João Lameira (JL) e Luís Mendonça (LM) escrevem sobre as suas primeiras colheitas no DocLisboa 2015.
And when I die, I won’t stay dead (2015) de Billy Woodberry
Dificilmente se reinventa a roda no que diz respeito aos documentários biográficos sobre personalidades singulares. A forma deve seguir, e não se desviar um milímetro, do seu assunto – se este, de facto, merecer essa especial atenção. O grande mérito de Woodberry aqui é precisamente não procurar reinventar o modelo formal típico deste género de retratos fílmicos para, deste modo, desenterrar do esquecimento a vida e obra do poeta beat Bob Kaufman. Quem era ele? Desde logo, um negro numa comunidade maioritariamente formada por brancos, onde se destacavam os “populares” Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Gregory Corso. Kaufman era um homem errante (e, pelo menos na sua vida familiar, errático) que fez verdadeira poesia de rua. Nesse sentido, e parece ser essa a grande “tese” do documentário, este poeta terá sido, em boa medida, tudo aquilo que os beats brancos desejavam ser, na sua postura ideológica furiosamente anti-burguesa. Kaufman era um genuíno poeta vagabundo, alguém que fugia de todas as atenções e que parecia apenas escrever por necessidade. A história do longuíssimo voto de silêncio de Kaufman é paradigmática desta sua vontade de não existir ou, leia-se, de existir apenas através de uma economia de palavras singular e extraordinariamente vibrante. À guisa dessa economia, o que sobressai deste documentário sem particular chama é a voz de Billy Woodberry dizendo alguns poemas de Kaufman sobre fotografias e excertos de filmes [aos meus olhos, destaca-se The Flower Thief (1960) de Ron Rice]. Não precisamos de mais para não esquecermos – e começarmos a ler – Bob Kaufman. (LM)
O filme volta a passar hoje, dia 26 de Outubro, às 22h00, no Grande Auditório da Culturgest.
The Sky Trembles and the Earth Is Afraid and the Two Eyes Are Not Brothers (2015) de Ben Rivers
Em The Sky Trembles, Ben Rivers começa por fazer um making-of de Las mimosas, o próximo filme de Oliver Laxe, observando os habituais contratempos, aflições e chatices de uma rodagem. Neste caso, exponenciados pelas dificuldades linguísticas e o amadorismo dos actores. Quanto desta parte “documental” é verdadeiramente documental ficará ao critério de cada espectador, uma vez que a segunda parte, puramente ficcional, põe em causa tudo o que se passou antes. Nesta última, Laxe transforma-se em protagonista de uma bizarra história, envolvendo uns bandidos que lhe cortam a língua, o vestem num “fato” feito de latas e o obrigam a dançar freneticamente (e ruidosamente) a toque de bala. Inegáveis, no filme, só a inebriante paisagem do deserto marroquino, o sol incandescente que absorve o espantoso plano final e a via sacra de um autor reduzido à condição de adereço para comemorações incompreensíveis. The Sky Trembles é menos híbrido docu-ficcional do que abstracção levemente narrativa e completamente dominada pela lógica da alucinação. (JL)
Die bleierne Zeit (Anos de Chumbo, 1981) de Margarethe von Trotta
O título diz tudo: “Anos de Chumbo”. Filme pesadíssimo de Margarethe von Trotta que enfrenta o fantasma do nazismo a partir da história de duas irmãs, Marianna e Juliane, cuja relação é posta à prova pelo Zeitgeist. A primeira pertence a uma organização terrorista (intui-se aqui a referência ao grupo Baader-Meinhof e à história de Gudrun Ensslin) que a leva a abdicar da sua vida familiar, deixando para trás um filho pequeno e um muito frágil companheiro. A segunda é uma jornalista com uma vida sentimental estável. Numa montagem alternada entre o passado e o presente, o filme de Trotta entrelaça o tempo da infância e adolescência com o presente adulto das duas personagens, sendo que o mais interessante é que a consciência política de Marianna, a irmã mais nova, revelar-se-á como corolário da atitude contestatária da adolescente Juliane contra a educação conservadora do seu pai, que é padre. Die bleierne Zeit é um filme que escalpeliza, com frieza, todos estes conflitos: entre a idade adulta e a infância das duas protagonistas como entre o presente e o passado da Alemanha. A relação entre Marianna e Juliane, os dilemas da segunda em choque com a convicção inabalável da primeira em “fazer a revolução”, concentra in nuce a angústia de uma nação que precisa de ultrapassar os seus fantasmas. É um testemunho histórico importante – porque também é um drama cinematográfico pungente – e, nesse sentido, não me espanta poder vê-lo num festival que celebra o documentário. (LM)
O filme volta a passar dia 1 de Novembro, domingo, às 21h45, na sala 3 do São Jorge.
Llik your Idols (2007) de Angélique Bosio
Apesar da temática interessante – o cinema de transgressão nova-iorquino dos anos 80 (espécie de companheiro visual do movimento musical No Wave) -, Llik your idols, pelo menos na forma, não passa de um documentário absolutamente convencional, para não dizer algo rasteiro. Muitas cabeças falantes, algumas imagens de arquivo, uma estrutura básica “agora falo deste, agora daquele” e a sensação de que é bastante redutor. Chega a ser chocante a contradição entre o cinema extremamente violento, ofensivo, quase repulsivo de Richard Kern (com e sem Lydia Lunch) ou Joe Coleman (não tanto o de Nick Zedd, mais dado ao palavreado meio inconsequente e à pose de artista maldito do que a realizar) e o filme inócuo de Angélique Bosio. Talvez fosse esse o propósito, embora se duvide, tão pobrezinho é o resultado. No final, ficam sobretudo na retina as imagens sórdidas de Kern e a vontade de investigar a sua obra. (JL)
O filme volta a passar dia 31 de Outubro, sábado, às 22h15, no Cinema Ideal.
La tragedia di un uomo ridicolo (A Tragédia de um Homem Ridículo, 1981) de Bernardo Bertolucci
Aderi ao apelo feito por Augusto M. Seabra na conferência de imprensa do DocLisboa e fui ver este Bertolucci que tinha em falta. La tragedia di un uomo ridicolo será o último título do Bertolucci político, ainda sob influência da Nouvelle Vague e em diálogo com algum do melhor cinema italiano militante ou “de intervenção” (acima de tudo, Francesco Rossi, Elio Petri e até Dino Risi). Trata-se de um falso thriller sobre o sequestro do filho de Primo Spaggiari (o sempre excelente Ugo Tognazzi), poderoso industrial dono de uma fábrica de queijos. A premissa promete um tenso filme de investigação sobre os culpados por esse sequestro e os seus intentos, mas o que acontece é que Bertolucci põe água na fervura para se concentrar – ou se distrair – na rede de relações entre as personagens, com especial incidência sobre o perfil cínico q.b. do industrial, que se vê obrigado a vender a fábrica caso queira, de facto, voltar a ver o filho. O filme tem as forças e fraquezas típicas em Bertolucci: uma frieza plástica que seduz o olho [ainda que esteja a milhas, neste aspecto, de um Il conformista (O Conformista, 1970)], mas que amiúde seca o campo dramático – por exemplo, está muito longe de nos agarrar, e questionar, como o faz Indagine su un cittadino al di sopra di ogni sospetto (Inquérito a Um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita, 1970) de Petri. Bertolucci parece-se com um Antonioni contestatário, que é mais frio do que propriamente cool. Não é fácil aderir ao universo das personagens, que aparecem, desde o começo, como peões de um xadrez narrativo de que o seu realizador está demasiado certo – e que, talvez por causa dessa espécie de abordagem distante, resulta frouxo. Mesmo a ambiguidade do desenlace não resiste à pose formal. (LM)
O filme volta a passar no dia 31 de Outubro, sábado, às 19h00, na sala Manoel de Oliveira no São Jorge.
Lyrisch Nitraat (1991) de Peter Delpeut
Antes da sessão, Augusto M. Seabra, responsável pela secção Riscos, falava apaixonadamente do filme de Peter Delpeut e da vontade antiga de o trazer ao DocLisboa. Paixão inteiramente justificada (embora as paixões não precisem propriamente de razões). Feito a partir de metros e metros de película esquecida e estragar-se num sótão de um distribuidor holandês, Lyrisch Nitraat é um exercício belíssimo, sofisticado, de uma claridade e simplicidade absolutamente encantadoras. É tanto carta de amor à película de nitrato como ao cinema mudo nela impresso. Se nos momentos finais, a deterioação do material desenha uma pintura abstracta no ecrã, demostrando a beleza da finitude, antes, Delpeut ensaia pequena narrativas, ora deixando correr sequências inteiras (como a do casal encontrado numa ilha deserta), ora jogando com a montagem (o campo/contra-campo entre salas de cinema e espectadores deslumbrados e excertos de variados filmes). Aparecendo hoje em dia, seria catalogado como vídeo-ensaio – e partilha com estes o prazer de brincar com as imagens, de se obcecar com elas, de as pôr a contar a sua história (e menos as dos filme) – só que obviamente a palavra vídeo não faria qualquer sentido. Lyrisch Nitraat é anti-digital, totalmente artesanal, completamente filme (em todas as acepções da palavra). (JL)
O filme volta a passar dia 28 de Outubro, quarta-feira, às 16h15 no Pequeno Auditório da Culturgest.
Eniaios III – Reel 1 – “Gibraltar” e Eniaios III – Reel 2, 3, 4 – “Genius” (1970-2012) de Gregory Markopoulos
Eniaios, que significa em grego “unicidade” ou “harmonia”, é o projecto colossal que ocupou a segunda metade da obra do cineasta experimental norte-americano, de ascendência grega, Gregory Markopoulos. Na realidade, ele não só a ocupa como, mais que isso, a engloba e a reconfigura, já que as perto de 80 horas de que é feito incluem materiais que Markopoulos filmou ao longo de toda a sua vida. Eniaios, e portanto os dois filmes que passaram que lhe fazem parte, não é um filme para se ver, mas um filme para se experienciar, não fosse este mostrado apenas de 4 em 4 anos na terra-natal do seu pai, em Arcadia, Grécia. As condições especiais destas projecções dificilmente seriam replicáveis no auditório pequeno da Culturgest. De qualquer modo, foi possível imaginar essa experiência enquanto assistia a estes retratos de artistas amigos de Markopoulos: Gilbert e George aparecidos no primeiro filme, “Gibraltar”; David Hockney, Leonor Fini e Daniel-Henry Kahnweiler surgidos no segundo filme, “Genius”. Estamos mais próximos, a meu ver, do cinema estrutural, eminentemente rítmico, do seu companheiro Robert Beavers que dos filmes “mitopoéticos” que Markopoulos fez no contexto do New American Cinema. O que vemos – e só vemos aqui, já que Markopoulos abdica do som, isto é, procura-o exclusivamente na tessitura das imagens – é uma alternância entre ecrãs negros e brancos e imagens (por norma, uma imagem fixa) de rostos ou “planos de detalhe” de partes do corpo dos amigos retratados. Por vezes, a montagem de Markopoulos executa pequenas “coreografias”, invertendo os retratos, da esquerda para a direita, de cima para baixo, enquanto prossegue um virtual trabalho de “impressão” dessas imagens sobre as tais superfícies brancas e negras (que lembram os delírios abstraccionistas, quase metaleiros, de Kubelka). É uma experiência e, ao mesmo tempo, um desafio ao nosso papel de espectadores. Acedendo ao desafio, podemos ser levados a dimensões completamente novas – por exemplo, podemo-nos perder, em certos momentos, na própria consciência não só da “qualidade material da projecção” como do que efectivamente rodeia o ecrã; a própria ansiedade, saturação ou simples tédio de quem se senta connosco na sala (e, consoante o humor que nos assalta, de nós mesmos). Para saber mais sobre a obra de Beavers e Markopoulos, recomendo a leitura deste texto da Sabrina D. Marques. (LM)
Portugal – Um Dia de Cada Vez (2015) de João Canijo e Anabela Moreira
O novo filme de João Canijo, que, segundo os próprios, será menos deste do que de Anabela Moreira e João Braz, respectivamente a camerawoman e o montador, lembrará a muitos o seu último É o Amor (2013). A mesma viagem ao Portugal “real”, desta vez com destino em Trás-os-Montes, a mesma busca pelos portugueses “verdadeiros”. Portugal – Um Dia de Cada Vez compila retratos de várias mulheres, no seu dia-a-dia mais ou menos monótono, sob a égide da crise. Necessariamente, uns são mais interessantes do que outros, mas o olhar de Anabela Moreira, meigo e atento, revela-se uma mais-valia, principalmente face a uma certa condescendência paternalista de É o Amor (assim como a sua ausência em frente à câmara, dispensando-se o papel de comparsa em crise emocional a que Moreira se prestava nesse filme, por vezes um tanto ridículo). Apesar da excessiva duração do filme – que parece acabar a meio para recomeçar na mesma toada, acrescentando pouco a partir desse momento -, o seu maior problema foi o público presente na sessão do São Jorge. Este ria-se de tudo e mais alguma coisa, desde a cara de certas pessoas a gestos tão comezinhos como assoar o nariz, como se estivesse no jardim zoológico a ver animaizinhos, “ai tão divertidos que eles são, olha para aquilo” (eu sei isto, não por ser bruxo mas por ter ouvido os comentários, que ninguém se coíba de partilhar com o resto da sala). Não sei até que ponto se pode imputar a culpa da parvoíce dos espectadores aos autores de Portugal – Um Dia Cada Vez. (JL)
O filme estrear-se-á comercialmente dia 5 de Novembro.
How to Smell a Rose: a Visit with Richard Leacock in Normandy (2014) de Les Blank e Gina Leibrecht
Cinéma documentaire, fragments d’une histoire (2014) de Jean-Louis Comolli
Foi até agora a sessão mais significativa que assisti neste DocLisboa. Nela concentra-se, como em abismo, toda a história do grande cinema documental. Começa em registo intimista com um filme póstumo de Les Blank sobre o amigo e colega Richard Leacock, um dos filhos de Flaherty e um dos pais do Cinema Directo. E a este se segue um olhar subjectivo do crítico e cineasta Jean-Louis Comolli sobre os seus encontros com a forma documental, de Louis Lumière a Imamura, passando pelos obrigatórios Flaherty, Ivens, van der Keuken e, pois claro, Richard Leacock e os seus compagnons de route, D.A. Pennebaker, Robert Drew e os irmãos Maysles. O diálogo provocado nesta sessão dupla é de uma felicidade digna de todos os elogios, sobretudo pensando no contexto específico deste festival. De um lado, Leacock revisita as suas memórias e promove a pura partilha de vivências em conversa informal com Les Blank, isto enquanto cozinha um borrego ou prepara um doce de caramelo. Da cozinha, do amor, do álcool e, enfim, da contagiante joie de vivre de Leacock passamos para o escritório do analista/pensador. Comolli percorre a história com imagens, mas aponta também num caderno reflexões intemporais (isto é, que valem para todos os tempos dessa história) sobre a ontologia da imagem cinematográfica: o cinema é o registo do que desaparece, articulação entre o visível e o invisível, uma arte da mise en scène que é, no fundo, uma arte da partilha (mise em commun), etc. Comolli tempera a pedagogia com uma abordagem crítica e filosófica tão inspirada quanto alguns dos seus melhores textos dos Cahiers du cinéma. Da cozinha para a ontologia, este double bill com uma hora e meia parece ter abraçado toda a razão de ser do festival. Exemplar acto de programação. (LM)
Os dois filmes voltam a passar juntos no dia 27 de Outubro, terça-feira, às 22h30, no Cinema City Campo Pequeno.
Bella e perduta (2015) de Pietro Marcello
Na senda de The Sky Trembles, Bella e perduta joga-se na confusão entre documentário (e o comentário político?) e ficção, aqui em registo fábula, a meter ao barulho Polichinelo e um búfalo, primo afastado de Miúra de Miguel Torga. Não se pode escrever que os momentos de mau gosto visual abundem, mas são suficientemente feios para estragar qualquer coisa de interessante do filme (embora não haja assim tanta). A saber: os planos subjectivos do ponto de vista do búfalo, a imagem a tremelicar e o som abafado sabe-se lá porquê, e aquela lagrimita no canto do olho do bicho, antes de entrar para o matadouro, a coisa mais execrável de todo o festival (assim se espera). (JL)
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