Por ocasião da estreia de The Dockworkers Dream (O Sonho do Estivador, 2015) no Festival de Curtas Vila do Conde, colaboração entre o cineasta Bill Morrison e a banda Lambchop, tivemos a oportunidade de entrevistar o realizador americano. Bill Morrison conversa sobre o filme encomendado pelo Festival, bem como as suas outras obras, como forma de perceber o seu método de trabalho, as suas influências e ideias sobre o found footage.
Por esta altura já deves saber que a exibição de The Dockworkers Dream no Festival de Curtas Vila do Conde foi um enorme sucesso, numa sala repleta e com uma fantástica performance ao vivo dos Lambchop. Como é que surgiu este projecto?
Em 2013, estive presente no Festival, na secção In Focus, e conhecia o Mário [Mário Micaelo, director do Festival] desde aí, e no inverno seguinte, estava no júri do Festival Internacional de Curtas de Clermont-Ferrand, com o Kurt Wagner dos Lambchop. O Mário abordou-nos, acho que ele é um grande fã de Lambchop, e perguntou-nos porque é que não fazíamos algo em conjunto para o Curtas de 2015. Então nós dissemos ok, e em Setembro do ano passado estava em Itália, em Bolonha, e consegui alterar o meu bilhete de avião para Lisboa, e combinei encontrar-me com o Mário em Lisboa, para visitarmos o ANIM e ver aí alguns filmes do arquivo. Foi realmente essencial contar com a presença do Mário, porque ao longo do ano, foi mesmo necessário que ele escrevesse continuamente para o ANIM, a pedir-lhes os masters dos clips. Ele tornou-se, então, no produtor do meu filme, e assegurou a entrega de todas as minhas escolhas de clips. Por volta de Janeiro ou Fevereiro deste ano, o Kurt enviou-me uma peça a que chamou de “Long Song”, com a qual não sabia o que fazer, porque era muito diferente do que tinha feito antes. Essa peça encaixou com a montagem que estava a fazer com os clips de baixa resolução com que estava a trabalhar, e então enviei isso para o Kurt e para o Mário, e todos achamos que funcionava bem, e quando recebi os clips de maior resolução, consegui faze-los corresponder com a versão que tinha, com algumas alterações. A primeira edição que fiz tinha cerca de quarenta, quarenta e cinco minutos, e esta última tinha pouco menos de meia hora, e a música do Kurt tinha apenas dezoito minutos, e neste caso usamos a música duas vezes, portanto, ele alongou a sua peça para combinar com a minha montagem, e estava feito. Foi uma colaboração directa, fácil.
Foi muito diferente trabalhar com um músico como o Kurt Wagner, quando normalmente estás habituado a trabalhar com outro tipo de compositores?
Todos os filmes são ligeiramente diferentes, e neste cada um fez a sua parte, sem grandes imposições. Tornei-me amigo do Kurt após o Festival de Clermont-Ferrand, e trocamos alguns emails, mas houve uma vez que ele me enviou um pequeno rascunho do que mais tarde viríamos a chamar The Dockworkers Dream. Fiz algumas alterações à montagem do filme. Ele gostou do que viu, e eu gostei de como soava, por isso foi uma colaboração bastante descomplicada. Todas as colaborações são diferentes, mas no fundo há sempre uma coisa em comum: a partir do momento em que o compositor ou músico me entrega a peça musical para o filme, tenho alguma coisa com que trabalhar – mesmo que ao longo do caminho de montagem aconteçam algumas trocas, no fim, o meu processo passa sempre por editar para a música, independentemente do tipo de música que seja. Achei muito fortuito o facto de ele ter esta peça e não saber muito bem o que fazer com ela, e acredito e tenho fé que as coisas acontecem a seu tempo, e se existe alguma sincronicidade entre a música e as imagens, então tentas honrar e promover essa sincronia – foi o que aconteceu neste caso, parece-me.
Como é que foi o processo da pesquisa das imagens em Lisboa, e foste surpreendido pelo que encontraste?
Sim, fui. Primeiro que tudo, fiquei realmente surpreendido com o arquivo em si e com o próprio edifício. Não sei se já lá estiveste, mas é fora de Lisboa. Primeiro, foi difícil de encontrar, andamos às voltas de carro à procura do sítio, e até tivemos de perguntar a alguém na rua se sabia onde era. Quando lá chegamos era numa vila antiga, [o edifício] era pintado de cor-de-rosa, e depois havia estes velhos projectores, de todas as fases da evolução cinematográfica, como que posicionados num corredor, numa espécie de estranha utopia do cinema, ou um paraíso do cinema esquecido. Fiquei mesmo impressionado com as instalações. Há tempos, num jantar com um amigo, estávamos a falar como era um edifício e um cenário notável, e como alguém devia fazer um filme só com imagens da fachada de cada arquivo. Sobre o material, acabamos por usar cerca de dez filmes diferentes, não foi um número enorme… fiquei muito impressionado com as imagens de “O Século”, que eram sobre a produção do jornal, como na cena em que vemos alguém a esticar um enorme rolo de papel pela avenida abaixo, e, é claro, pelo que acabaria por ser a penúltima sequência do filme, de um caçador num safari em Angola. Pensei que aquelas imagens com as zebras e a carrinha modelo T-Ford no mesmo plano, no mesmo alcance, eram realmente fantásticas. E depois a última imagem, que era algo que não estava na verdade no ANIM, foi retirada de umas filmagens que encontrei na Library of Congress, no ano passado, onde estavam a carregar uma carrinha com animais empalhados, como zebras e búfalos de um safari. Essas imagens estavam muito deterioradas, e acabaram por ser a última sequência, porque rimavam com as outras filmagens.
Não havia muita manipulação de película ou efeitos neste filme.
Bom, eu nunca aplico efeitos sobre a película, é muito raro que isso aconteça. No máximo, posso sobrepor diferentes camadas, mas todas as manchas e permutações e partes derretidas, que são as coisas que as pessoas associam aos meus filmes, isso é tudo orgânico, é o estado das imagens na forma como as encontro. É claro que sou atraído por isso, e se são imagens que já têm essa qualidade, é mais provável que entrem na minha montagem. É uma pergunta que me fazem muitas vezes, sobre manipular as filmagens, mas na verdade não faço isso, além de seleccionar as imagens e diminuir a velocidade da película.
Neste The Dockworkers Dream é sugerido que o filme é uma narrativa de um sonho, de uma fantasia de uma das personagens que aparece repetidamente no filme a caminhar num cais – como é que chegaste a essa história e concordas com esta interpretação?
Sim, acho que sim. Sabes, as ambições para este filme nunca foram muito altas, eu estava a tentar encontrar um enquadramento para fazer esta espécie de travelogue, um enquadramento que salientasse diferentes aspectos da indústria e produção portuguesas ao longo dos anos, e certamente destacasse o papel do colonialismo como parte integral disso. Também pensei no meu processo como um caçador, como alguém que entra nestes edifícios à procura destes animais perdidos para os trazer de volta. Um estivador é alguém que, de certa forma, viaja entre diferentes portos para trazer objectos variados e depois os distribui. Isso tornou-se como uma bela metáfora para um realizador de filmes de found footage. Mas, enfim, é tudo muito sugerido pelas próprias imagens, havia este plano recorrente de um tipo que trabalhava nas docas a andar pelas ruas e, à medida que comecei a jogar com as filmagens, tentei usa-lo como uma forma de entrarmos nessas imagens, e talvez no seu sonho, que era um sonho de Portugal.
Em alguns dos teus filmes, muitas vezes a primeira imagem é também a última, numa espécie de loop. No festival aconteceu a coincidência de o filme de abertura ter sido As Mil e Uma Noites – Vol. 1: “O Inquieto” (2015) de Miguel Gomes, que começa com imagens documentais sobre um estaleiro em Viana do Castelo que estava a ser encerrado e os seus trabalhadores despedidos, e o último filme em exibição ter sido o teu, que é sobre um pobre estivador quase cem anos antes. Não sei se quando estavas a trabalhar no filme estavas a pensar nalgum tipo de analogia entre o Portugal daquelas imagens antigas e o Portugal contemporâneo – houve essa intenção, isto é, encontraste uma imagem do Portugal actual naquelas filmagens antigas?
Bem, primeiro fico feliz por saber que houve esse tipo de ressonância dentro do próprio festival, mas provavelmente tens que dar crédito aos programadores do Festival, por terem encontrado essa correlação entre os filmes. Não estava de facto a tentar fazer um comentário sobre Portugal contemporâneo com este filme – estava apenas a tentar encontrar um caminho por entre as filmagens que tinha, e tentar perceber o máximo possível sobre esta cultura através das filmagens. Imagino que aquelas imagens do filme eram imagens novas para quase todas as pessoas que estavam a ver o filme, eram imagens que nunca antes tinham sido vistas, e é uma forma de dizer, “hey, olhem para o vosso passado, para o vosso legado e para o que está à vossa porta”. Se procurarem mais um bocado, de certeza que vão encontrar mais.
Li numa entrevista tua que consideras a primeira vez que viste Koyaanisqatsi (1982) de Godfrey Reggio uma experiência formativa, como um momento importante na tua formação artística porque descobriste uma nova linguagem.
Acho que era 1983 ou 1984 quando vi o filme. Acho que tinha 18 ou 19 anos, e naquela altura não tinha visto muitos filmes artísticos ou abstractos, e a ideia de um filme sem uma narrativa tradicional era basicamente inovadora para mim. Fiquei muito impressionado com a utilização da música, porque sempre fui atraído pela música no cinema, e acho que a banda-sonora do filme é uma das melhores obras do Philip Glass. Lembro-me vagamente de ter sido levado a ver esse filme, e pensar que ia ver algo da qual devia de gostar, ou que devia pensar que era cool. Lembro-me de estar muito cansado antes, e no fim do filme estar completamente revigorado, a pensar em todas estas possibilidades que o cinema poderia ser…
Mas concordas que se pode dizer que os teus filmes, especialmente os que são baseados em película deteriorada, são também uma espécie de uma nova linguagem, que estás a tentar expressar ideias de uma forma diferente?
Bom, estou definitivamente a expressar ideias diferentes das de Godfrey Reggio. Mas o meu trabalho é muito sobre o passado, sobre a nossa memória do passado, e a nossa capacidade de nos recordarmos do passado. E também sobre cinema, sobre o material físico da película, que, na minha opinião, manifesta a sua beleza na deterioração do nitrato da película. Quer dizer, acho que todos os artistas tentam encontrar uma linguagem em que se consigam expressar, e eu encontrei esta utilização da película deteriorada – sei que não fui o primeiro a fazê-lo, nem serei o último a fazê-lo – mas tenho um bom acesso a esse material, e consigo utiliza-lo de formas diferentes. Não creio que esteja sempre a fazer um remake do Decasia (2002) com cada filme novo, cada vez que uso esse tipo de material há uma nuance diferente.
Vimos também Beyond Zero: 1914–1918 (2014) no Festival, um filme a partir de imagens da Primeira Guerra Mundial, no qual há muito movimento através da deterioração da película, mas também uma qualidade abstracta que joga com a música – foi diferente trabalhar com esse tipo de filmagens muito antigas e deterioradas, exigiu um processo diferente?
Sim, esse foi um verdadeiro projecto de recuperação, acho que nenhuma daquelas imagens existe para além daquilo que eu encontrei. Era tudo muito frágil e quebradiço, tinha que ser manuseado com muito cuidado, e foi um trabalho de restauração muito meticuloso. Acho que grande parte daquelas filmagens seriam abandonadas, ou atiradas para uma caixa para nunca mais serem vistas, porque eram incrivelmente difíceis de manusear. Acho que em relação à Primeira Guerra há tanto que já esquecemos, e mesmo a razão de ser da própria Guerra é difícil de aferir… é uma espécie de memória distante no tempo, que desencadeou uma série de desacertos sucessivos e más decisões ao longo do século XX. E agora que a mãe de todas as guerras já tem quase 100 anos, mal temos um registo do que aconteceu, e por isso foi importante para mim respeitar esta espécie de memória desvanecida nesta tecnologia que agora é quase defunta. E respeitar todas as marcas e permutações da película que, como que análogas à nossa distância em relação aos acontecimentos, registam toda a violência que foi perpetrada.
Trabalhar com imagens de uma outra natureza sem ser do cinema é diferente?
Bem, a minha formação é de pintor, mas esta é uma mentalidade diferente da de pintar. Quando trabalho num projecto estou quase exclusivamente a trabalhar com imagens em movimento, que não têm de ser necessariamente antigas, que não têm de ser necessariamente em nitrato, mas têm de ajudar a contar a história que estou a tentar contar, mas sim, estou mais interessado na imagem em movimento do que na imagem parada.
Num momento em que o digital está a substituir-se à película, em que cada vez há menos cinemas com projectores de película e menos filmes filmados em película, como é que vês o futuro para este tipo de trabalho, de arqueólogo de filmes e mesmo da preservação ou restauro de filmes, e se pensas que tu próprio podes começar a trabalhar mais com imagens de origem digital, ou não tens muito interesse nisso?
No fundo, os meus filmes são também filmes digitais, por exemplo o The Dockworker’s Dream e o Beyond Zero são filmes acabados de forma digital, não existem em película, e isso seria um passo seguinte muito difícil de concretizar para mim. Embora seja possível com alguns apoios fazer isso, criar uma cópia em película a partir da versão digital destes filmes. Mesmo para exibir estes filmes, é muito difícil de o fazer num formato que não seja o digital. Este é o mundo em que vivemos agora, é desta forma que conseguimos estar a conversar neste momento, e a forma como comunicamos para combinar esta entrevista. Eu vivo num mundo digital e sou uma pessoa digital tanto quanto é possível. Quanto ao futuro do cinema de arquivo… acho que estes poucos filmes que conseguimos salvar do século XX vão sobreviver muito mais tempo do que a maior parte dos filmes digitais que por aí andam. São filmes que estão guardados em edifícios a uma temperatura controlada de 6º C e dentro de recipientes próprios para durar várias centenas de anos. Não querendo ser uma pessoa fatalista, mas isso é um período de tempo extremamente longo. Por outro lado, por exemplo, qualquer um de nós já tentou recuperar algo de um disco ou portátil antigo, e é muito frustrante descobrir que todos os teus ficheiros ou emails de 2007 desapareceram. Por isso, não temos uma maneira de arquivar material digital que dure tanto tempo como uma película de 35mm, independentemente da qualidade ou aspecto que tenha, quer se pareça com os filmes antigos que uso ou o mais belo restauro numa cópia nova. Portanto, acho que sobre a questão se ainda vão continuar a existir pessoas interessadas em olhar para filmagens quando estas forem antigas, acho que há agora um crescente fascínio das pessoas mais novas pelos formatos analógicos. Por exemplo, com as cassetes, que estão a voltar a ser usadas como forma de distribuição, e a questão da fotografia digital vs. fotografia em filme… estas espécies de remanescências antigas do século passado com as quais eu cresci, estão agora a ser re-descobertas com enorme fascínio por uma geração com acesso escasso a esses objectos. Acredito, tenho esperança que, enquanto existir um arquivo, haverá sempre alguém a deambular por esse espaço com curiosidade para saber o que lá está guardado – pela minha experiência pessoal sou uma das raras pessoas que se desloca à Library of Congress e pede para ver o que é que está prestes a ser atirado para o lixo – mas isso não quer dizer que não irá existir outro miúdo daqui a 15 anos que queira fazer a mesma coisa.
Em alguns dos teus outros filmes, como em Ghost Trip (2001) [disponível aqui], tentas fazer algo diferente do habitual, onde utilizaste as próprias imagens que filmaste – é algo que te interessa repetir no futuro?
Sim, Ghost Trip exigiu muito trabalho, mas acho que está a voltar a ter alguma atenção outra vez. Penso que é um belo filme. Foi feito muito no mesmo espírito dos meus filmes de found footage, no sentido em que comecei por coleccionar diferentes filmagens e depois tentei encontrar uma história dentro dessa imagens. Eu sabia que havia situações diferentes que queria que acontecessem, como um padre que queria que conduzisse ao longo do Mississippi, e este tipo que ia decorar a campa da mãe num cemitério em Nova Orleães. A ideia era que eu iria comprar um carro funerário e colocar dois amigos no carro e filmar o que acontecesse ao longo do caminho. Quando olho para esse filme recordo-me de um momento único em que isso poderia ter acontecido, e que não foi feito da forma tradicional, como um filme normal ou com uma narrativa convencional seria feito, com uma equipa e luzes e som e tudo isso… Foi feito da forma que faria um filme, que é como quem diz, para que tivesse maior controlo e maior liberdade para depois encontrar o filme na montagem. É assim que eu faço os meus filmes – acho que isso vem do meu passado como pintor – é-me difícil imaginar a trabalhar com uma grande equipa e com um argumento e actores e esse tipo de coisas associadas a uma forma tradicional de filmar. Não vou dizer que isso não poderá acontecer, mas tenho 50 anos e tenho, de certa forma, uma linguagem que trabalho, e acho que essa forma tradicional de trabalhar é para alguém mais novo, para alguém que acaba de sair de uma escola de cinema e que vai construindo ligações com uma equipa próxima. Tenho um par de projectos em mente em que poderia considerar fazer as coisas de uma forma diferente daquelas que viste nos dois filmes que estiveram no Festival, mas que teriam também de ser muito diferentes de um filme tradicional.
Re:Awakenings (2013) [disponível aqui] também é diferente do teu trabalho habitual, porque está mais próximo de um documentário narrativo, como por exemplo com inter-títulos com texto explicativo… é um tipo de trabalho que também consideras voltar a fazer?
Tanto o Re:Awakenings, como The Miners’ Hymns (2010) e The Great Flood (2012) são mais próximos de uma tradição de documentário que conhecemos, onde estou, acima de tudo, a respeitar o tema e o tópico e o trabalho do filme original. No caso de Re:Awakenings, as imagens que vemos foram na realidade filmadas por Oliver Sacks, e o filme seria exibido num festival em sua honra, portanto senti que nesse caso o meu trabalho era mais de compilar as filmagens e tentar contar a história dele através dessas filmagens. Foi um desafio diferente e uma responsabilidade diferente da que tenho normalmente com os meus filmes… mas algo parecido passa-se com The Great Flood e The Miners’ Hymns, onde estás a falar sobre uma comunidade inteira que passou por dificuldades extremas e que talvez as tenha já ultrapassado, ou não, mas certamente perderam muitas pessoas ao longo do caminho. É um legado que o filme tenta homenagear, por isso precisava de respeitar essa história – este não é o tipo de filmagens que eu vá tentar manipular de alguma forma, vou tentar apresenta-las da forma mais pura possível.
Quando estava a pesquisar o teu passado, descobri e li sobre Robert Breer e a sua teoria das 24 pinturas por segundo. Jean-Luc Godard disse que “o Cinema é a verdade 24 vezes por segundo, e cada corte é uma mentira”, Michael Haneke disse uma vez que “o Cinema é 24 mentiras por segundo ao serviço da verdade, ou ao serviço da tentativa de encontrar a verdade”. De que lado é que ficas? Há uma escolha, ou são ambas?
Não sei qual o contexto em que Haneke disse isso, mas os filmes dele são muito diferentes dos filmes do Robert Breer. O Robert Breer foi essencial para eu passar da pintura para o cinema, porque era alguém com quem eu conseguia identificar-me, com a sua estética, como pessoa. Foi um professor muito importante para mim, e um maravilhoso artista e realizador. Portanto, irei sempre subscrever a teoria dele – não é propriamente dele, mas foi a primeira vez que ouvi essa ideia – que podes construir estas realidades segundo a segundo, fotograma a fotograma, e que cada imagem é uma pintura importante, é uma composição. E a tua percepção que estes são milissegundos que estão a passar por ti, acho que isso é algo muito comovente. É sobre a forma como experienciamos as nossas vidas, a ver imagens a passar, e há esta tendência no cinema para ver cada um desses fotogramas como uma continuidade sem remendos, como se não houvesse cortes entre eles. Os filmes narrativos esforçam-se, talvez como Haneke está a tentar dizer, para criar a mentira de que este é um mundo real com o qual te podes envolver, e que não depende do material ou do formato. Mas acho que é muito mais evocativo quando estás consciente do material e do formato e da apresentação, porque estás a receber estas imagens distintas, e que não é assim tão diferente da nossa experiência como humanos, como seres sencientes, em que vamos coleccionado estas imagens discrepantes através das quais construímos uma continuidade própria.
Numa entrevista em que te pediram para explicar a razão pela qual fazes filmes, usaste a palavra portuguesa “saudade” na tua resposta, que definiste como algo que não tinhas ou algo que tinha passado, e como muito das nossas vidas é passado a olhar para o que já aconteceu… isto ainda se mantém? Ou seja, ainda olhas para o passado e para a “saudade” à procura de respostas e ainda é a razão pela qual te dedicas a olhar para filmagens antigas?
Não tenho a certeza se existe alguma tristeza ou nostalgia associada a essa palavra, é uma palavra que não temos mas de que sempre gostei, dessa ideia do desejo por algo que já não tens ou que não conheces… Se há uma emoção constante que motiva o meu trabalho, está de certa forma relacionada com o que eu estava a descrever antes. Esse sentimento de que estas imagens estão a passar por nós neste momento, no modo como estamos activamente a viver as nossas vidas mas ao mesmo tempo só podemos vê-las passar, e da forma como observamos a vida a passar, e vemo-nos a passar pela vida… é uma sensação comovente e talvez melancólica… mas também é a sensação de estarmos a envelhecer, e de nos sentirmos abençoados por poder envelhecer.