O artigo que se segue chega com três meses de atraso, pois deveria ter sido “pensado”, esboçado, escrito, editado e enviado no mês de Julho, altura em que se comemorou (rir) os vinte anos da estreia comercial do Kids (Miúdos, 1995) do Larry Clark, filme sobre uma geração jovem norte-americana que poderá ser, em teoria, uma geração jovem de qualquer país a levar por todos os lados com os efeitos da influência norte-americana. Uma geração que provavelmente se constituiu como a última fornada de adolescentes sem acesso generalizado à Internet, aos telemóveis e aos artistas da FlorCaveira. Sem nada disto, o que se poderia fazer? Já vamos saber de seguida, mas antes tenho de colocar a foto. Aqui vai.
Tratado este ponto, vamos então saber que poderiam fazer estes pobres jovens nova-iorquinos de 15, 16, 17 anos para preencher os seus longos dias nas férias do Verão, desprovidos que estavam das delícias tecnológicas que começariam a rebentar em grande escala poucos anos mais tarde. Actividade número 1: sexo. Actividade número dois: sexo. Actividade número três: sexo. Estas três e primordiais actividades eram secundadas por outras, como andar à porrada no Central Park, andar de skate, consumir erva em grande escala, sorver sangria através de um tampão, beber álcool até estourar, e por aí adiante, sem sermos demasiado exaustivos. Não nos enganemos, contudo: todos estes momentos são meros prelúdios, instigações ou estão em estreita relação com qualquer uma das três actividades essenciais descritas acima.
À excepção de duas cenas (uma mais longa, e outra muito breve) de actividade sexual, o sexo em Kids está ora espalhado pelas entrelinhas (corpos despidos ou semi-despidos, olhares de uma luxúria que fariam até um padre católico corar) ou por diálogos entre os jovens que fazem da crueza e sinceridade os seus grandes atributos. Clark até contrapõe, em montagem paralela, um grupo de donzelas e um grupo de cavalheiros a dissertar sobre certas e determinadas especialidades do amor, que além de ser muito divertido, também é deveras instrutivo, autênticas aulas que mais nos ensinam nesses escassos minutos do que todos os monólogos do Dr. Júlio Machado Vaz em três anos. Apraz-nos, sobretudo, as diferentes abordagens e pontos de vista: eles uns autênticos fanfarrões e gabarolas, elas muito mais específicas e gráficas, e duvidamos que tenha sido o argumento do Harmony Korine a colocar aquelas palavras nas respectivas bocas. Sendo assim, ficamos a saber o que a própria Rosario Dawson, com quinze anos, pensava do sexo anal. Bons tempos.
Uma sequência que ilustra muito bem este “desaguamento” em qualquer coisa relacionado com sexo coloca a Chloe Sevigny a entrar numa discoteca onde parece estar interdita a entrada a maiores de dezasseis anos. Antes da entrada em cena do amigo da Chloe (o irmão do Korine, que me parece ainda mais parvo), há um plano-sequência pelos “habitantes” da discoteca, um momento de evidente exposição com pretensões documentais. O volume das batidas tecno aumenta, e logo está o Korine mais novo e mais histérico a levar a pura e inocente Chloe para a presença de um regabofe que envolve três raparigas ou um rapaz, ou cinco raparigas e dois rapazes, ou seja lá o que for, a dar azo a actividades que desmentem que o “façam amor, não a guerra” tenha ficado preso nos anos sessenta. Como tivemos o prazer de ver o Kids na “magia da tela”, algures num dia de sol de Maio ou Junho de 1996, esclarecemos que a zombaria musical aliada aos filtros aliada ao pecado da luxúria nos provocou grande alarido emocional e físico, mas estoicamente aguentámos até ao fim da emissão na “magia da tela”. Amor ao cinema acima de tudo.
Tanta é a imersão no fandango dos corpos, na linguagem crua e nos pequenos e maravilhosos apontamentos sobre uma Manhattan num dia de Verão tórrido, que facilmente se ignora a “lição de vida” do Larry.
Mas esta festa e este deboche têm, claro está, a sua outra vertente, feita de consequências e de cousas não muito boas para a saúde mental e física. É o lado caucionário de Clark [e Korine: Spring Breakers (2012)= filme mais hipócrita e falso dos últimos quinhentos anos] a não permitir que o divertimento se cumpra sem preço a pagar, e que voltaria a estar presente, de forma descarada, em Bully (2001) e felizmente já totalmente diluído na languidez do Ken Park (2002), a sua obra maior; depois disso perdemos rasto ao Larry, ou se já vimos alguma coisa, já nos esquecemos. Voltando à caução: presente de forma demolidora nos dois últimos planos do filme, é até lá uma mera suposição do espectador. Tanta é a imersão no fandango dos corpos, na linguagem crua e nos pequenos e maravilhosos apontamentos sobre uma Manhattan num dia de Verão tórrido, que facilmente se ignora a “lição de vida” do Larry. E quando ela surge, já é demasiado tarde para nos indignarmos; nessa altura já só queremos cerveja e trocar umas palavras sobre determinado assunto com “woman of the opossite sex”, como dizia o Herr Flick.
Antes de nos irmos embora, uma menção a uma curiosa recordação: quando o Kids um dia passou na tv, salvo erro no canal 2, até se convidou uma série de pessoas para “discutir” o filme (em termos “sociológicos”, claro está), entre elas o obrigatório Dr. Daniel Sampaio (“os problemas da juventude!”) e a Catarina Portas. A Catarina, numa das suas críticas ao filme, apontava a “total inexistência” da juventude apresentada no ecrã. A isto, e numa conversa a dois, num recanto sossegado de um bar em semi obscuridade, e sob os suaves sons em background do Neil Hannon a cantar Sinatra, perguntaríamos: Catarina, filha, onde tens andado? A pergunta que deves fazer é a seguinte: Onde é que não há esta juventude? Isso mesmo. O som deste Neil Hannon é que podia aumentar um bocadinho.