Cooper. A guerra que afectou a saúde de Noriko ficou no passado. Os referenciais americanos da ocupação eram o presente quando o filme foi produzido. Mas o eterno ciclo da vida humana continuará.
Há em Banshun, como, aliás, noutras obras emblemáticas de Ozu, uma espécie de poesia do momento que se desenrola a um ritmo controlado, cada cadência pensada, cada gesto ensaiado. A essência do real encontrada num exercício de autocontenção onde se aguardam os pequenos deslizes que revelem uma humanidade transbordante. Há uma certa serenidade que pauta as mudanças de estado de espírito, como se mágoa, divertimento ou tristeza fossem coisas que vão e vêm, como as ondas do último plano do filme, enquanto a vida de que elas fazem parte vai continuando.
Banshun passa na Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema dia 17 de Outubro, às 15h30.