J’ai choisi de prendre la question:
– Quand on aime le voyage, on fait des films…
– Mais alors quel voyage?
– Le Voyage Immobile, le voyage des psychotropes, le voyage au bout de la nuit du monde…
F.J. Ossang, Mercure insolent
Provavelmente não conhece o nome, mas tinha tudo para conhecer. F.J. Ossang é um cineasta francês que há mais de vinte anos descobriu em Portugal, em particular na paisagem açoriana, o set ideal para o seu cinema pós-apocalíptico, resistentemente filmado em película e predominantemente a preto-e-branco. A sua segunda longa-metragem, Le trésor des îles chiennes (1990), é uma produção de Paulo Branco e tem no elenco alguns actores portugueses, tais como José Wallenstein, Diogo Dória e Pedro Hestnes. Estes dois últimos trabalhariam de novo com Ossang, dentro daquilo que se poderia denominar de um regime de familiaridade no seio do seu cinema. Familiaridade não só com as pessoas, mas, acima de tudo, com a paisagem e com a luz. Nem de propósito, o seu próximo filme será rodado de novo nos Açores e contará mais uma vez com produção portuguesa, da responsabilidade, desta feita, de Luís Urbano, o homem forte de O Som e a Fúria. Neste texto procuro esboçar o retrato deste cineasta obscuro – isto é, poeta punk da e pela obscuridade – a partir das palavras que trocou comigo, após a retrospectiva do seu trabalho entre os dias 8 e 10 de Setembro na Cinemateca Portuguesa.
No seu livro Mercure insolent, editado há dois anos pela excelente Capricci, Ossang torna públicos alguns apontamentos mais ou menos avulsos sobre a sua relação com o cinema e com a vida. Dois temas sobressaem desta leitura: a viagem e o sono. É simples de perceber o prazer de Ossang pelas possibilidades que o exterior, ou o desconhecido, lhe pode suscitar. O cineasta, também escritor, poeta e músico, cita Fernando Pessoa para ilustrar esta ideia: “navegar é preciso, viver não é preciso”. À excepção da sua longa-metragem de estreia, L’affaire des divisions Morituri (1985), os seus filmes lidam directa ou indirectamente com uma certa “arte da fuga”. Docteur Chance (1997), um road movie noir (mas, algo raro em Ossang, com muita cor) passado no Chile com um elenco internacional liderado por Pedro Hestnes, leva a ideia de viagem até às últimas consequências. Mas mesmo os filmes que roda nos Açores, chiennes e Dharma Guns (La succession Starkov) (2010), propõem este mergulho no desconhecido, num certo “país dos mortos” onde não há bússola ou mesmo coordenadas certas.
O grande mistério nos seus filmes está no percurso que as suas personagens traçam na paisagem e a forma como esta “passagem” se imprime na película. Os Capelinhos, por exemplo, surgem em chiennes como uma reedição da “zona tarkovskiana”, sugerindo simultaneamente um tempo do passado e um tempo do futuro. O apocalipse temporal, sugerido pela fórmula, que o próprio Ossang enuncia no seu livro, de “retro-science-fiction”, será também um apocalipse na e da imagem. Por um lado, o “deserto vulcânico”, despido e imemorial, dos Capelinhos remete para esta ideia paradoxal de “regresso ao futuro” ou de “vinda de um passado” que não sabemos localizar. Talvez só, e entra aqui o segundo tema, em sonhos. Por outro lado, temos o preto-e-branco cavernal, quase primitivo, apanhado em toda a sua extensão granulosa pelo scope, da autoria de Darius Khondji, grande director de fotografia descoberto neste filme por Paulo Branco e Ossang e que hoje assina a fotografia de cineastas como David Fincher, James Gray ou Woody Allen. A imagem aparece aqui numa materialidade própria. Ossang é um apocalíptico também porque, como defende apaixonadamente em Mercure insolent, no cinema de verdade a imagem é como uma entidade vida ou mesmo “um cancro”. Esta dimensão háptica ou sensível do cinema enfrenta hoje a sua dissolução devido à ditadura do numérico. A dimensão punk de Ossang vai para lá das suas intrigas sci-fi mais ou menos elusivas. Ele apresenta-se como um cinéfilo fidelíssimo às suas raízes.

Antes de se ter aventurado no universo do cinema, Ossang era um escritor, um poeta e um músico. Foi seduzido pelo cinema através da descoberta dos clássicos. “Descobri o cinema como um tóxico, como um excitante. Comecei-me a interessar pelo cinema quando descobri os velhos cinemas. Os modernos são cinzentos, banais”. A sua desconfiança pelo cinema contemporâneo – Ossang prefere aplicar o conceito nietzschiano de “inactualidade” – é visível, quase palpável, nas imagens do seu cinema, mas também na própria marginalidade do mesmo dentro de qualquer sistema de produção. Dificilmente conseguimos categorizar ou datar o seu cinema, dado o caminho solitário que Ossang vai traçando em paisagens onde vinga o conceito de estranheza. Ainda assim, é inevitável pensar-se numa linhagem em que Raoul Ruiz [Territory (O Território, 1981)] e Wim Wenders [O Estado das Coisas (1982)] aparecem antes de Ossang, nem que seja por causa desta exploração do território português como motivo para uma aventura sci-fi/fantástica/pós-apocalíptica.
De qualquer modo, se este é um cineasta forasteiro na paisagem, não o é de modo algum na língua ou na linguagem. O cinema, diz-me, é uma linguagem universal. Nele, pode-se falar francês, português, castelhano, inglês… e também nessas línguas podemos surpreender acentos diversos, que as tornam mais ou menos compreensíveis a quem as ouve. Ossang gosta destas impurezas da língua, mas não abdica do trabalho sobre a palavra na sua língua materna. Os intertítulos expressionistas, que atestam a sua paixão pelo cinema mudo, e a rítmica dos diálogos, que não disfarçam o facto de Ossang ser um poeta antes de ser outra coisa qualquer, são elementos plásticos trabalhados com um prazer desconstrutivo à la Godard. Apesar da sua resistência generalizada ao cinema francês – donde a sua natureza “alienígena” mesmo dentro do próprio país -, o realizador de Alphaville (1965) é assumido como uma influência determinante. Fala-me também de Jean-Pierre Melville e do modo como este encontra uma espécie de “tonalidade” norte-americana em plena paisagem francófona. O mesmo tipo de desfasamento fílmico?

Há gosto pela viagem física, mas também pela viagem onírica. Logo, gosto pela viagem fílmica. Cita no seu livro outro cineasta punk à sua maneira, o “zero em comportamento” Jean Vigo: “o cinema é a arte do sono”. Ossang considera a frase “luminosa”, porque “no verdadeiro cinema nós sonhamos. Nós habitamos os filmes. Nos grandes filmes há um transe. É como gin tónico”. Orson Welles será, neste departamento, o cineasta que melhor casou os mistérios da viagem com os mistérios do sono. Quase todos os filmes de Ossang devem alguma coisa ao realizador de Mr. Arkadin (Relatório Confidencial, 1955). E como no seu cinema importa menos o drama que a textura das imagens, a rítmica do gesto e das palavras, não interessa muito que o espectador saiba fazer o puzzle das suas narrativas. “Quando comecei a fazer filmes, pensei fazê-lo como na música. (…) Num disco industrial ou rock ‘n’ roll, a primeira coisa não é a palavra. (…) Há uma vocação operática no cinema”. É uma constante no seu cinema esta espécie de correspondência sensorial entre paisagem física e paisagem musical, que começa pelo facto desta última ser fabricada, habitualmente, por Ossang e a banda que lidera, Messageros Killers Boys. Um filme como Silêncio (2007), travelogue “melancólico-apocalíptico” rodado integralmente em Portugal continental, deixa mesmo a dúvida sobre o que prevalece sobre o quê: a imagem sobre a música ou a música sobre a imagem?
Há, portanto, uma simbiose nem sempre “planeável” entre elementos plásticos e físicos, inscritos na película, que fazem com que o próprio se sinta constrangido face à pergunta da praxe: “como será o seu próximo filme?” Será passado nos Açores, isso já se sabia. Depois confidencia-me com alguma hesitação: vai ter um barco, vai ser filmado a preto-e-branco, mas também a cores. Não adianta muito mais. Diz que é supersticioso, mas talvez seja mais – ou menos? – que isso. A relutância de Ossang em abrir o jogo lembrou-me mais uma passagem do seu livro Mercure insolent: “O cinema poderia ser a expressão ideal dos tempos da imaturidade. Ele é composto de elementos diversos – heterogéneos, onde o acidente joga uma função central”. Eis um cinema de todas as nacionalidades que tem uma língua em comum: a película. Ao contrário do digital, em que tudo se repete e se vulgariza, no cinema de verdade (usamos o termo film por alguma razão), diz-me Ossang, o gesto é uma vez para sempre. Cinema do risco e da montagem contra o cobarde cinema da retocagem. Ossang é um dos últimos “doutores Chance” atrás das câmaras. E a película é o seu tesouro insolentemente punk. Caso para lhe dizer: boa sorte!
Esta entrevista não teria sido possível sem a assistência de Edmundo Diaz Sotelo e Joaquim Carvalho, e o entusiasmo da Sabrina Marques. Muito obrigado a eles.