A notícia é terrível e vem do lado de lá: desapareceu um dos maiores génios da história do cinema. Não era preciso ir muito além dos seus primeiros filmes para se perceber que aquela miúda pequenina, uma espécie de “furioso pintainho” que apenas se guiava pelos impulsos da sua própria visão, conseguia atingir pelo olhar, no seu olhar, uma altura que mais ninguém conseguira chegar antes. Não uma altura qualquer, mas, ousaria dizer assim, uma “altura do íntimo” que serve como auto-retrato perfeito desta mulher, que fez da sua obra uma longa cartografia de emoções, silenciosas, violentas, algumas delas reprimidas, prontas a explodir. Tudo se comunicava pelo olhar de Akerman, sempre incisivo e quase sempre assombroso. Os olhos fecharam-se, mas o olhar permanece e permanecerá com uma força sem igual.
Chantal Anne Akerman tinha tudo para não ser um dos mais precoces génios na história do cinema mundial. Era nova, era mulher e era belga. As suas origens judias ter-lhe-ão dado a teimosia, resiliência e “lugar na história” que precisava para pôr a sua inteligência ao serviço da construção de uma das obras cinematográficas mais importantes da segunda metade do século XX.
Aos 18 anos, uma pequena Akerman explodia a cozinha da sua casa, num acto de rebelião contra a “tutela masculina” que rimava bem com todas as revoluções (ir)responsáveis do Maio de 68. Não o fez “de facto”, mas na sua primeira experiência atrás das câmaras: Saute ma ville (1968). A partir daqui, a jovem cineasta inicia uma viagem que lhe deu a aprender uma nova linguagem cinematográfica. Como a própria viria a afirmar, foi nos Estados Unidos que Akerman descobriu uma forma não narrativa de dar a ver o mundo na tela. Michael Snow e o seu monumental La région centrale (1971) levaram Akerman a realizar La chambre (1972) e, logo a seguir, a sua primeira obra-prima, Hotel Monterey (1972).
De regresso à Europa, realizou o casamento perfeito entre a sua veia romanesca, fortemente politizada, com a estética contemplativa e pessoal que germinara no cinema experimental americano dos anos 60 e 70 (sendo que aí o cineasta mais próximo de Akerman é James Benning). Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975) é uma obra-prima monumental do século XX. Akerman realizou-a com 25 anos, retomando em parte o tema do seu primeiro filme, mas sem a naivité ainda muito verde que simpaticamente o caracterizava tanto quanto, inadvertidamente, o datava. Com dois filmes, Hotel Monterey e Jeanne Dielman, fundava-se um dos olhares mais singulares na história das imagens. Akerman erigiu uma obra ímpar mesmo sendo nova, mesmo sendo mulher, mesmo sendo belga. Mas que obra é essa? Como a podemos caracterizar? Muito sinteticamente, sugiro dividi-la em dois conceitos-mundo.
Todo o seu cinema era assim: feito de divisões belas e tristes.
Diáspora. A origem judaica não é traída no seu cinema, apesar da ideia de viagem, uma espécie de exílio ou apatridia (ou a pátria do apátrida é o mundo?), se materializar nas suas imagens como sinónimo de solidão, isolamento e, acima de tudo, distância. Para haver distância tem de haver “uma casa” que tem vários nomes, por exemplo: chama-se “mãe” nas cartas vindas da Bélgica, escritas com uma simplicidade comovente, que recebe em Nova Iorque [em News from Home (1977)]; chama-se “ela”, uma amante que a espera no seu apartamento [em Je, tu, il, elle (1976)]; chama-se “ele”, um amante cansado de amar/esperar que também espera/ama uma realizadora, Anna, que nunca pára em casa [Les rendez-vous d’Anna (Os Encontros de Ana, 1978)]. Também esta “casa” tem nomes de países, sobretudo nos seus documentários: América em Sud (1999) e De l’aute côté (2002); um fantasma em pedra chamado União Soviética em D’Est (1993); Israel – não será esta a casa primeira? Então porque se fecha Akerman, de novo, num apartamento? – em Là-bas (2006).
Interior. É para dentro (indoor) que a câmara de Akerman (la chambre de Akerman?) olha, sempre para onde corpos, sobretudo de mulheres, se deparam com divisões. Em Hotel Monterey, somos assombrados por espaços que se querem inabitáveis, que se querem circuláveis. Ninguém pode viver num hotel, esse não-lugar onde se entra, se poisa e se parte, assim, sem criar raízes, apenas gerando atrás uma leve corrente de ar. A forma como as paredes e corredores sinistramente belos (simultaneamente estranhos e familiares) comunicam a impossibilidade de se “ser ali” é só superiorizada pela forma como esses mesmos “protagonistas” na obra-prima de Akerman nos dizem que apenas ali se pode “estar” – quando a câmara se move, em lentos travellings, sentimos ainda apreensão (ou mesmo medo), mas amenizada já por um sentimento de libertação, a tal aragem específica que faz respirar qualquer organismo-hotel.
Onde “se vive” a situação pode ser ainda mais claustrofóbica. Veja-se a “fada do lar” Jeanne Dielman (Delphine Seyrig), mulher que se “divide” em tarefas entre a cozinha, a sala de jantar e o quarto; mulher que se divide em divisões no seu maquinalmente coreografado programa diário. É naquela última “divisão” que esta mulher profundamente só (apenas vive com o filho) se começa a sentir ameaçada de morte na sua rotina doméstica, cativeiro (conceito forte em Akerman) a que se remete mesmo na ausência do marido, que morreu há 6 anos. Filme sobre mulheres vítimas dos homens, filme feminista? Não, filme sobre mulheres vítimas dos seus, já só seus, fantasmas. Noutra das suas obras-primas, Toute une nuit (A Noite Inteira, 1982), Akerman, de novo passando de divisão em divisão, como de casa em casa, procura captar a respiração da noite, uma certa ideia de noite na cidade. É um filme coral sobre vizinhanças belas e tristes. Todo o seu cinema era assim: feito de divisões belas e tristes. Que ninguém o deixe de habitar.