Em 2010 Jeff Bridges ganhou o Óscar para melhor actor principal. E também Maggie Gyllenhaal (a irmã de Jake) foi nomeada para actriz secundária. Estas distinções vieram com Crazy Heart (2009), primeiro filme realizado por Scott Cooper, um actor em papéis cada vez menores decidido a tentar a sua sorte do lado de cá da câmara. Quatro anos depois, Cooper tentou fazer o mesmo, um filme que pusesse na mão do irascível Christian Bale um tio dourado para melhor actor: Out of the Furnace (Para Além das Cinzas, 2013). Mas falhou. Este ano volta a carga com Johnny Depp (que nunca ganhou um Óscar), como gangster vampiresco, olho azul e testa à Gary Oldman no Dracula (1992) de Coppola, adensando a já muito bizarra galeria de personagens do actor.
Portanto, tudo ou quase em Black Mass (Jogo Sujo, 2015) desagua, para o bem e para o mal, em Depp. Antes do filme e antes mesmo desta sua encarnação de James J. Bulger, há que escrever um pouco de psicologia de vão de escada. O “nascimento” no cinema de Johnny Depp correspondeu a uma morte: uma enorme ejaculação de sangue às mãos de Wes Craven (aquela célebre cena em que adormece na cama com fones nos ouvidos e se afunda por ela abaixo para depois ser cuspido em papa vermelha para o tecto) em A Nightmare on Elm Street (Pesadelo em Elm Street, 1984). Se se poderia dizer que essa morte simbólica faz de Depp um actor sem corpo, que se apaga completamente nas suas personagens, entregue a um gozo de encarnação tão subtil quanto possível, o certo é que é também o oposto. Johnny Depp, espécie de Lon Chaney contemporâneo, não é o “man of a thousand faces” mas o homem dos 1000 corpos: plásticos, em falência, a começar nessa transmutação em Krueger bonzinho e redimido – da morte pelas tesouras do assassino de Craven às tesouras de Edward Scissorhands (Eduardo Mãos de Tesoura, 1990). E a partir daí, bigodes sedutores, nalgas versáteis, rastas de pirata e make up (o conceito metrossexual, nasce em parte desta ideia de um só sexo ser um entrave neste corpo a todo o tempo mutável), barrigas de álcool e droga, perucas e dentes exagerados, cartolas, you name it. Pergunto, a dar um Óscar a este homem, qual é o corpo que o irá receber?
Johnny Depp, espécie de Lon Chaney contemporâneo, não é o “man of a thousand faces” mas o homem dos 1000 corpos.
Mas vou então a Black Mass, thriller baseado em factos verídicos, nomeadamente a aliança que o FBI fez nos anos 70 com a mafia de origem irlandesa para eliminar a “congénere” italiana da cidade de Boston. Nome central desta aliança é James J. Bulger, conhecido por ter fugido às autoridades nessa data, procurado por vários assassinatos, e capturado mais de 40 anos depois, já octogenário. Depp é Bulger e Cooper quer ambientar o seu filme na histórica tradição dos filmes de gangsters. Como com o seu filme anterior está presente também uma questão entre irmãos. Mas ao contrário da gravitas neo-clássica de um filme como We Own the Night (Nós Controlamos a Noite, 2007) de James Gray, nunca temos aqui um verdadeiro dilema interno. James é o contratipo do seu irmão, William, o positivo e transparente presidente do Senado de Massachusetts (a limpidez maquínica do rosto de Benedict Cumberbatch mostra-nos isso) mas o pacto é que nenhum se coloca no caminho do outro. Se no meio desta “falsa” oposição bem /mal no filme de Gray estava o próprio pai (o espírito santo desta “aliança”) o que fazia mover as águas, aqui parece estar um amigo de infância dos dois irmãos, John Connolly (Joel Edgerton) que agora trabalha no FBI e propõe um pacto a James para eliminar os italianos. Temos de um lado, portanto, a justiça, do outro a criminalidade e a assistir a isto, impávido (não é habitual, admitamos) a política.
Sei que parece uma estrutura de base interessante. Mas enquanto Gray escava a transformação das suas personagens e David Simon (na extraordinária série The Wire) está ocupado em mostrar como um pintor realista dos dois lados da barricada só pode desembocar numa visão “impressionista” dessas fronteiras, Scott Cooper tem na cabeça duas ou três outras coisas bem mais esgotáveis em si. A primeira, claro, a necessidade de narrar a dita “aliança” que pouco evolui de figura no filme a partir da sua metade (pelo contrário, torna-se demasiado clara aos olhos de todos; um sinal disso é que a personagem de Connolly resvala perigosamente para o estereótipo do polícia corrupto e ambicioso sem escrúpulos). Depois, a questão do filme-envelope-com-selo-de-oscar. Há esta curiosidade de ter falado de um corpo sem forma definitiva pois juntamente com a caracterização e voz grave, Bulger é simultaneamente aquele de que todos têm medo (uma das melhores cenas, um jantar em casa de Connolly e um diálogo sobre receitas de bife) por ser violento, imprevisível, mas também pela sua “presença espiritual”, como se a maldade em si, abstracta, se pudesse sentar ali ao nosso lado, com os seus gestos pausados e olhinhos penetrantes. Não nego, é um prazer ver Depp, sobretudo expurgado do lado meio pateta do “nosferatu” que fez em Dark Shadows (Sombras da Escuridão, 2012) de Tim Burton, mas o argumento do filme disso se ressente.
Finalmente, a terceira ideia forte deste Black Mass não é particularmente original. É o inverso das facadas nas costas de Júlio César da peça de Shakespeare. Tal como Robespierre em período de terror na Revolução Francesa, Bulger descasca progressivamente as camadas da cebola da sua organização, “come os seus filhos” como Saturno, na esperança de impedir que alguém o denuncie. Com essas camadas que se vão, o filme vai perdendo progressivamente interesse até ao eclipse da figura de Bulger e do filme. Dá vontade de dizer que com as “camadas de cebola” que Scott Cooper tinha à sua disposição (já falei de Cumberbatch e Joel Edgerton mas ainda há Kevin Bacon, Peter Sarsgaard, Adam Scott, Corey Stoll, Jesse Plemons, tudo gente talentosa) o desperdício vitamínico é enorme numa mise en scène anónima e num desenvolvimento dramático algo convencional. É pena.